Por que o Brasil precisa de um IBGE da Era Digital

Já não é possível construir políticas públicas ignorando a revolução dos dados e a IA. Instituto enfrentou, por seis anos, instabilidade e crise. A reconstrução começou, mas para retratar o Brasil em profundidade e ir além do convencional é preciso enfrentar três desafios

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Título original:
Mineração de dados e políticas públicas preditivas

O Brasil dos últimos anos foi tomado por um grande paradoxo. Por um lado, a demanda por dados estatísticos e geográficos cresceu no país frente ao avanço de uma nova agenda do desenvolvimento consagrada tanto pelas Nações Unidas (Objetivos de Desenvolvimento do Melânio de 2000 e Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis de 2012) como por importantes fóruns internacionais 1.

No contexto dinâmico da revolução dos dados impulsionada pela Era Digital, a governança pública baseada em evidências da realidade deveria ganhar centralidade na melhora tanto nas políticas adotadas como nos resultados a serem alcançados. Em função disso, surgiu a expectativa de que houvesse uma estrutura conceitual inovadora da capacidade institucional do Estado para fortalecer o Sistema Estatístico e Geográfico Oficial contemporâneo da esfera de formulação e avaliação das políticas públicas.

Mas, por outro lado, o Sistema Estatístico e Geográfico brasileiro terminou sendo fortemente abalado pelo processo de contenção orçamentária e financeira, com graves consequências para a atualização tecnológica, fortalecimento dos recursos humanos e cumprimento de sua missão institucional. Em seis anos (2016-2022), por exemplo, o IBGE, a maior e mais importante instituição de pesquisa pública do país, conviveu com intensa instabilidade institucional decorrente da passagem de cinco presidentes, sem realizar concurso público para os servidores permanentes e queda acumulada tanto no poder aquisitivo da remuneração de quase 25% como no orçamento exclusivo para estudos e pesquisas de 76,3%.

Desde o ano de 2023, contudo, o Sistema Estatístico e Geográfico Oficial voltou a ser fortalecido, com importante modernização do IBGE. Contribuiu para isso, a estabilidade institucional na gestão interna que permitiu realizar o maior concurso público da história do órgão, elevar em 71,9% o valor real da remuneração dos servidores temporários e de 7,4% dos servidores permanentes e, ainda, multiplicar por 2,6 vezes o orçamento orientado somente para estudos e pesquisas.

Dessa forma, o IBGE se prepara para assumir a condição institucional de coordenador do Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (Singed) que já em fase de implantação busca subsidiar a demanda de políticas públicas preditivas, compatíveis com a nova Agenda do Desenvolvimento própria da Era Digital. Os desafios são de três ordens.

O primeiro relaciona-se à necessária e urgente elevação da capacidade de processamento em larga escala das múltiplas fontes de dados públicos. Para tanto, tem grande importância o processo técnico de certificação científica para o uso adequado dos diversos bancos de dados e registros administrativos que já se encontram em fase de preparação para a integração.

Ao mesmo tempo, um o segundo desafio decorre da ampliação do desenvolvimento soberano no uso da Inteligência Artificial na governança estatística e geocientífica do conjunto das informações contidas no Singed. Isso porque o sigilo estatístico do IBGE impõe a garantia de que as informações individuais coletadas por suas pesquisas sejam confidenciais, sem poder tornar pública a identificação do informante.

O terceiro desafio se volta à importante aceleração colaborativa no uso de Ciências de Dados que se adiciona à robusta experiência e qualidade técnico-científica do IBGE no aprimoramento da produção oficial, permitindo o desenvolvimento de novas ferramentas e métodos de pesquisa. Com isso, a melhora na coleta de dados, com a possibilidade do desenvolvimento de novos modelos e indicadores estatísticos e geoespaciais à disseminação do conhecimento para a sociedade.

Dessa forma, as políticas públicas poderão contar com melhores evidências da realidade, ampliadas por inovadoras possibilidades de retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento da veracidade e ao exercício da cidadania. Mas diferentemente do setor privado, a prática da mineração de dados na administração pública brasileira tem sido ainda embrionária.

As políticas públicas seguem o padrão secular da Era Industrial, firmando-se ainda com base na realidade do presente do passado, observada por meio do instrumental de pesquisas e estudos convencionais. Acresce a isso a constatação de que parcela importante dos bancos de dados e registros administrativos do setor público se encontra cada vez mais dependente dos serviços ofertados pelas big techs estrangeiras. Estudo recente, conforme a publicação Contratos, códigos e controle: a influência das big techs no estado brasileiro, informa que o setor público do país teria comprometido cerca de R$ 23 bilhões no período de 2014 e 2025 com o pagamento das licenças de software, nuvem, segurança digital, tecnologia da informação e comunicação (TIC), entre outros.

Além disso, com a disseminação do uso da inteligência artificial, os dados públicos terminam alimentando a cadeia de aprendizagem de máquinas das grandes empresas estrangeiras de tecnologias. Uma nova forma de reprodução do subdesenvolvimento que emerge na Era Digital, concomitante com o gravíssimo esvaziamento da soberania de dados.

Tudo isso no contexto nacional de limite ao gasto público imposto pelo regime de austeridade fiscal, cujo impacto negativo tem sido crescente nas políticas públicas tradicionais. Alternativas a isso, capazes de reposicionar a condução nacional da soberania de dados, são fundamentais e não podem mais tardar.

Com o avanço tecnológico atual, o uso integrado de múltiplas fontes é compatível com procedimentos da mineração de dados, o que possibilita o alcance da política pública preditiva. A predição, por sua vez, não é previsão, mas modelagem realizada com a finalidade principal da análise por meio de tratamentos formais de inferência estatística.

Uma abordagem geral e abrangente a respeito da mineração de múltiplas fontes públicas de dados pressupõe ampliar o conhecimento existente da realidade pelas convencionais técnicas de estudos e pesquisas. Um novo patamar de sentido totalizante de análise se constitui, inovando com políticas públicas preditivas fundamentais nas ações de transformação do horizonte dos problemas e desafios trazidos pela Era Digital.

Em síntese, as políticas públicas preditivas apresentam-se como uma novidade estratégica, pois partem da possibilidade de antecipar problemas e otimizar o uso de recursos disponíveis com eficiência e eficácia no contexto da implementação de novas ações que melhorem o planejamento nacional. 

Essa nova abordagem em política pública busca ir além da descrição e reação a eventos. Utiliza-se, para isso, um conjunto variado e quantitativa de informações de múltiplas fontes, que possibilitam projetar tendências e desafios futuros com ações mais eficazes e proativa. Após quase 90 anos de sua criação, o IBGE se fortalece, modernizando tecnologicamente a sua capacidade estatística e geocientífica para melhor atender as demandas da sociedade brasileira em plena Esta Digital.

1 (Segunda Mesa Redonda Internacional sobre Gestão para Resultados do Desenvolvimento de 2004, em Marrocos, e Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda de 2011, na Coreia do Sul,  Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento de 2025, na Espanha)

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