Trump, o tarifaço e a política brasileira em aberto

O que realmente enfureceu o presidente dos EUA foi a defesa, pelo Brasil, do multilateralismo e da desdolarização. Atitude da Casa Branca permitiu a Lula recuperar força política, abalou o bolsonarismo e fez do Centrão a principal oposição. Como enfrentá-lo em 2026?

Foto: Ricardo Stuckert/Presidência
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As narrativas são variadas e cada uma mais tresloucada que a outra. Segundo Eduardo “Bananinha” Bolsonaro, o pseudo exilado que tem visto de turista nos EUA, Trump quer intervir no Brasil para “libertar” o seu pai-pai das cruéis perseguições do comunista Xandão. Imagino que se ele já fosse presidente em 2022, os marines teriam desembarcado no Rio de Janeiro para descobrir que a capital é em outro lugar. Ou os paraquedistas teriam saltado em Brasília para acabar com aquela eleição fraudada pela perigosa organização  comunista TSE,  beneficiando mais um comunista, o Lula. Com esta intervenção salvadora o energúmeno permaneceria no governo, de preferência sem Congresso ou Judiciário atrapalhando.

Bananinha se vangloria de ser o responsável pela ameaça de Trump, dada a sua “amizade profunda” com o governante americano. E acrescenta no seu discurso delirante que é bom o STF, o governo Lula, o Congresso e o povo brasileiro descubram rápido a solução para livrar Bolsonaro de seus muitos e comprometedores processos, ficando livre para candidatar-se a presidente no ano que vem. Caso isto não aconteça, Trump poderá adotar formas mais brutais de intervir, inclusive o uso de bombas atômicas. “Estou avisando, o relógio está clicando e o tempo é curto para evitar o desastre”.

É mole ou querem mais?

As mensagens do Zero 2 já seriam razão suficiente para interná-lo em um hospital psiquiátrico por sofrer de delírios e viver em um universo paralelo só dele. Mas, doidices e megalomanias à parte, há uma lógica perversa nas palavras e no comportamento do filho dileto de Bolsonaro. Em resumo, o cônsul do fascismo brasileiro nos EUA assume orgulhosamente a responsabilidade de levar o presidente do país (ainda) mais poderoso do mundo a ameaçar o Brasil, nas pessoas que representam as instituições da República: o presidente, a Corte Suprema e até o Congresso. Bolsonaro endossa os arreganhos de Trump que EXIGE que cessem as “perseguições” ao seu parceiro. O lema do bolsonarismo (“pátria acima de todos, Deus acima de tudo”) vale somente até a famiglia decidir buscar a pressão da potência do norte para dobrar as instituições brasileiras em seu benefício. Pegou muito mal, como veremos mais adiante.

A segunda narrativa a ser estudada é a do próprio Trump, e se a de Bananinha é transparente no seu absurdo, a do presidente americano é dura de entender.

O que está escrito na carta de Trump a Lula é, resumidamente, o seguinte:

  • “meu amigo Bolsonaro é objeto de uma ‘caça às bruxas’”.

Chamar Bolsonaro de bruxa não deixa de ser um ato falho de Trump, mas a ameaça é absurda do ponto de vista das leis brasileiras e até das americanas. A carta é dirigida a Lula e este não tem qualquer poder para modificar as decisões do STF. Bananinha, atuando como intérprete de Trump, estendeu a ameaça para o Brasil em geral, convocando seja quem for (Congresso, via anistia, STF, suspendendo o processo) a fazer o necessário para livrar o papai.

  • “vocês se aproveitam da generosidade americana e têm ganhos ilegítimos na balança comercial que queremos suspender”.

A assessoria da presidência deveria ser demitida por deixar Trump pagar um mico de todo tamanho, já que fazem mais de 15 anos que o Brasil tem déficit na balança comercial com os EUA, somando 415 bilhões de dólares.

  • “vocês estão censurando as big techs e prejudicam empresas americanas”.

