Farmacêuticas públicas: antídoto ao desabastecimento
Em meio à incerteza global, volta o risco de grandes disputas entre países por remédios e vacinas – como se viu na pandemia de covid-19. Mas podemos evitá-las: é hora de apostar na infraestrutura estatal de desenvolvimento e fabricação de tecnologias de saúde
Publicado 11/08/2025 às 11:12 - Atualizado 11/08/2025 às 11:27

Por Alan Rossi e Jan Wintgens, no vdää | Tradução: Guilherme Arruda
Em hospitais, farmácias e clínicas em todo o mundo, uma emergência silenciosa se instala. A escassez de medicamentos tornou-se tão frequente e generalizada que já constitui uma crise de saúde pública. Só na Alemanha, quase 1.500 episódios de falta de medicamentos foram registrados em 2023 – quase três vezes mais que em 2021. Grande parte dos farmacêuticos hospitalares entrevistados no país reconhecem que a escassez prejudica sua capacidade de cuidar dos pacientes de forma eficaz. Por trás desses números, há uma história mais profunda de disfunção sistêmica – e uma necessidade urgente de soluções estruturais e ousadas, baseadas no interesse público.
Raízes estruturais e consequências da escassez de medicamentos
A escassez de medicamentos é frequentemente retratada como um problema incômodo mas não tão grave, já que o sistema farmacêutico costuma ser considerado “eficiente”. Essa narrativa obscurece a verdadeira natureza da crise. Na realidade, esses episódios são o resultado previsível de um modelo construído em torno da lógica de maximização de lucros, e não da saúde pública. O que testemunhamos não é um fracasso acidental; é o resultado de escolhas estruturais.
Ao longo da história, uma ampla gama de fatores já foi apontada como causa da escassez de medicamentos. Alguns são circunstanciais ou logísticos, como flutuações sazonais na demanda, desastres naturais ou mudanças abruptas nas tendências epidemiológicas. Outros são de natureza regulatória, a exemplo padrões de fabricação mais rigorosos ou exigências dos estoques nacionais. No entanto, por trás dessas explicações superficiais, há um problema sistêmico mais profundo: a mercantilização da saúde.
Uma das causas mais citadas para essa crise é a baixa rentabilidade de certos medicamentos, especialmente genéricos mais antigos, que levou muitos fabricantes a abandonarem linhas inteiras de produtos. Esse fenômeno é às vezes chamado de “parafuso de preço”: uma situação em que a pressão para reduzir custos deixa as empresas com pouco incentivo para continuar a produção. Na Alemanha, em 2023, 30% dos fabricantes de genéricos esperavam aposentar entre 10% e 50% de seus portfólios no ano seguinte, e outros 70% dos produtores previam cortar até 10%. Essa não é uma decisão isolada; reflete um padrão mais amplo de retirada do mercado.
A concentração da produção em poucos países do mundo, principalmente na China e na Índia, criou um sistema just-in-time otimizado para custos, mas vulnerável a interrupções. A literatura sugere que esses locais não são escolhidos por acaso, mas devido a custos trabalhistas mais baixos e regulamentações ambientais mais frágeis. De toda forma, o problema não são as políticas ambientais ou a proteção dos trabalhadores – é a busca do lucro que as transforma em ônus. Quando a produção de ingredientes farmacêuticos ativos é terceirizada para maximizar margens de lucro, as cadeias de suprimentos se tornam mais longas, opacas e frágeis.
Outros fatores relevantes incluem a monopolização do fornecimento de insumos por um pequeno número de produtores, a falta de transparência das empresas farmacêuticas, a ausência de reservas estratégicas e um subinvestimento generalizado na capacidade de produção doméstica e regional. Enquanto isso, mercados menores ou menos lucrativos costumam ser despriorizados, com as empresas priorizando o atendimento de regiões mais rentáveis.
As consequências dessas crises de escassez são amplas e profundamente prejudiciais. Os pacientes enfrentam atrasos no tratamento ou são forçados a interromper terapias completamente. A falta de alternativas disponíveis aumenta o risco de erros de medicação e reações adversas. Em alguns casos, os pacientes são empurrados para opções mais caras, aumentando seus gastos diretos. Em outros, o único caminho disponível torna-se o mercado informal ou ilegal, onde a segurança e a qualidade estão longe de ser garantidas.
Farmacêuticos e profissionais de saúde também sofrem o impacto. Sua carga de trabalho aumenta enquanto eles correm para encontrar substitutos, enfrentam obstáculos de aquisição e precisam acalmar pacientes preocupados. A confiança no sistema de saúde é afetada. E a pesquisa clínica pode ser atrasada ou comprometida quando medicamentos essenciais não estão disponíveis para testes.
Em um sentido geral, o custo social e econômico é profundo. As populações vulneráveis – aquelas com recursos financeiros limitados, condições de saúde complexas ou mobilidade restrita – são as mais atingidas. O que começa como um problema na cadeia de suprimentos rapidamente se torna uma questão de justiça, equidade e confiança pública.
