Clara Zetkin, a “bruxa perigosa”, redescoberta

Precursora do 8 de Março, a jornalista e política alemã projetou o feminismo que surgia de dentro das fábricas da Europa. Propôs, há mais de um século, articular lutas de gênero e classes. Revisitar a sua obra ajuda a desafiar o conformismo pela emancipação individualista

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Por Ben Lewis, na Jacobin Brasil

Clara Zetkin era conhecida por não se conter em suas polêmicas e, portanto, não era estranha à controvérsia em sua época. O Kaiser Guilherme II referiu-se a ela como “a bruxa mais perigosa” do Segundo Império Alemão. Na mesma linha, Joseph Stalin posteriormente chamou Zetkin de “bruxa velha”. Mais recentemente, o semanário alemão Die Zeit sugeriu que ela era uma “figura de museu que dificilmente interessa a alguém”.

Mas quem foi Clara Zetkin e por que seu legado político amplamente esquecido vale a pena ser revisitado hoje?  

Nascida na Saxônia em 1857, ela viveu exilada por vários anos em Paris graças à Lei Antissocialista de Otto von Bismarck, uma tentativa de reprimir o Partido Social-Democrata (SPD) que vigorou de 1878 a 1890. Ela passou a maior parte de sua vida na União Soviética, onde morreu em 1933, poucos meses depois que os nazistas tomaram o poder na Alemanha.

Zetkin foi jornalista, teórica e editora de diversas publicações femininas marxistas importantes, desde Die Gleichheit, do SPD, até Die Kommunistin, do Partido Comunista Alemão, e Die Kommunistische Fraueninternationale, da Internacional Comunista. Ela foi uma das principais integrantes da ala radical do SPD e presidiu o primeiro encontro de ativistas socialistas antiguerra em 1915.

Em 1917, depois que o SPD sofreu uma amarga divisão devido ao seu apoio ao militarismo alemão na Primeira Guerra Mundial, Zetkin tornou-se membra do Partido Social-Democrata Independente (USPD), do movimento anti-guerra, e parlamentar comunista no Reichstag de 1920 a 1933. Ela foi pedagoga, historiadora, crítica de arte e literatura e tradutora, além de membra do comitê executivo da Internacional Comunista, tendo atuado anteriormente como secretária da Internacional das Mulheres Socialistas entre 1907 e 1917.

As atividades abrangentes de Zetkin lhe renderam algo próximo ao status de celebridade dentro do movimento internacional de sua época. No entanto, hoje, muitas das ativistas militantes e comprometidas que se reúnem no Dia Internacional da Mulher, todo dia 8 de março, provavelmente nem sabem quem foi Clara Zetkin. Como é possível que alguém tão admirada por seus contemporâneos tenha sido amplamente ignorada pela história?

Uma luta comum

Zetkin argumentou consistentemente que a única solução para a opressão historicamente condicionada das mulheres era a derrubada do capitalismo. Fundamentalmente, isso exigia que a classe trabalhadora como um todo — mulheres e homens — se unisse em partidos revolucionários coordenados internacionalmente com o objetivo de derrubar o domínio político da burguesia e inaugurar uma nova ordem social.

Como ela disse:

Não devemos colocar os interesses dos trabalhadores e trabalhadoras em oposição hostil, mas devemos uni-los em uma massa unificada que represente os interesses dos trabalhadores em geral, em oposição aos interesses do capital.

Essa crença de Zetkin explica sua ênfase na necessidade de estabelecer um movimento feminino social-democrata distinto, que seria independente de associações e clubes femininos pró-capitalistas.

Também orientou sua luta para manter o antigo espírito revolucionário do SPD e da Segunda Internacional diante de seu colapso após a eclosão da guerra em 1914.

O destino do legado de Zetkin durante o século XX reflete o declínio do pensamento marxista no movimento operário e na sociedade em geral. Embora a igualdade formal entre homens e mulheres seja um fato significativo e estabelecido em vários países do mundo, a força motriz e a inspiração marxista radical por trás de conquistas importantes como o sufrágio feminino, os direitos reprodutivos ou as disposições sociais e de bem-estar foram amplamente apagadas da consciência popular. Representantes abastados do establishment na política, na mídia e na academia agora apresentam essas liberdades conquistadas com muito esforço como algo intrínseco ao modo de produção capitalista.