É verdade que o debate em curso sobre a responsabilização das empresas pela divulgação de conteúdos questionáveis (de fake news a estímulo a crimes ou à violência) representa um controle sobre estas empresas, mas, se for por isso, Trump vai ter que impor sanções ainda mais pesadas à União Europeia que vai na mesma direção.

Analistas tanto aqui como nos EUA apontam para outras possíveis causas para o ataque ao Brasil e que não foram ditas na carta. A questão chave para Trump estaria no papel do Brasil nos Brics e na substituição do dólar como moeda comum no mercado internacional. Trump teria ficado furioso com o discurso de Lula na reunião dos Brics e com o de Dilma, que preside o banco do grupo, ambos defendendo o multilateralismo e o fim do dólar como moeda única das transações comerciais internacionais.

Para Trump o multilateralismo (seja a tradicional Organização das Nações Unidas ou o neo nato Brics e até a União Europeia) é um estorvo para o poderio internacional americano. Na sua cartilha as relações entre as nações são como disputas entre garotos no recreio do colégio; vence o mais forte ou o mais bruto. “Faço porque posso”, é a consigna afirmada por ele mesmo.

Já a questão do papel do dólar, não é o caso de pressionar politicamente para que ele seja usado nas transações comerciais. Trata-se de uma questão de praticidade. Enquanto a economia americana tiver lastro para assegurar a força da sua moeda o seu papel dominante permanecerá, independentemente da vontade do Lula, ou dos dirigentes do Brics. Não há nada que Trump possa fazer em relação ao uso de outras moedas no comércio internacional em acordos entre parceiros. A China já usa sua moeda em trocas com dezenas de países, mas em volumes que não alteram os fluxos e valores globais do dólar. Além disso não podemos esquecer que a China é o maior credor do mundo em moeda americana ou em títulos do tesouro americano, algo entre 3 e 4 trilhões.

O Brasil não tem peso na economia internacional para ser um player significativo na substituição da moeda americana, enfraquecida pelo próprio Trump. Por que então atacar o presidente Lula neste quesito? E porque agora?

Desde logo, descarto que o objetivo central de Trump tenha sido aquele declarado nas quatro primeiras linhas da carta, ou seja, a defesa do seu “amigo” ou comparsa, Bolsonaro. Trump não deve nem se lembrar da figura patética, trêmula de emoção, que o abordou nos corredores da ONU em Nova Iorque em 2019, balbuciando em mau inglês “I love you”, e batendo continência.

Quem levou a Trump o tema da “perseguição” a Bolsonaro? Bannon já não está no círculo íntimo de Trump e ele sempre foi quem deu conversa para os mais variados fascistas em ascensão mundo afora, inclusive Bolsonaro. Seja quem for o intermediário neste momento, não resta dúvida que a razão do ataque não foi Bolsonaro, por mais que ele e Trump tenham em comum as tentativas de golpe de Estado fracassadas e a “perseguição” da justiça em ambos os países. Digamos que Bolsonaro foi a pedra colocada casualmente no estilingue do americano. Ou o saco de esterco jogado no ventilador do Brasil. Um instrumento (quase escrevi estrumento).

O segundo movimento dos americanos neste embate não veio de Trump, mas ele deve ter aprovado. O terceiro escalão do governo assumiu corrigir alguns dos erros cometidos na carta, começando por centrar a comunicação em temas comerciais ou correlatos. É algo como o establishment da Casa Branca procurando fazer uma contenção de danos.

Ao trazer a discussão para as relações comerciais, especificando queixas em uma dúzia de importações ou exportações americanas, a administração deixou de lado as exigências políticas relativas aos processos contra Bolsonaro. Esta mudança de tom foi vista no Itamaraty como sendo a explicitação do verdadeiro objeto da tempestade em copo d’água. Se for isso, teremos mais um exemplo de ameaças e explosões, bufos e arreganhos, levando a recuos e acordos mais adiante que estamos assistindo desde janeiro. Foi o que chamei, logo nas primeiras semanas do governo Trump, de síndrome de Leão da Metro (dois rugidos e o resto é fita).

