Psicodélicos: poderá o DMT ser usado no SUS?
UFRN conduz estudos com substância psicoativa da jurema e ayahuasca, uma potencial aliada no tratamento da depressão. Mas o caminho até a incorporação na saúde pública é longo. Leia mais em trecho exclusivo de obra recém-lançada pela Editora Fósforo
Publicado 06/08/2025 às 09:35 - Atualizado 06/08/2025 às 18:38

Por Marcelo Leite, autor convidado
Nos últimos anos, têm se multiplicado as investigações sobre a eficácia do uso de psicodélicos nos mais variados tratamentos de saúde mental. Em meio à explosão de diagnósticos de depressão e ansiedade, este pode ser um caminho para enfrentar a armadilha da medicalização generalizada do sofrimento da população. Por atender um contingente de 200 milhões de pessoas com o seu Sistema Único de Saúde (SUS), não seria o Brasil um país em posição privilegiada para fazer movimentos nesse sentido em sua rede pública?
Uma das mais promissoras iniciativas nesse sentido é conduzida pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Lá, pesquisadores exploram o uso do DMT, substância psicoativa conhecida das populações originárias por sua presença na jurema e na ayahuasca, no tratamento da depressão. Até aqui, os resultados têm sido muito promissores. Neste ano, nossos parceiros da Editora Fósforo publicaram A Ciência Encantada de Jurema, livro em que Marcelo Leite conta “como uma raiz da caatinga uniu indígenas e africanos na resistência anticolonial e hoje inspira pesquisas psicodélicas”. No trecho a seguir da obra, o autor entrevista participantes do estudo potiguar e apresenta os desafios de levar essa empreitada a mais brasileiros, via SUS. Boa leitura! (G.A.)
Excerto do capítulo “A deusa Jurema e a diaba da ciência contra o dragão da ansiedade”
Por Marcelo Leite
O hospital Onofre Lopes, da UFRN, vinculado ao SUS, realiza de oitocentos a novecentos atendimentos psiquiátricos por mês, dos quais 10% a 20% são de pacientes com depressão. A cada semana, entre dez e vinte deles são diagnosticados como portadores da forma resistente do transtorno, pessoas que já tentaram dois ou mais medicamentos antidepressivos sem sucesso. Não faltarão participantes para o teste clínico em parceria com o Instituto do Cérebro da UFRN (ICe), informa Emerson Arcoverde Nunes. O psiquiatra de quarenta anos na época da entrevista, em maio de 2022, também colaborou com Dráulio Araújo no estudo pioneiro com ayahuasca.
A zona norte de Natal, exemplifica o médico, tem cerca de 400 mil moradores e conta apenas com um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), ainda por cima especializado em abuso de álcool e drogas, não em transtornos de humor como a depressão. “Fica tudo com a gente”, queixa-se o psiquiatra. Para complicar, com a priorização do atendimento a infectados com covid-19 em 2020-21, o hospital viu os leitos psiquiátricos reduzidos de 130 para 65. O serviço público de saúde mental precisa urgentemente de alternativas de tratamento, segundo o médico. Arcoverde põe muita esperança na DMT: “Quanto mais opções, melhor, e opções novas”, diz. Ele cita o anestésico cetamina (ou quetamina), que vem sendo usado com algum sucesso contra depressão, mas não funciona com metade dos pacientes. “A DMT tem efeito forte e agudo, pode tirar da ideação suicida”, espera o psiquiatra. “A vantagem da DMT é ser uma medicação diferente, com mecanismos de ação diferentes e diferentes contraindicações”, argumenta. As mais recentes inovações farmacológicas para depressão surgiram há quase meio século, com os inibidores seletivos de recaptação de serotonina, neurotransmissor em cujo circuito os psicodélicos também agem.
Marcelo Falchi Parra Carvalho Silva, 32 anos, parceiro de Arcoverde no ICe e no hospital, é também psiquiatra. Natural de Votuporanga (SP), esteve baseado até outubro de 2021 em Campinas, onde atuou com Luís Fernando Tófoli e Isabel Wiessner em experimentos sobre o efeito de LSD na cognição. Largou tudo e se mudou com apenas duas malas para Natal, atraído pela chance de estudar a DMT, contratado pela empresa britânica Biomind como chefe da unidade de pesquisa psiquiátrica. Sua fascinação com a molécula vai ao ponto de carregar uma tatuagem dela nas costas (a primeira experiência com a n,n-dimetil-triptamina, “impactante”, ocorreu ainda na residência em psiquiatria). Trabalhou no SUS e iniciou um mestrado na Unicamp, que viria a defender em 2024, mas se sentia insatisfeito com a precariedade dos procedimentos em sua especialidade. Queria entender melhor a consciência e sua alteração sob efeito de psicodélicos, o que chama de “cartografia fenomenológica”. Sua função principal em Natal é trabalhar como médico-cientista, explica. “Lá [em Campinas] eu tinha de trabalhar como médico em uma enfermaria do SUS, prescrevendo tratamentos de eficácia limitada, dedicando-me em segundo plano à ciência.”
Falchi considera inviável, para atendimento no SUS, um modelo similar à psicoterapia apoiada por psicodélicos tal como vem sendo investigada nos Estados Unidos. Além de caro, o acompanhamento das longas sessões de dosagem por dois terapeutas dá margem a interferências indevidas dos profissionais que não forem muito bem treinados, pois o paciente se torna sugestionável: “É uma janela muito grande para o médico inserir coisas indesejáveis, por maldade ou despreparo”, preocupa-se (e, com efeito, pelo menos um caso de abuso sexual por terapeutas fez parte das objeções da FDA, em agosto de 2024, à terapia com MDMA para estresse pós-traumático).
Caso sessões mais curtas de DMT se revelem eficazes contra depressão, o psiquiatra paulista vislumbra um esquema de atendimento diferenciado. Por exemplo, clínicas que se especializem em aplicar doses de psicodélicos, monitorar pacientes durante o procedimento e devolvê-los ao serviço psicológico ou psiquiátrico em que já se tratavam. A DMT entraria com uma lufada de neuroplasticidade, sem elaboração de conteúdos no auge da experiência psicodélica, breve e intensa. Só no período subsequente, de efeitos subagudos, ocorreria tratamento psicoterápico em sentido estrito. Para isso, seria necessário capacitar um número bem menor de terapeutas do que no protocolo usual de psicoterapia psicodélica, e o treinamento poderia ser mais curto. “Por eu ter vindo do SUS, sei que não vai dar. Para a Vera Fischer dá; para o seu Cícero, não.”
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