Quadrinha Life: Direito à Cidade numa pista de skate

Na Zona Leste de SP, experimento de outras relações sociais: coletivo transformou quadra abandonada em espaço de vivências, solidariedade e… manobras! Um de seus idealizadores resgata e esmiúça a iniciativa, que completa dez anos

Foto: Arquivo do autor
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Tudo começou em uma festa de final do ano de 2014, quando skatistas da periferia da zona leste de São Paulo se reencontraram para beber, comer um churrasco, brincar e lembrar das histórias e vivências do skate. Do encontro e da conversa surgiu um novo enredo para os skatistas dos anos 1990: “vamos voltar a andar de skate juntos!”. Na festa, rolou a lembrança de uma quadra que estava abandonada sem nenhum tipo de ocupação ou utilização pública. Era uma das quadras poliesportivas da Prefeitura, localizada embaixo do viaduto da Estrada do Jacu Pêssego. Em meio à festa, foi decidida a ocupação do espaço (Simão, 2021).

Esse “voltar para andar de skate todo mundo juntos” englobava compatibilizar a realidade social cotidiana de cada skatista, ou seja, a relação familiar, a relação do trabalho, a questão das despesas decorrentes de deslocamentos para lugares de prática de skate, entre outros fatores relacionados a própria prática de skate. Então, esse “voltar a andar de skate juntos” teria que ocorrer em espaço próximo de casa, da família e dos amigos. Assim, a quadra foi transformada em pico (lugar de prática de skate), que seria um local próximo às casas de atores.

Antes, lembrar que toda ação move uma paixão, no caso em tela, a paixão é o skate. Não existia nenhum obstáculo a não ser desbravado por esses skatistas na ação de ocupar um espaço abandonado. Existia a observação, cautela e técnica. E foi assim que se deu a ocupação da Quadrinha Life. O enredo começa com o primeiro contato na quadra. Os skatistas passaram um final de semana no local para entender o lugar e soltar algumas manobras. Verificado tratar-se de um lugar skatável, e que o abandono público e social pairava, o destino seria ocupar o espaço e destinar a outra prática esportiva, o skate. Na semana seguinte, chegou à técnica de ocupação do skate, uma marreta e uma talhadeira, e mão na massa para furar o chão e fazer o primeiro obstáculo, um corrimão (obstáculo de cano de ferro para deslizar as manobras). Nasce a Quadrinha Life.

A primeira reflexão teórica das ações dos skatistas na Quadrinha Life é entender que esses territórios de uso perpassam por contradições do planejamento urbano das cidades. No caso em tela, num mesmo quarteirão do bairro, era possível identificar quatro quadras poliesportivas, sinalizando o desconhecimento do poder público acerca das necessidades locais e dos anseios da comunidade local. A professora Ana Clara Torres Ribeiro nos ensina que esse fenômeno estatal deixa de lado as referências entre o território e o cotidiano; o Estado esquece de outras dinâmicas locais e aponta uma política atravessada por um pensamento único de cidade (Ribeiro, 2011), “vamos fazer quadras apenas de futebol no bairro”.

Essa ação social, que é insurgente dos skatistas, como vimos, estava atravessada pelo tempo, o aqui e agora, precisava estabelecer novas experiências coletivas no bairro entre o cotidiano dos skatistas e o território usado e praticado (Ribeiro, 2011). Dada a ocupação, a ocupação do presente, do vivido, da transformação de novas conexões e interações do skate e do território, esse lugar ocupado acende a relação com a comunidade local.

A cada martelada no chão duro da quadra, a comunidade se assustava, até que houve a necessidade de ajuda exterior, situação que provocou o primeiro contato com uma moradora do bairro. Ela perguntou: “O que vocês estão fazendo lá?”. Em resposta: “Estamos fazendo um lugar para andar de skate”. A senhora: “Que bom, essa quadra estava abandonada e com usuários de drogas, pode contar com minha ajuda”. O aceite da comunidade local reverbera a ação, e a racionalidade do uso do espaço estabelece um novo arranjo do produzir local, o da colaboração coexistente.

A colaboração é pilar central da ação social insurgente. São muitas cabeças, muitos braços, muita disposição para ocupar e ressignificar um espaço opaco e transformá-lo em um espaço luminoso (Ribeiro, 2012) com a prática de skate. Foi esse sentido que se deu ao longo do tempo entre a construção de obstáculos e as vivências locais dos skatistas após a ocupação. Os obstáculos foram construídos coletivamente um a um na Quadrinha Life. Entre arrecadar o dinheiro, a famosa vaquinha, até a mão na massa, o skatepedreiro (Simão, 2021).