Além disso, o projeto de Zetkin de alcançar a plena igualdade sociopolítica entre homens e mulheres está longe de ser concretizado, mesmo em países onde a luta pela emancipação feminina alcançou os maiores avanços. A intolerância e o preconceito constantes, a disparidade salarial entre gêneros, o aumento exponencial dos custos com creches, os ataques aos direitos reprodutivos das mulheres, a violência doméstica, sexual e anti-trans — essas são apenas algumas das diversas manifestações horríveis da opressão sexual atual.

Revisitar a vida e a obra de Zetkin pode lançar luz sobre a natureza da exploração das mulheres e do trabalho feminino sob o capitalismo. Também pode ajudar a desafiar o consenso confortável e pró-capitalista que predomina no movimento feminista atual e dar um novo impulso à esquerda na abordagem de uma questão que ela interpretou mal, subestimou ou simplesmente ignorou.

Embora a vida de Zetkin se apresente como um ponto de referência óbvio para a esquerda na busca pela reformulação de uma política socialista de emancipação feminina, só recentemente testemunhamos um modesto ressurgimento do interesse por seu legado. No entanto, estudos acadêmicos e esforços de tradução recentes estão apenas começando a explorar a superfície de sua vasta produção teórica e jornalística, que foi altamente controversa em sua época e permanece assim até hoje.

Sob os olhos do Ocidente

Durante a Guerra Fria, foi a proximidade de Zetkin com o bolchevismo que a tornou persona non grata no Ocidente. Florence Hervé observa que, na jovem República Federal da Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, a manifestação de 8 de março — uma das maiores conquistas de Zetkin — foi vista como “um evento do diabo”, marcado apenas pelo Partido Comunista Alemão (que havia sido banido em 1956) e por um pequeno número de grupos de mulheres que “evocavam o nome de sua fundadora”.

Na década de 1960, em um ambiente político um pouco mais relaxado e com a ascensão de novos movimentos sociais, houve uma certa redescoberta feminista de Zetkin na Alemanha Ocidental — embora não exatamente lisonjeira para ela. Zetkin era, com razão, vista como alguém que rejeitava as noções de uma “irmandade universal” interclassista de todas as mulheres. Como tal, ela foi postumamente responsabilizada por dividir o movimento feminista em linhas político-classistas.

O destino subsequente do Dia Internacional da Mulher na Alemanha é revelador. Tendo-o ignorado como um evento marginal da “esquerda maluca”, os poderosos assumiram o controle na tentativa de se reinventarem como defensores consistentes dos direitos das mulheres, arrancando assim o 8 de Março de suas raízes no movimento operário revolucionário. Isso andou de mãos dadas com tentativas de apagar Zetkin da história completamente.

Em 1994, por exemplo, o chanceler democrata-cristão Helmut Kohl interveio para garantir que uma rua perto do Reichstag, em Berlim, não levasse o nome de Zetkin. Ele alegou que Zetkin havia desempenhado um papel na “destruição da primeira democracia alemã, a República de Weimar”. Em vez disso, a rua levaria o nome de uma suposta democrata e pioneira da libertação feminina, a princesa Hohenzollern, Dorothea von Brandenburg, do século XIV.

A linha destrói tudo

Uma imagem bastante diferente de Zetkin surgiu na República Democrática Alemã (RDA), onde ela apareceu em medalhas, selos e notas. No início da década de 1950, Luise Dornemann escreveu uma biografia de Zetkin sob o olhar atento dos líderes da RDA, que buscavam trilhar seu próprio caminho de desenvolvimento após a turbulência da Segunda Guerra Mundial. Essa obra deu o tom para a recepção e disseminação das ideias de Zetkin na Alemanha Oriental.

O fato de um estudo desse tipo ter sido produzido tão logo após a fundação da RDA, em outubro de 1949, ressalta a centralidade de Zetkin para aquele Estado, que apresentava uma imagem cuidadosamente cultivada de sua vida como um modelo a ser devidamente imitado por seus cidadãos. Houve elogios às realizações excepcionais de Zetkin como revolucionária e como uma mulher que estava — no título de outro estudo sobre a RDA — “uma época à frente” de muitas de suas contemporâneas. Houve também o reconhecimento de que sua vida abrangeu várias etapas-chave do movimento operário alemão.

