IA: A maçã envenenada de Donald Trump

EUA lançam plano de ação internacional para setor. Promessas: “democracia”, “integração econômica” e “confiança mútua”. Cilada: subordinar países aderentes aos padrões tecnológicos e à hegemonia geopolítica dos EUA, em esforço para bloquear cooperação Sul-Sul

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Por James Görgen

Título original:
O Plano de Trump para IA: riscos inerentes ao Sul Global


Depois de quase seis meses, e conforme havia determinado poucos dias depois da posse1, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, lançou com pompa e circunstância, em 23/7, sua estratégia de inteligência artificial — o America’s AI Action Plan. Trata-se de um documento de menos de 30 páginas onde sua administração traça os rumos que o país deverá tomar para manter a dianteira em relação à China na corrida da tecnologia que está se alastrando por todas as frentes. E mostra querer os vizinhos e aliados a seu lado.

Com uma retórica que, à primeira vista, parece defender valores universais comuns para uma IA que sirva a todos os países, o documento também pode ser lido como mais uma ameaça de ação hegemônica dos EUA sobre os países do Sul Global. Principalmente, para as nações que, como o Brasil, estão buscando uma via independente e soberana às duas forças que competem pela liderança em IA globalmente. Neste sentido, nesta análise vamos focar mais nas consequências externas do plano do que nos eixos que tratam de medidas voltadas ao mercado interno.

Em poucas palavras, pode-se resumir os três pilares do plano de ação2 da seguinte forma:

1. Governança democrática e direitos humanos

  • Promove o uso da IA de forma ética, centrada no ser humano, com base em direitos fundamentais.
  • Reforça valores democráticos como transparência, accountability, segurança e privacidade.
  • Defende “ambientes regulatórios favoráveis” que evitem barreiras desnecessárias à inovação.

2. Integração econômica e inovação

  • Estimula o crescimento econômico impulsionado pela IA com incentivos à indústria e comércio digital.
  • Promove interoperabilidade regulatória entre os países das Américas.

· Estabelece cooperação em pesquisa e inovação com bases comuns de dados, infraestrutura digital e redes de centros de excelência.

3. Capacitação e equidade

  • Incentiva a formação de mão de obra qualificada por meio de programas em ciência de dados, IA e ética digital.

· Preconiza a inclusão de populações vulneráveis e a redução da desigualdade digital por meio de capacitação técnica.

4. Infraestrutura digital resiliente

  • Reforça a importância de redes seguras, conectividade e computação de alto desempenho.
  • Defende investimentos públicos e privados em infraestrutura crítica de dados, incluindo centros de dados e redes de telecomunicação.

5. Segurança, resiliência e confiança

  • Promove o uso responsável de IA em segurança cibernética, combate à desinformação e resiliência institucional.
  • Incentiva a criação de sistemas confiáveis de IA e avaliação de riscos, além da proteção contra usos maliciosos.

Protecionismo intervencionista

Olhando com lupa, porém, os silêncios falam alto. E, também, os impactos não declarados na realidade tecnológica dos demais países. Em resumo, trata-se de um plano protecionista e intervencionista, como várias das medidas do segundo mandato de Trump, que traz riscos e desafios estruturais, principalmente, para estados nacionais da região. A começar pela ênfase na interoperabilidade regulatória e técnica entre as regras nacionais. Parece claro que, ao defender uma abordagem mais liberal para seu plano e buscar equidade com outras jurisdições, podem acabar preponderando os normativos, padrões, modelos e plataformas já consolidados pelos EUA, criando dependência tecnológica e cerceando a soberania digital, com o intuito de reduzir as outras nações a meras consumidores de tecnologia. Este alinhamento normativo favorável à inovação em detrimento da regulação pode inibir tentativas locais de regulamentação como a do PL 2.338/23, atualmente em apreciação pela Câmara dos Deputados do Brasil. Mais do que isso, pode frustrar iniciativas que prejudicariam os conglomerados estadunidenses, como política de dados locais, tributos sobre serviços digitais e exigências de interoperabilidade com softwares públicos.

Outro ovo da serpente importante de se olhar atentamente é a criação de infraestruturas compartilhadas e bases comuns de dados. Como já vem ocorrendo, estas duas propostas podem ampliar ainda mais o acesso das grandes empresas dos EUA a dados gerados nos países com menor capacidade tecnológica instalada, aumentando o colonialismo de dados — onde a riqueza extraída da economia digital não retorna às sociedades geradoras da informação — e anabolizando o poder econômico das big techs, que já possuem predomínio exacerbado nos serviços de processamento da chamada computação em nuvem e tendem a se estender para IA.