Tudo pronto para a chegada dos skatistas locais e de todo canto. Ao ocuparem a quadra, foi combinado um desenho de obstáculos que atendesse os profissionais, amadores e iniciantes. Os obstáculos tinham que ser bem posicionados, para ter espaços de fluidez entre um e outro. Tudo certo! Agora é só andar de skate.

O que era, a princípio, um pico local onde somente skatistas locais iriam andar, se tornou um pico mundial. O pico ganha uma comunicação internacional nas redes sociais, devido a muitos skatistas fazerem filmagens de suas manobras e reproduzirem nas redes sociais. Andar de skate na Quadrinha Life já faz parte da rota dos grandes picos da cidade de São Paulo, mesmo longe do centro, mas perto do aeroporto internacional, o pico acaba sendo um pitstop antes das viagens. Não é para tanto que até skatista olímpico já andou na Quadrinha Life.

O skate é fenômeno urbano de muitas ações sociais insurgentes que transformam formas concretas subjetivas em formas concretas objetivas no interior do planejamento urbano (Miraftab, 2016). Ou seja, há espaços de formas concretas subjetivas criadas pelo Estado que não fazem nenhum sentido de ser, se tornam espaço morto. Enquanto há formas concretas e insurgentes de ocupar e ressignificar o construir das cidades, que estabelecem a conexão de ser o espaço luminoso.

O espaço ocupado e ressignificado passa a ter uma função social na comunidade, que transmuta os arranjos do comércio local, da mobilidade alternativa e do mercado das marcas de skate da região. Importante destacar, nessa perspectiva, o intercâmbio de skatistas nacionais e mundiais, onde a comunidade local passa a ter o contato com pessoas de diversos lugares do mundo. A integração do skate na comunidade trouxe interação econômica e cultural entre os skatistas e a comunidade local.

As experiências entre o skate e o cotidiano renovou as vivências naquele espaço opaco (Ribeiro, 2012). Agora, passaram a ser repletas de sorrisos, desabafos e palavras encorajadoras. Elas também formam esses skatistas para a sociedade do caos. Entre o andar de skate e a família estão os desafios de se manter do skate (amador ou profissional) ou ter que ir trabalhar em profissões diversas. A Quadrinha Life torna-se o refúgio desse caos social, lá estão as pessoas que corajosamente ocuparam e transformaram o lugar para o descanso e o lazer. A terapia, na prática de skate, é coletiva, motivo de a expressão vivências ser recorrente nas conversas dos skatistas. Esse espaço torna-se o lugar das vivências dos outros, ou dos muitos outros que vão skatear suas manobras acrobáticas. O skate torna-se o canal de muitas vivências entre o manobrar (fazer manobras de skate) e desabafar a realidade dentro e fora do skate.

O abraço é comum entre os skatistas: quem chega na Quadrinha Life recebe um abraço afetuoso, como se dissesse “seja bem-vindo, pode chegar com suas vivências e suas manobras, aqui o espaço é seu também”. A prática de skate traz o aprendizado de muitas vivências, entre elas, a parceria de apoiar os outros skatistas com uma peça de roupa, um tênis, um shape, entre tantas outras ajudas, e todos os picos tendem a ter essa característica colaborativa, como na Quadrinha Life. Essas vivências são marcadas por gerações de skatistas, que passam da tradição um para outro, experiências que só quem anda de skate pode ter. Significa que qualquer pessoa que vai andar de skate pode ter essas vivências por tratar de experiências intimamente ligadas às trocas.

As trocas são o enredo das vivências. São tantas e múltiplas trocas singulares, que as trocas se tornaram tradição entre os skatistas. Quando da decisão de ocupar uma quadra abandonada e construir um pico de skate, as trocas imediatas acontecem, entre os que podiam ajudar financeiramente e os que podiam ajudar com a mão na massa, ou tudo misturado. As trocas são símbolos naturais da vida em sociedade, e no meio urbano, na construção alternativa de espaços, e também nas relações íntimas do skate. Quando skatistas da periferia estabelecem um conjunto de ações que irá exigir trocas imediatas, como ocupar um espaço e reconstruir outro, a troca se torna um compromisso natural.