Na lista das exportações brasileiras citadas pelos técnicos da área comercial do governo americano estão produtos como: álcool, aço, café, laranja, couro, carnes, madeira, celulose, aeronaves, outros.

Segundo especialistas, as tarifas cobradas pelo governo brasileiro para todos os produtos importados dos EUA são de apenas 2,75%, em média, muito menores do que aquelas cobradas pelo governo americano sobre as nossas exportações. Em uma primeira avaliação, o único contencioso a discutir é a tarifa sobre as importações de etanol de milho americano pelo Brasil, que são altas como reciprocidade em relação às cobradas sobre o açúcar brasileiro importado pelos americanos. Um acordo reduzindo umas e outras está na ordem do dia das conversas entre os negociadores dos dois países há tempos.

O resto das cobranças americanas são um pot-pourri de itens disparatados, do PIX ao comércio popular de rua em São Paulo, desmatamento ilegal (puro cinismo) e outras bobagens.

Se todo este auê acabar se resumindo a um acordo sobre exportação de açúcar e importação de etanol a montanha terá parido um rato. Usar o caso Bolsonaro para “colocar o bode na sala”, ou seja, como uma (fraquíssima) moeda de troca, não se justifica.

Se o (ou um dos) objetivo do tarifaço for realmente ajudar Bolsonaro, Trump deu um tiro, não no pé, mas muito provavelmente na cabeça do energúmeno, pois o impacto do tarifaço está rachando, isolando e enterrando (esperamos) a famiglia.

Com a crescente decadência da consciência e da atividade política no Brasil, a cada ano mais presas em bolhas fechadas e retroalimentadas pelos seus próprios conteúdos, confesso que não esperava a reação generalizada da chamada opinião pública condenando o tarifaço e seus apoiadores. O sentimento patriótico ou de indignação na defesa da honra nacional pareciam fora de moda.

A opinião do povo em geral é difícil de entender e captar em muitos casos, sobretudo em temas complexos e com segmentos pouco informados. E a informação tem hoje dois vetores básicos para alimentar a opinião ou opiniões: os tradicionais veículos de mídia convencional (rádio, televisão, jornais, revistas) e as redes sociais, sendo que esta última tem um impacto até cem vezes maior em termo de acessos. Entretanto, a mídia convencional tem um peso maior do que o acesso direto pela população, já que ela produz informação que é utilizada pelas redes sociais e costuma ter credibilidade. No mundo das redes proliferam as fake news e várias formas de distorção da verdade, mas o público está, pouco a pouco, aprendendo a desconfiar.

Além destes formadores de opinião, temos um mundo que se cruza com esse, nas relações sociais que intercambiam informação e ideias em igrejas, vizinhança, locais de trabalho, sobretudo as primeiras.

Neste caso do tarifaço, as reações iniciais da militância bolsonarista, sempre aguerrida nas redes sociais, foram de euforia e aplauso, contaminando até gente mais escolada como os governadores Tarcísio, Zema, Caiado e Ratinho. Entretanto, em muito pouco tempo um tsunami de condenações varreu as redes sociais em um fenômeno de espontaneidade que ocorre rarissimamente neste espaço. Seguiram-se editoriais de todos os jornais de grande circulação do país, bem como as redes de televisão, todos descendo o cacete no tarifaço, em Trump, em Bolsonaro e no bolsonarismo. Finalmente, com os líderes do bolsonarismo se retratando a ponto de Bananinha insultar e condenar Tarcísio, o próprio Bolsonaro tentou tirar o dele da reta, mas de forma tão canhestra que se afundou mais ainda. Para fechar o caixão as pesquisas desta semana indicam uma condenação a Trump e ao tarifaço por 72% dos pesquisados. O bolsonarismo bovino reduziu-se a 19% dos pesquisados e deve estar derretendo pois a maré de reações contrárias estava só começando no momento desta pesquisa.