Por fim, mas não menos importante, estão as questões de cibersegurança e valores morais. A governança digital promovida pela administração Trump inclui o uso da IA em segurança nacional. Para quem viveu o caso Snowden, fica patente que esta defesa poderá ser usada como justificativa para intervenções tecnológicas ou vigilância em países considerados instáveis. Algo que tem potencial risco de ocorrer, levando em consideração a tendência dos EUA em exportarem seus conceitos de democracia e liberdade há muitas décadas.

Geopolítica trumpista em IA

Mas talvez nada seja mais preocupante para países em desenvolvimento do que o terceiro pilar do plano, onde o governo Trump deixa transparente como pretende expandir suas ações geopoliticamente para enfrentar as ameaças da China à sua liderança em IA. Aqui, vale uma descrição mais exaustiva e sistemática:

1. Uso responsável de IA em segurança e defesa

  • Incentivo ao desenvolvimento e uso de sistemas de IA por instituições públicas voltadas à segurança nacional e internacional.
  • Foco na transparência, controle humano significativo e no cumprimento das normas internacionais, como o Direito Internacional Humanitário.
  • Reforço da responsabilidade dos Estados em impedir o uso de IA para fins ofensivos ou desestabilizadores (ex: armas autônomas letais).

2. Combate à desinformação e proteção democrática

  • Uso da IA para identificar e mitigar ameaças híbridas, como campanhas de desinformação, ataques cibernéticos e manipulação de informação eleitoral.
  • Incentivo à cooperação entre Estados das Américas para identificar atores estatais e não estatais que explorem vulnerabilidades digitais.

3. Cibersegurança cooperativa e resiliência

  • Fortalecimento da infraestrutura crítica digital, com mecanismos regionais de detecção de ameaças, resposta rápida e compartilhamento de inteligência.
  • Criação de protocolos hemisféricos para contenção de crises envolvendo sistemas de IA e ataques a redes estratégicas (como energia, finanças, defesa).

Apesar da retórica de cooperação e estabilidade, esse pilar esconde uma série de riscos geopolíticos para países em desenvolvimento, particularmente aqueles que não compartilham os interesses estratégicos dos EUA. O primeiro deles é o fato de a estratégia pressupor que todos os países compartilham a mesma visão do conceito de “segurança”, que os EUA costumam usar de forma instrumental para justificar vigilância e sanções. Como está latente no debate sobre a importação de chips de IA desde o início deste ano, os países também poderão ter que alinhar sua política externa da agenda digital aos interesses de Washington sob pena de serem rotulados como “zonas de risco”.

Isso nos leva ao uso de IA em uma onda de crescente militarização das tecnologias digitais com a participação cada vez mais regular de empresas do Vale do Silício, como é o caso de Anduril, Palantir e OpenAI. Ao promover o uso de IA para defesa, o plano ignora as assimetrias bélicas entre os países. Como sabemos, os países latino-americanos não possuem capacidades de desenvolver sistemas autônomos de defesa, o que pode agravar a dependência de fornecedores estrangeiros, inclusive em contextos de conflito. No caso da governança em segurança internacional, a estratégia é ainda mais excludente ao não prever a inclusão equitativa de países em desenvolvimento nos fóruns de decisão sobre IA. Mais grave do que tudo, por razões óbvias, o AI Action Plan desconsidera totalmente a cooperação multilateral com blocos como BRICS, CELAC ou África, preferindo redes de alinhamento político ao estilo OCDE.

Outra arma importante em termos de diplomacia é a exportação de modelos de vigilância e “segurança democrática” para o combate à desinformação e crimes cibernéticos. Da forma como são desenvolvidos os sistemas de IA não é difícil direcioná-los para a vigilância algorítmica sobre populações marginalizadas, movimentos sociais e opositores políticos, bem como os próprios governos eleitos. Países com instituições frágeis ou capturadas podem adotar modelos prontos de IA para segurança, baseados em datasets enviesados, racistas ou descontextualizados da realidade local.

A ameaça chinesa

Mesmo não deixando isso explícito, a arquitetura geopolítica do plano de ação é apontada como uma resposta hemisférica direcionada a deter a crescente influência tecnológica da China e ganhar aliados em regiões como América Latina e Caribe. Construir um ecossistema digital interoperável sob liderança dos EUA, dificultando a entrada ou permanência de tecnologias, padrões e infraestruturas dominadas pela China (como Huawei, ZTE, TikTok, Alibaba Cloud, Deep Seek, etc). Não à toa, o documento traz bastante referência a redes de telecomunicações, uma das preocupações de Trump desde quando seu país perdeu a guerra do 5G para a gigante Huawei. Outra tentativa de enfrentar os grandes modelos chineses de IA é o estímulo a códigos e pesos abertos para os LLMs, coisa até então impensável para um país com desenvolvimentos proprietários como os do ChatGPT e Claude.