Como se vê, as crises de escassez de medicamentos não são anomalias isoladas. Tratam-se do sintoma visível de uma crise sistêmica mais profunda – que exige mais do que soluções técnicas. Elas revelam o fracasso de um modelo que trata as tecnologias de saúde como mercadorias, em vez de bens públicos. Qualquer solução real para o problema deve começar com esse reconhecimento.
Respostas inadequadas a um problema estrutural
Autoridades públicas, acadêmicos e associações profissionais propuseram uma série de respostas a essa crise, mas a maioria se enquadra em três categorias amplas.
A primeira delas consiste em medidas que visam melhorar o diagnóstico do problema. Isso inclui esforços para harmonizar terminologias e padrões de relatório, aumentar a transparência nas cadeias de suprimentos e fortalecer a fiscalização regulatória. São passos importantes, mas ainda limitados em escopo. Eles nos ajudam a entender os contornos da crise com mais clareza, mas não alteram suas causas subjacentes.
Já a segunda inclui tentativas de gerenciar a escassez em vez de preveni-la. Os governos vêm incentivando os farmacêuticos a substituir medicamentos indisponíveis por outros, pediram a redistribuição de suprimentos entre países, estenderam prazos de validade de certos remédios e criaram novos estoques de emergência. No melhor cenário, essas políticas podem mitigar danos a curto prazo, mas representam uma estratégia de contenção, não de transformação. Elas aceitam a escassez como um dado e apenas tentam torná-la mais tolerável.
Por fim, há um terceiro e mais problemático grupo de “soluções”: aquelas que reforçam perigosamente a própria lógica responsável pelo problema. Aqueles que propõem pagar mais por medicamentos, desregular a produção farmacêutica ou afrouxar exigências ambientais estão apontando na direção errada. Em vez de proteger o bem-estar público, essas medidas aprofundam nossa dependência das forças de mercado e nos afastam ainda mais da equidade em saúde e da sustentabilidade.
Farmacêuticas públicas: uma alternativa real
Quem erra no diagnóstico, erra no tratamento. Em vez de gerenciar a escassez ou ceder à pressão corporativa, devemos fazer uma pergunta diferente: como podemos construir um ecossistema farmacêutico que coloque as pessoas na frente do lucro? A resposta para essa interrogação começa com as farmacêuticas públicas.
Elas não são um ideal utópico. Tratam-se de uma resposta prática e necessária às falhas estruturais do modelo atual. Refere-se à construção de infraestruturas estatais dedicadas à pesquisa, desenvolvimento, fabricação e/ou distribuição de tecnologias de saúde. Significa criar sistemas transparentes, resilientes, responsáveis e alinhados com as necessidades de saúde, não com as expectativas dos acionistas.
Isso tudo já está acontecendo. Ao redor do mundo, existe um ecossistema rico e diversificado de instituições farmacêuticas públicas, devido à ação de governos que fortaleceram a capacidade produtiva estatal para fabricar tecnologias de saúde. Essas iniciativas melhoraram o acesso, apoiaram a autossuficiência regional e promoveram a soberania sanitária – quase sempre sob imensa pressão política e econômica.
A Europa também faz parte desse movimento. Em Portugal, o Laboratório Nacional de Medicamentos há muito desempenha um papel decisivo na produção de medicamentos acessíveis e de qualidade. Na Suécia, a agência nacional de medicamentos recomendou a criação de uma empresa estatal de produção farmacêutica para resolver a escassez de medicamentos críticos. Em países como Suíça e França, vários partidos políticos já defenderam publicamente o desenvolvimento de uma estratégia coordenada de farmacêuticas públicas. Enquanto isso, em todo o continente, acadêmicos e ativistas têm levantado a bandeira da criação de uma iniciativa europeia de farmacêuticas públicas para garantir o acesso seguro e equitativo a tecnologias de saúde.
Esses esforços são valiosos e inspiradores, mas permanecem sob constante ameaça. Em todo o mundo, as farmacêuticas públicas estão sendo enfraquecidas por ondas neoliberais de austeridade, cortes orçamentários e privatizações. A continuidade de sua existência está longe de ser garantida. Para cumprir seu potencial, elas devem ser defendidas e expandidas.
A hora de agir é agora
Em 2024, organizações da sociedade civil, pesquisadores e militantes da saúde de toda a Europa se uniram para formar a Public Pharma for Europe Coalition [N. T.: Coalizão por Farmacêuticas Públicas para a Europa, em português]. Estamos unidos por uma crença simples, mas poderosa: o acesso a medicamentos e outras tecnologias de saúde não deve jamais depender da lógica de mercado. Nossa coalizão defende um novo paradigma – que coloque a capacidade farmacêutica do poder público no centro das políticas de saúde. Um paradigma que garanta que a saúde é um direito humano, não uma mercadoria.
Com o aprofundamento da emergência climática, o aumento das tensões geopolíticas e o agravamento das desigualdades econômicas, o risco de uma crise de escassez de medicamentos só crescerá. Não vamos esperar pela próxima onda de sofrimento evitável. Vamos agir agora – com urgência, clareza e coragem – e construir a infraestrutura pública necessária para promover saúde para todos.
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