SUS e os novos desafios da participação popular
Presidente do CNS reflete sobre o papel dos Conselhos de Saúde hoje. Como podem contribuir com políticas para a indústria da saúde e programas como o Agora Tem Especialistas? E de que forma se posicionar diante de ataques que tentam diminuí-los?
Publicado 07/08/2025 às 14:03

O modelo participativo do Sistema Único de Saúde é uma das principais conquistas da Reforma Sanitária, responsável por impulsionar o envolvimento dos usuários e trabalhadores da saúde com os rumos do SUS. Ela se concretiza por dos conselhos de saúde, órgãos colegiados, permanentes e deliberativos que estão presentes em cada uma das esferas de governo: federal, estadual e municipal.
Contudo, são conhecidas as limitações – e, por que não, distorções – de que sofrem muitos conselhos locais, municipais e estaduais de saúde: fazem poucas reuniões, não têm suas recomendações implementadas e, ainda, são instrumentalizados politicamente, aturando fortes pressões. Diante deste cenário, que medidas e mecanismos poderiam dar novo fôlego à participação social?
Entendendo que os desafios que dizem respeito ao modelo participativo da saúde pública brasileira são centrais para a discussão do futuro do SUS – principal objetivo do programa –, Outra Saúde convidou Fernanda Magano, presidenta do Conselho Nacional de Saúde (CNS), para sua série de entrevistas SUS 35 anos. O programa introduz os debates que irão compor um seminário com debates para celebrar o aniversário da lei que regulamentou o sistema público de saúde, organizado junto de entidades parceiras (saiba mais e se inscreva aqui).
Além de ser o órgão responsável por fiscalizar as ações do Ministério da Saúde, o CNS tem o papel, como mediador entre a população e as instâncias do poder público, de promover a participação social no SUS por meio de conferências, fóruns e comissões intersetoriais. Após o desmonte da saúde pública com o governo Bolsonaro e o aprofundamento de desigualdades na pandemia, que também refletiram na área, a partir de 2023, com o início do governo Lula e com a ex-ministra Nísia Trindade à frente do Ministério da Saúde, o grande desafio era reconstruir o SUS. Parte essencial desta reconstrução foi, justamente, o resgate de muitos dos princípios fundadores do SUS, como a participação social, o municipalismo e o pacto federativo.
Perguntada sobre avanços e desafios persistentes, Fernanda explica que, mesmo que se tenha avançado muito na reconstrução do SUS, ainda é preciso fazer a defesa do nosso sistema de saúde, inclusive a partir do enfrentamento a políticas e programas construídos no Ministério da Saúde, como, por exemplo, o Agora Tem Especialistas — que tem sido, de acordo com ela, pauta permanente no pleno do CNS. “O Conselho tem avaliado que, para usuários do SUS, o programa tem sido muito recebido sob a perspectiva de que ele poderá ajudar a resolver problemas que estão no limite do inaceitável, como as longas filas”, diz a presidenta. Por outro lado, isso não significa que, por ser uma política favorável ao usuário do SUS, ela não precise ser acompanhada e fiscalizada por aqueles que estarão em contato direto com ela – sobretudo nas UBSs dos milhares de municípios do país – e que poderão melhor dizer se ela tem sido eficiente ou não. É aí que reside a importância da criação de novos mecanismos de participação e controle social.
Falando em avanços do atual governo Lula, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) tem sido um dos destaques da Saúde – desde o governo de transição –, propondo o fortalecimento da integração entre saúde e desenvolvimento a partir de uma base econômica, tecnológica e de inovação de saúde. Como lembra Magano, “o CEIS é extremamente importante, sobretudo considerando o que passamos com a pandemia referente à falta de insumos. Por isso, podemos pensar que, por si só, a ciência e a tecnologia, a produção de medicamentos e afins são o suficiente; mas, para que esses mecanismos sejam realmente eficientes, ela deve estar sob controle da própria população, no sentido de que elas precisam não só saber do trâmite de ações e políticas implementadas, mas participar ativamente da construção destas”.
Por último, falou-se sobre os entraves da Lei 14.874/2024, que dizem respeito, sobretudo, à participação social. A chamada “Lei de Pesquisa Clínica”, ou até mesmo “PL das Cobaias” por alguns de seus críticos, foi proposta há cerca de uma década na Câmara dos Deputados e passou por diversas modificações até finalmente ser aprovada em 2024. À época, o presidente Lula sancionou o projeto, mas vetou, a pedido de entidades científicas, de saúde e de trabalhadores do setor farmacêutico, dois dispositivos. No dia 17 de junho, o Congresso Nacional – talvez o mais descaradamente antipovo nos últimos tempos – derrubou os vetos do Executivo com votação expressiva dos parlamentares. “Evidente que a derrubada dos dois vetos é prejudicial; mas a Lei, em toda sua base, ainda é muito ruim”, declara Fernanda.
Há, ainda, outra falha notável na legislação, que não foi contemplada pelo veto do governo: a mudança da governança da revisão ética das pesquisas clínicas, antes lideradas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), na coordenação do sistema Comissão Nacional de Ética em Pesquisa/Comitês de Ética em Pesquisa (Conep/CEPs). A Comissão, em carta colegiada ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha, escreve que “a desqualificação e extinção da Conep na proposta apresentada pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS) usurpa sua construção histórica, ao entregar a gestão do sistema exclusivamente ao Ministério da Saúde”, sem a presença de membros que sempre defenderam e trabalharam pela defesa dos participantes de pesquisas. Os membros do colegiado denunciam não só o desmonte do sistema Conep/CEPs, mas também a acintosa proposição de impor à Conep a função de “CEP acreditado”, desconsiderando sua função na elaboração de diretrizes éticas, coordenação, treinamento, monitoramento e outras atribuições, além do acompanhamento de denúncias de irregularidades, que afetam diretamente os direitos, segurança e bem-estar dos participantes de pesquisa.
Sobre isso, Fernanda explica que a postergação da lei foi positiva e necessária, e que o CNS foi fundamental para a sua postergação e para que vetos pudessem ser vislumbrados e negociados. Ela explica que o CNS, órgão ao qual está ligado o sistema Conep/CEPs, tentou, inclusive, o arquivamento da “Lei de Pesquisa Clínica”, já que, devido a fatores como a pandemia, o governo Bolsonaro e um Congresso marcado pela presença da direita e da extrema-direita, o Projeto desta Lei acabou chegando para aprovação em um cenário muito desfavorável a quem de fato defende ética na pesquisa. “O Conselho, em 2024, também tentou articular com a Casa Civil mais vetos por parte do presidente Lula, sobretudo para que não houvesse uma deturpação das funções do sistema Conep/CEPs. Todo o sistema está temeroso porque, tirando a pesquisa da instância do controle social, tem-se muita dificuldade no monitoramento da ética em pesquisa, que é fundamental”, relata a representante do CNS.
Sobre o estado da negociação, o CNS, junto a várias entidades da área da saúde, está tentando emplacar com a SECTIC algumas alternativas para que se tenha, além de tudo, mecanismos que garantam a participação social, como, por exemplo, repensar o fraturamento do sistema Conep/CEPs. Fernanda Magano explica que o CNS também está trabalhando para que, dentro do Conselho, haja uma comissão intersetorial de ética em pesquisa para que se fiscalize e cobre o pleno funcionamento da Lei a partir do seu decreto de regulamentação.
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