Serão os astronautas garimpeiros?
Depois de amputar a Terra por minérios raros, a ganância volta seus telescópios ao espaço, em busca de motivos para esburacar o céu. Um asteroide já atiça apetites. Em breve, os mineradores espaciais poderão estragar de modo irreversível as paisagens celestiais
Publicado 08/08/2025 às 15:48

Por Eugênio Bucci, em A Terra é Redonda
Depois que Donald Trump anunciou seu chamado tarifaço, contra café, sal e aço, duas expressões de pouca fama entraram no linguajar oficial do governo: “terras raras” e “minerais críticos”. Um brinde aos meandros do vernáculo.
Sobre a primeira expressão, terras raras, há indícios de que em nosso país elas seriam parcimoniosamente abundantes, o que é semanticamente estranho, mas geopoliticamente bom – advérbios à parte, bem entendido. Quanto à segunda, minerais críticos, convém avisar desde logo que o nome não vem de conceitos herdados à Escola de Frankfurt.
Na verdade, a designação não tem nada a ver com a Teoria Crítica, nem mesmo com empirias problematizantes; não há comprovações de que tenham sido detectadas ondulações marxistas em feixes de elétrons dos tais elementos químicos.
O adjetivo “crítico”, nesse caso, vem de uma atribuição menos filosófica e mais prática: os referidos minerais são indispensáveis para novíssimas indústrias, o que os torna, no jargão minerador, criticamente indispensáveis para ramos hoje igualmente críticos, porque essenciais para a grandeza da técnica, e “estratégicos” (vocábulo que não poderia faltar).
Quais são as novíssimas indústrias? Ora, muito simples: a transição energética, a corrida armamentista que usa inteligência artificial, as fábricas de celulares, os mercados de câmeras digitais e baterias. Pois bem: tendo em vista que a ocorrência dos minerais críticos em solo brasileiro não seria crítica de modo algum, mas até mesmo acrítica, pois dá como chuchu na serra, de tal sorte que, em se furando, tudo dá, quer dizer, tudo dá para fazer, inclusive negócios com o Tio Sam, haveria saída no fim da mina.
Há controvérsias, como tem ficado patente, sobre o padrão a ser adotado nos negócios com o Tio Sam, mas a coisa é mais ou menos isso aí.
Seja para um lado, seja para o outro, a moral da história é que seguiremos retalhando e eviscerando o nosso chão como tem sido desde o ciclo do diamante, ou desde mais cedo ainda. Outros ciclos virão, e virão em ciclos, como tem sido, ciclicamente. Sempre será como sempre foi: passados os furores da sanha perfuratória, ficam as cicatrizes incrustradas nas pedras e as amputações na linha do horizonte.
Ficam também, e mais fundas ainda, as dores secas nos versos de claros enigmas – claros porque pálidos – como as clareiras escalavradas “no rosto do mistério, nos abismos”. Seguiremos revirando o quintal, pois que “em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos”.
O poeta, “vagaroso, de mãos pensas”, nunca descansa, nem teria como descansar. “A máquina do mundo” não dá trégua. O dinheiro não dorme, o capital não tira férias e o extrativismo não cessa.
Com a palavra, Max Weber. “O poderoso cosmos da ordem econômica moderna (…) determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem (…) e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última gota de combustível fóssil”. A frase aparece num dos parágrafos finais de A ética protestante e o espírito do capitalismo, livro lançado há 120 anos – e olhe que ainda falta muito para darmos conta de queimar a última gota.
O petróleo envelheceu e perdeu o elã, mas às vezes ainda ouvimos falar dele. Nestes dias mesmo, pipocaram festejos por mais uma descoberta oceânica nas funduras mais escuras do pré-sal. Falar em xisto betuminoso não excita mais ninguém, mas a humanidade continua obcecada por barris de alta ou de baixa octanagem. Resultado: o plástico que viaja em suas artérias, improvável leitor, vai sobreviver a você.
Não contente em tosquiar seu torrão natal, a ganância volta seus telescópios para o espaço sideral, em busca de motivos para esburacar o céu. O asteroide 16 Psyche, localizado no Sistema Solar, atiça apetites. Ele difere de seus pares, normalmente compostos de gelo ou de rochas, e tem um corpo astral quase que totalmente metálico: ferro, níquel, ouro e, provavelmente, platina. Tilintam as caixas registradoras.
Que o nome de 16 Psyche não passe registro: homenageando a deusa da alma, o objeto vem sendo reverenciado não pelo que tem de metafísico ou de místico, mas pelo que tem de metal – ou, mais propriamente, pelo que tem de vil metal.
Com cerca de 280 quilômetros de diâmetro, soma valores, segundo estimativas noticiadas nesta semana pelo portal Uol, que ultrapassariam com folgas intergalácticas o PIB mundial, atualmente calculado em 111,3 trilhões de dólares.
Em breve, a civilização começará a contratar astronautas garimpeiros, aos quais encarregará de estragar de modo irreversível as paisagens celestiais. Se puderem interferir no equilíbrio das ondas gravitacionais e, de quebra, produzirem riscos inéditos de colisão entre os astros, melhor ainda. Serviço completo.
A mineração espacial triunfará em operações críticas e ousadias raras, mobilizando cifras multitrilionárias. Já faz parte dos planos mais mirabolantes das ambições mais angustiantes. Vimos isso no cinema de ficção científica. Veremos em breve em cartaz na realidade megalomaníaca.
Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]
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