Como as IAs turbinam a especulação imobiliária

Nos EUA, o software RealPage mostra tendência no mercado imobiliário: usar algoritmos para inflar os preços dos alugueis. Só em São Francisco, 19 milhões de imóveis são geridos por essa tecnologia. Dados sensíveis sobre as cidades caem nas mãos do rentismo…

Uso de softwares têm permitido a proprietários e grandes empresas imobiliárias formar cartéis para definir preço de aluguel em diversas cidades do mundo. (Foto: Domínio público / PxHere)
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Por Pablo Pérez Ruiz, com tradução na Revista Opera

Nas últimas décadas, o tema habitacional tornou-se um campo de batalha onde os mais poderosos impõem suas próprias regras. Esta realidade ficou ainda mais evidente com a recente revelação de que os grandes proprietários, na sua ânsia de maximizar lucros, se aliaram para fixar preços através do uso de softwares especializados.

O Departamento de Justiça dos Estados Unidos acaba de apresentar uma ação antitruste contra algumas das maiores empresas de locação imobiliária do país, como Greystar e Blackstone, por participarem de um esquema de fixação de preços por meio de algoritmos. Esses algoritmos, projetados para “prever” os preços de mercado, na verdade servem como ferramentas de controle que permitem aos proprietários se coordenarem para manter os preços artificialmente elevados. Longe de competir entre si, os grandes proprietários se agrupam para garantir que os aluguéis continuem subindo, mesmo quando a oferta de moradias aumenta.

O mito da oferta e da demanda

O mercado imobiliário sempre foi um terreno onde a concorrência é distorcida pela concentração de poder. Embora a teoria capitalista repita incessantemente que as leis da oferta e da demanda devem reger esse mercado, a realidade se empenha em provar o contrário. Embora muitos acreditem que a escassez de moradias é o único fator a impulsionar o preço dos aluguéis, a verdade é que o aumento dos preços tem mais a ver com a manipulação do mercado por parte dos grandes atores do setor do que a uma concorrência legítima.

Em cidades como São Francisco, onde a crise imobiliária é uma das mais graves dos Estados Unidos, a situação tornou-se ainda mais evidente com a descoberta do uso do software RealPage. A RealPage é uma empresa de gestão de receitas imobiliárias que oferece recomendações de preços geradas por computador a mais de 31 mil proprietários que administram mais de 19,7 milhões de imóveis para aluguel em todo o país, recomendações que sempre parecem favorecer o aumento dos aluguéis, independentemente da taxa de desocupação ou das necessidades básicas de moradia. A empresa informou que presta esses serviços a 10% do mercado de aluguéis de São Francisco.

Essa ferramenta não apenas prevê os preços dos aluguéis, mas também incentiva uma forma de conluio entre os proprietários. Ao ter acesso a informações competitivas sensíveis, os grandes locadores podem ajustar seus preços e estratégias sem precisar competir de forma real. Dessa forma, os preços continuam subindo, independentemente do aumento da oferta de moradias.

O poder oculto dos algoritmos

Com a introdução de algoritmos como os da RealPage, a capacidade dos grandes proprietários de manipular os preços chegou a um nível ainda mais sofisticado. Esses algoritmos permitem que os proprietários analisem e compartilhem informações sobre os preços de seus concorrentes, estabelecendo preços semelhantes. Isso mostra que, embora o mercado imobiliário se apresente como um mercado competitivo, na realidade ele é controlado por poucos atores que mantêm os preços elevados por meio de conluio, e não da concorrência.

É um jogo de poder, não de mercado, no qual os algoritmos foram transformados em mecanismos de controle que garantem que os grandes locadores continuem lucrando, independentemente da oferta e da demanda real. O domínio da RealPage nos mercados de aluguel, onde os preços subiram vertiginosamente, juntamente com suas próprias afirmações de gerar receitas acima dos preços de mercado, traça o panorama de uma empresa que facilita um cartel informal que permite aos rentistas aumentarem os preços além do que as supostas leis da oferta e da demanda permitiriam.

A existência e o sucesso da RealPage são indícios de um problema mais profundo no mercado imobiliário, um problema que requer uma reformulação fundamental da economia política da habitação.

Espanha nos anos 2000: um exemplo claro

Na Espanha, vimos esse fenômeno se manifestar de maneira semelhante. Durante os anos 2000, apesar do aumento da oferta de moradias e da expansão do mercado imobiliário, os preços nunca caíram, até que a bolha estourou. O mercado imobiliário espanhol era dominado por construtoras e bancos que, em vez de ver a concorrência como um incentivo para reduzir os preços, usaram seu poder para controlar e manter os preços elevados. Embora a construção de novos apartamentos aumentasse, os preços continuavam subindo.

Mas esse fenômeno não se limita à bolha imobiliária. Estudos recentes mostram que plataformas como Idealista e Fotocasa apresentam uma diferença notável entre o preço de oferta publicado e o preço real dos contratos de locação. Em Barcelona, os preços de oferta eram 33,83% mais altos do que os preços reais assinados, e em Madri, 28,06% mais altos. Isso reflete uma estratégia de marketing que inflaciona os preços. Esse tipo de prática demonstra que os preços não estão sendo inflacionados apenas pela demanda, mas também pelas estratégias de comercialização dos locadores e intermediários, que utilizam ferramentas tecnológicas para maximizar seus lucros sem levar em conta o bem-estar dos inquilinos.

A moradia como campo de poder

O que está em jogo não é apenas o acesso à moradia, mas a própria estrutura da nossa economia. Hoje, a moradia é um dos pilares sobre os quais se constrói a desigualdade social. Em um sistema onde não existe concorrência e onde os grandes atores se unem para fixar os preços, aqueles que não têm controle sobre sua moradia (inquilinos e hipotecados) são os que pagam o preço mais alto. Isso deixa claro que a moradia não é simplesmente uma questão de oferta e demanda, mas uma questão de poder. E, enquanto os rentistas, as imobiliárias e os fundos de investimento continuarem utilizando o mercado imobiliário para aumentar os seus lucros, o acesso à habitação continuará sendo um sonho para muitos.

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