Para o historiador e pedagogo da RDA, Gerd Hohendorf, a vida de Zetkin foi “como uma ponte que vai dos fundadores do socialismo científico — ela conheceu Friedrich Engels pessoalmente — a Lenin e àqueles que começaram a construir um novo sistema humano na União Soviética”. Tal tentativa de estabelecer uma linhagem ligando as principais luzes do panteão assemelha-se aos mitos fundadores de muitos Estados, religiões e organizações políticas. Mas nenhum dos historiadores da RDA que escreveram sobre a vida e a obra de Zetkin pôde cogitar a ideia de que essa “ponte” fosse, na melhor das hipóteses, instável e, na pior, repleta de falhas e lacunas.

À primeira vista, essa representação de sua vida como um exemplo brilhante a ser imitado por socialistas mais jovens parece bastante inocente, principalmente quando acompanhada pelas descrições bregas de Dornemann e Hohendorf sobre ela sendo uma jovem talentosa vagando pela zona rural ao redor de sua cidade natal, Wiederau. No entanto, há um lado muito mais sombrio nessa instrumentalização de seu legado, dado o que sabemos sobre as práticas de doutrinação da RDA e a importância que ela atribuía à noção de que “o partido está sempre certo”. A vida política de Zetkin girou em torno de demonstrar o oposto.

Pesquisadores no leste, onde a maior parte de seus documentos e correspondências particulares eram mantidos a sete chaves, também enterraram as controvérsias durante os últimos anos de sua vida. Esses tópicos negligenciados incluíam seus desentendimentos com a liderança do KPD (principalmente em relação ao desastre do “terceiro período” ultraesquerdista e à condenação dos social-democratas como “social-fascistas”), sua irritação por ter sua correspondência monitorada e seu relacionamento frio com Stalin.

Zetkin foi franca ao abordar as consequências das políticas de Stalin para o KPD e para a Alemanha. Como ela mesma afirmou em uma carta a Ossip Piatnitsky:

Os desdobramentos são catastróficos. A “linha” destrói tudo o que a teoria de Marx nos ensinou e o que a prática de Lenin demonstrou ser historicamente correto.

Dito isso, não se pode negar que alguns dos escritos mais fracos de Zetkin giram em torno de uma defesa bastante desesperada da “democracia soviética”. E, embora não fosse fã de Stalin, certamente apoiou a campanha para marginalizar setores da oposição bolchevique, incluindo figuras como Leon Trotsky, Lev Kamenev e Grigory Zinoviev. Em uma carta particular, ela comparou a abordagem política deles à de “lunáticos ou criminosos”.

Há, sem dúvida, um aspecto trágico na impotência de Zetkin diante da burocracia stalinista. Mas, mesmo em 1932, ela escreveu uma carta a Maria Reese, na Alemanha, que era mordaz em relação à distorção da história da ala esquerda da Segunda Internacional feita por ideólogos stalinistas. Para Zetkin, tais fábulas históricas refletiam a natureza de um regime burocratizado e autoritário que substituía a pesquisa histórica pela “covardia obsequiosa” diante de Stalin e seus acólitos.

Uma ruptura limpa

Além das distorções a que seu legado foi submetido na historiografia da Guerra Fria, outro fator significativo na marginalização de Zetkin foi o fato de suas ideias serem amplamente intragáveis ​​para o movimento feminista das décadas de 1960 e 1970. Zetkin foi uma crítica incisiva e franca do que chamou de “direitismo feminino” ou “feminismo” burgueses e defendeu a necessidade de uma política independente para a classe trabalhadora ao longo de sua vida.

“Zetkin foi uma crítica incisiva e franca do que ela chamou de ‘direitismo feminino’ burguês e defendeu a necessidade de políticas independentes para a classe trabalhadora durante toda a sua vida.”