Não é apenas de ação transformadora do espaço na Quadrinha Life que se subsiste, tem as festas. As festas da Quadrinha Life são os momentos de interação entre a prática de skate e um bom churrasco e cerveja. A festa é um momento de descanso e lazer, o contato com a família e amigos. Aqui, também as trocas são importantes, a vaquinha (o que a pessoa pode contribuir em dinheiro), trazer alguma coisa de alimento e bebida, mas se não tiver, não tem problema, pode participar da festa. A festa é símbolo de unidade e encontro. A tecnologia é importante para as chamadas das pessoas, geralmente esses chamados são realizados nas redes sociais ou por grupos de WhatsApp, quanto mais pessoas participarem, mais animada a festa fica. Geralmente, em dia de festa, a Quadrinha Life enche de gente. É uma delícia! A festa é o momento de quietude da ação, ou podemos considerar processo da ação. Para a Quadrinha Life é o momento de tranquilidade.

O primeiro caminho para entender a importância da Quadrinha Life neste trabalho começa pela ação social insurgente desses personagens. A conexão da prática de skate está intimamente ligada às ações sociais insurgentes nos territórios, sejam eles na periferia ou na centralidade das cidades. A intervenção de skatistas no planejamento urbano formal normativo é característica desde sua origem, quando se colocaram rodas em uma prancha de surfe para surfar no asfalto das ruas da Califórnia, nos EUA. As ações de utilização dos espaços com a prática de skate são naturalmente de sua essência street skate em qualquer lugar. Agora, sobre as ações sociais de intervenção do espaço, trata-se de um coletivo de skatistas atuando para uma tentativa de prática da permanência. Ou seja, ocupar um espaço público ou privado estabelecendo-se um pico é ação social coletiva do skate. Diferente da ocupação provisória do espaço (Bey, 2018), os quais são somente uma passagem, um momento de interação entre o skate e o espaço urbano que pode se transformar em um pico (permanente) ou não.

As ações sociais insurgentes nos territórios são processos em curso, novas leituras de fazer, ações de liberdade, a valorização do presente e o predomínio de estratégias no espaço banal. A ação social insurgente nos territórios é comportamento ativo de estratagemas de usos da desobediência que rompem com as seleções espaciais de uso normativo. As ações sociais insurgentes dos skatistas nos territórios são um movimento de estímulos no espaço banal dos muitos outros, das transgressões coletivas de atos regulamentados (Ribeiro, 2011).

A professora Ana Clara Torres Ribeiro explica que as ações sociais estão intimamente associadas aos sujeitos da ação, à conjuntura e aos lugares (Ribeiro, 2009). Quer dizer, em um quarteirão de um bairro periférico ter quatro quadras poliesportivas e uma delas estar abandonada, faz sentido uma ação social de ocupação e ressignificação nesse espaço por outros sujeitos que ficaram fora do desenho normativo estatal.

No bojo da ação social insurgente, está uma das características mais importantes dos skatistas: a autogestão. Trata-se da famosa vaquinha, da mão na massa, façamos nós mesmo, etc. É a insurgência da espontaneidade da regra de colaborar para o todo. É uma forma de compreender a realidade vivida coletivamente sem alienação do Estado que alimenta ideias e forças (Duvignaud, 1974). A cultura da vaquinha, da mão na massa e façamos nós mesmo está imbricada com as vivências e as trocas desses sujeitos da ação.

As ações sociais insurgentes dos skatistas têm como pilar as trocas entre si, seja na vaquinha, seja em doação de equipamento, e das trocas das vivências entre si. Nessa perspectiva, as trocas entre skatistas são um fenômeno comunicativo de reciprocidade coletiva geracional do grupo (Duvignaud, 1974). Quer dizer, essa característica particular do skate é geracional da racionalidade das práticas dessas vivências. Ou seja, uns ajudando os outros, todos ajudando um, um ajudando todos, um movimento instrumental de gerações de práticas que corroboram para tantas finalidades.

No interior das ações sociais insurgentes dos skatistas estão orquestradas as festas, que para o professor Harkim Bey fazem parte das vivências coletivas de estabelecer novas conexões para além do cotidiano (Bey, 2018). A festa tem vários sentidos e significados, posto sua necessidade de conexão na prática de skate, o todo, ou o tudo, sempre está em festa, logo, andar de skate é estar em festa. O significante da ocupação do espaço público pela prática de skate terá o seu sentido a posteriori diante da festa. Não é difícil encontrar skatistas sempre em rodas de conversas e sorrisos espontâneos, trata-se da alegria da festa do skate. O cotidiano e a vida real são esquecidos na festa do skate.