Uma menção explícita à China se dá no trecho que propõe a ocupação de espaços multilaterais, como G20, G7, ICANN e fóruns da ONU, a fim de conter o avanço da potência asiática na definição de padrões e protocolos estratégicos. Fica claro em várias passagens que a intenção é promover uma ordem digital ocidentalizada, baseada em valores como “transparência”, “accountability”, “governança democrática”, sem aceitar modelos regulatórios ou empresariais do “Oriente autoritário”. O texto vai direto ao ponto neste caso:

Liderado pelo Departamento de Estado e pelo Departamento de Comércio, aproveitar a posição dos EUA em órgãos internacionais diplomáticos e de definição de padrões para defender vigorosamente abordagens internacionais de governança de IA que promovam a inovação, reflitam os valores americanos e combatam a influência autoritária. (Pág. 20)

O fantasma do dragão oriental continua em outros momentos que tratam, por exemplo, da busca de infraestrutura digital soberana e vigilância sobre cadeias críticas resilientes focadas em redes digitais seguras e confiáveis, capacidade nacional de computação e armazenamento de dados, bem como fornecimento seguro de semicondutores e IA confiável. Com isso, os EUA buscam substituir ou impedir a expansão da China como provedor de tecnologia de base na região, promovendo investimentos alternativos e pressionando por padrões técnicos “seguros”. Discurso muito parecido com o promovido há poucos anos na guerra do 5G sob a marca OpenRan.

Ao tratar de segurança digital e combate à desinformação, o plano propõe criar sistemas de detecção de ameaças; combater “atores estatais e não estatais” que promovem instabilidade; e fortalecer a resiliência institucional contra manipulações algorítmicas. Embora não a nomeie diretamente, esse trecho alude claramente à preocupação dos EUA com operações de influência digital e diplomacia pública da China (e também da Rússia) na região — seja via plataformas como TikTok e WeChat, ou por meio de mídias estatais, universidades e centros culturais. Na linha mais comum de soft power, a proposta é também uma guerra de narrativas, promovendo um ecossistema de IA que blinde a região contra modelos comunicacionais e epistemológicos alternativos, rotulados como autoritários ou desestabilizadores.

O plano também reforça que os países que aderirem à proposta devem apoiar princípios de IA responsável e ética alinhada com democracias; adotar regras interoperáveis para comércio digital; e contribuir com fóruns multilaterais liderados por países do G7 ou OCDE. Esses pontos se opõem diretamente ao modelo defendido pela China, e o próprio Brasil, de atuação multilateral em foros como o BRICS, G77 ou ONU. Trata-se de uma espécie de cordão sanitário tecnológico, alinhando os países aliados com a estratégia de desacoplamento digital e comercial dos EUA frente à China. Em resumo, o plano visa isolar a China na governança global da IA, cooptando países latino-americanos para blocos normativos liderados pelo Ocidente.

Hegemonia digital

Depois de analisar suas 28 páginas, é possível entender que o America’s AI Action Plan representa uma tentativa dos EUA institucionalizarem uma nova hegemonia digital sob sua liderança, algo que tiveram ao longo das décadas de implementação da Internet mas que estão perdendo nos últimos anos. Ao promover a IA como ferramenta de defesa, contenção e vigilância, o plano ignora os desequilíbrios estruturais de poder, capacidade tecnológica e autonomia normativa que caracterizam o Sul Global. Aceitar ou não este “convite” para a região é um debate que precisa ser feito de forma nacional e estruturada.

Ao concluir a leitura do documento, fica a sensação de que os países do Sul Global, especialmente os da América Latina, precisam parar e discutir entre si como responder a esta proposta. Aderir de forma acrítica a Trump pode significar o fechamento de portas com a China e outras alternativas, o aumento da dependência tecnológica dos EUA em termos de infraestrutura, governança e comércio digital e a perda de margem de manobra na diplomacia internacional de IA. Mais do que isso, a manutenção da soberania digital exige a participação crítica e ativa no debate continental com reforço da cooperação Sul-Sul como contrapeso, além do desenvolvimento de infraestrutura própria, marcos equilibrados entre regulação e política industrial e capacitação local independente.

Especialmente no caso do Brasil, o grupo de trabalho que implementa o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), coordenado no âmbito do CIT-Digital, precisa se debruçar sobre este documento para descobrir a melhor forma de buscar o diálogo sem que necessite haver um alinhamento automático a um plano pouco democrático e que visa re-enquadrar a região como “quintal” do vizinho do Norte na agenda digital.

1A Ordem Executiva 14179, “Removing Barriers to American Leadership in Artificial Intelligence”, determinou que os Estados Unidos busquem manter o domínio na corrida global de IA e orientou a criação de um Plano de Ação de IA.

2Os três pilares são: Acelerar Inovação em IA; Construir Infraestrutura Americana de IA; e Liderar em Diplomacia e Segurança Internacional de IA.

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