As condenações não apenas foram veementes como elas descartaram enfaticamente a narrativa bolsonarista apontando o dedo culpado para Lula. Jornais conservadores, como Estadão, Folha de São Paulo e Globo não pouparam a famiglia e Lula aproveitou para surfar na onda nacionalista com maestria, evitando discursos ideológicos contra o imperialismo americano. A abordagem do governo para lidar com a “crise da carta” foi impecável, mobilizando o empresariado em pânico e o Itamaraty para abrir negociações comerciais,  enquanto malhava as sucessivas besteiras do bolsonarismo sem dar tempo para reação. Entre parenteses, não deixa de ser cômico o fato de que alguns dos setores econômicos mais identificados com o bolsonarismo, como o agronegócio que foi o grande financiador da tentativa de golpe em 2022/2023, estão entre os mais atingidos pelo tarifaço.

As pesquisas mostraram uma pequena mas significativa melhoria da avaliação da opinião pública em relação ao governo Lula, trazendo a diferença entre as avaliações negativa e positiva de 17% para 10%, começando a fechar a “boca do jacaré”. Falta muito para chegar a bombar e dar confiança em uma vitória no pleito do ano que vem, mas a direita está ajudando muito.

O conflito rasgado entre o governo e o Congresso sobre o IOF serviu para o governo lançar uma campanha apontando os parlamentares como defensores dos ricos e o governo como defensor dos pobres. Ainda acho que o governo erra o tiro, pois a grande contradição neste caso não é “pobres contra os ricos”, mas “todos contra os super-ricos”, o 1% que controla 50% da riqueza nacional. Entretanto, a campanha foi bem montada e pegou, e o Congresso sentiu o golpe.

Ainda de olho nas pesquisas de opinião Lula vetou a lei que ampliava o número de deputados, rejeitada por 85% dos pesquisados. Na sequência, a Câmara resolveu se vingar e votou o uso dos recursos do petróleo para doar 30 bilhões para financiar as dívidas do agronegócio. Este era um recurso que o governo tinha carimbado para fins sociais como educação, saúde, saneamento, habitação. Se o governo souber usar bem a crítica desta decisão, notoriamente antipopular, os nobres deputados vão ficar muito expostos.

Todos os analistas concordam que algo mudou no clima político e o governo Lula, já dado por cachorro morto por vários, saiu das cordas e assumiu a ofensiva. Isto não quer dizer que estamos em uma maré irreversível de recuperação de prestígio para Lula e para o seu governo. A ineficiência ainda grassa em vários setores, inclusive no INSS, os tropeços políticos tipo aplaudir os ditadores da América Latina ainda podem se repetir, a idade do Lula pode pregar peças (que todos os orixás nos livrem disso), a corrupção de políticos do governo (embora muitos do Centrão) pode vir a ser denunciada e, por fim mas não por último, a falta de um programa claro e inteligível para a maioria do eleitorado podem matar esta recuperação no nascedouro.

Continuo achando que o governo tem que assumir uma postura mais combativa e parece que Lula está indo nesta direção. Limpar o governo da tralha direitista do Centrão vai certamente criar problemas com o Congresso, mas provavelmente não mais do que os que já existem hoje. É preciso agilizar e enxugar a administração para esta reta final mas, sobretudo, vai ser fundamental alinhar uma série de propostas de ação governamental que sejam muito significativas para o povão e para o futuro do país. Certamente a maior parte não vai poder ser realizada em função da oposição do Congresso, mas este vai ser o objeto mais claro da luta política daqui até as eleições. A oposição principal não vai ser com um membro da famiglia Bolsonaro ou um dos seus afilhados. Vai ser contra a maioria do Congresso, mostrando que enquanto o povo votar no Centrão não vai ser possível governar. Se isto ficar claro para uma boa parcela do eleitorado, mesmo uma derrota eleitoral para a Presidência pode não ser o fim do mundo.

Precisamos ver o fim desta era em que elegemos políticos de esquerda para aplicar programas de direita, enquanto a identidade do PT, PCdoB, PSB e PDT (a aliança de centro esquerda que sempre compôs as chapas eleitorais de Lula e de Dilma)  vai se perdendo no emaranhado do eleitoralismo vulgar.

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