O território usado e praticado (Ribeiro, 2003) do cotidiano dos skatistas periféricos, o qual é o caso desse trabalho, permeia outras nuanças, como a vida ritmada do trabalho e o lazer. A geografia do cotidiano desses muitos skatistas que contorna um desenho circular de processos, ou seja, o cotidiano desses agentes é itinerante, sem perda de tempo, com fluxo contínuo entre o trabalho, casa e o lazer do skate.

A Quadrinha Life um espaço ocupado e ressignificado, contorna a geografia do cotidiano, tornando-se o ponto de encontro de skatistas e da própria comunidade local. O encontro com o novo, com as novas experiências e saberes locais se internacionaliza. O ponto de parada para descansar andando de skate. O skate pode ser somente um código de entrada nesse ponto de encontro, o que pode acontecer quando uma pessoa com skate quer apenas socializar com as pessoas e o espaço de vivência.

Esta reflexão acanhada, e diante da grandeza dos fatos e acontecimento da Quadrinha Life, tem no seu interior comemorar as ações sociais insurgentes do skatistas da zona leste da cidade de São Paulo, que ocuparam, deram luz ao que estava na escuridão de uma quadra pública abandonada, trazendo uma experiência social exitosa diante ao planejamento urbano hegemônico. E nessa perspectiva, estabelecemos o compromisso de traduzir essa aprendizagem, que reflete também, tantas outras experiências insurgentes de ocupar os espaços públicos e estabelecer um novo sentido aos territórios de intervenção com prática de skate. Esse compromisso conseguiu de alguma forma apreender cinco sentidos dessas ações sociais insurgentes promovidas pelos skatistas da Quadrinha Life, são eles:

  1. Que as ações sociais insurgentes são coletivas;
  2. Que as ações sociais insurgentes são autogeridas;
  3. Que as ações sociais insurgentes são democráticas;
  4. Que as ações sociais insurgentes são realizadas de trocas e vivências; e
  5. Que as ações sociais insurgentes são motivos de festas.

Para essa reflexão, que aqui tentamos fazer, ficamos apenas com esses cinco aprendizados, porém não são taxativos, nem tão pouco conceituais ou teóricos, pois as ações sociais insurgentes despontam de práticas singulares no interior das contradições das cidades. Extraímos essas cinco compreensões face às ações sociais insurgentes dos skatistas da Quadrinha Life.

Quero dizer, também, que fiz parte dessa ação social insurgente desde o começo, desde o primeiro dia em que limpamos e furamos a quadra, desde as ideias de ter um pico perto de casa. Aprendi, cresci e compartilhei toda a experiência da Quadrinha Life nas minhas vivências dentro e fora do skate.

Viva a Quadrinha Life! Viva as ações sociais insurgentes! E parabéns para todos os idealizadores, todos que participaram direta e indiretamente dessa ocupação e manutenção do espaço, que é coletivo, democrático e geracional. Parabéns, Quadrinha Life pelos seus dez anos de luz.


Referências

BEY, Hakim. TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Veneta, 2018.

DUVIGNAUD, Jean. A sociologia: guia alfabético. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1974.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Cartografia da ação social: região latino-americana e novo desenvolvimento urbano. En: PUGLIESE, H.; EGLER, T. C. (Compiladores). Otro desarrollo urbano: ciudad incluyente, justicia social y gestión democrática. Buenos Aires: CLACSO, pp. 147-156, 2009.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Territorio da sociedade: por uma cartografia ds ação. En: SILVA, Catia Antonia da. Territorio e ação social: sentidos da apropriação urbana. Rio de Janeiro: Lamparina. pp. 19-34, 2011.

RIBEIRO, Ana Clara Torres. Homens Lentos, Opacidades e Rugosidades. Redobra, n. 9, ano 3, 2012. Disponível em: http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2012/04/redobra9_Homens-Lentos-Opacidades-e-Rugosidades.pdf. Acesso em 28 de jun. 2025.

MIRAFTAB, Faranak. Insurgência, planejamento e a perspectiva de um urbanismo humano. Revista Brasileira de Estudos Urbanos. (online). Recife, v.18, n.3, p.363-377, 2016.

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