Em 1894, Zetkin defendeu uma linha clara de demarcação política — uma “ruptura clara” — entre o movimento burguês das “direitistas femininas” [Frauenrechtlerinnen] e o movimento marxista de mulheres, que ela ajudou a estabelecer e a liderar como um movimento de milhões. Em um artigo posterior, publicado em 1928, ela alertou com alguma presciência sobre a futilidade de buscar igualdade sem se esforçar para transcender o modo de produção capitalista:

O movimento feminista burguês levanta a principal reivindicação pela plena igualdade jurídica e social entre mulheres e homens. Suas líderes afirmam que a realização dessa reivindicação teria, indiscriminadamente, o mesmo significado emancipatório para todas as mulheres. Isso é falso. Os defensores da direita feminista [burguesa] não veem, ou não querem ver, o fato — decisivo para alcançar uma sociedade baseada na plena liberdade social humana ou na escravidão — de que um antagonismo de classe irreconciliável divide a sociedade burguesa, baseada no modo de produção capitalista, entre exploradores e dominadores, de um lado, e explorados e dominados, do outro.

Ela continuou:

A igualdade formal com o sexo masculino em documentos legais, portanto, traz às mulheres da classe explorada e oprimida tão pouca liberdade social e humana real quanto aquela desfrutada pelos homens de sua classe, apesar do fato de esses homens compartilharem o mesmo sexo que os homens da burguesia.

Para Zetkin, mulheres e homens tinham que unir forças dentro da estrutura do movimento dos trabalhadores e, crucialmente, dentro do partido revolucionário, cujo dever era “despertar a consciência de classe da ampla massa de mulheres proletárias, infundi-las com ideias comunistas e reuni-las como lutadoras e colaboradoras do comunismo, determinadas a agir, dispostas a fazer sacrifícios e serem esclarecidas em relação a seus objetivos”.

Anacronizando Zetkin

Alguns autores contemporâneos ainda buscam apresentar Zetkin como feminista, com alguns até mesmo tentando unir as duas vertentes interpretativas, referindo-se a ela como “feminista socialista” ou “feminista marxista”. No entanto, tais abordagens são completamente enganosas. Para começar, Zetkin não poderia ter sido uma “feminista socialista” porque o termo sozialistischer Feminismus não existia como categoria política em sua época.

Projetando a linguagem atual de volta aos tempos de Zetkin, escritores contemporâneos muitas vezes traduzem erroneamente os termos Frauenrechtlerin ou Frauenrechtlerinnen como “feministas” ou “feminismo”. A literatura do movimento de mulheres proletárias alemãs se referia ao movimento de mulheres burguesas em termos depreciativos como “Frauenrechtlerei” para criar uma distância política de seus objetivos e atividades.

De fato, Zetkin teve que defender tal distanciamento organizacional e político não apenas diante dos oponentes e inimigos do SPD, mas também contra alguns da ala direita “revisionista” do partido e da Segunda Internacional. Respondendo às críticas revisionistas em 1894, ela foi inflexível:

O proletariado com consciência de classe não pode e não deve tolerar o surgimento de visões de “direitistas das mulheres” dentro de suas fileiras que obscureçam e invadam o ponto de vista socialista, nem pode tolerar que a luta entre os sexos substitua a luta entre as classes.

Esses pontos fundamentais devem ser mantidos em mente se quisermos abordar o legado de Zetkin com novos olhos hoje, em suas próprias palavras e livre de algumas das distorções às quais foi submetido.

Por exemplo, feministas de esquerda como Florence Hervé e Jean Quataert não só usam o termo Feminismus de forma a-histórica, mas também agravam a confusão ao retratar Zetkin e suas companheiras como “feministas relutantes”, cujo trabalho político, no entanto, lhes parece “decididamente feminista”. Mais uma vez, elas distorcem categorias historicamente estabelecidas ao afirmar que o termo “feminista” deveria se aplicar “a todas aquelas no século XIX que apoiaram esforços expressos para melhorar as condições das mulheres por meio de atividades públicas organizadas, seja para fins educacionais, legais, políticos, econômicos ou sociais”.

Essa abordagem a-histórica e homogeneizadora apaga efetivamente as principais divisões políticas e de classe entre os dois movimentos feministas e o que havia de distinto na abordagem revolucionária e operária de Zetkin para a libertação das mulheres. Embora ele aponte corretamente que “Die Gleichheit” de Zetkin não era uma “revista feminina” no “sentido burguês”, Nathaniel Flakin, no entanto, descreve Zetkin como “A grande dama do feminismo” e uma “lendária feminista socialista”. Também aqui, sua real contribuição é abafada.

Embora Zetkin tenha atuado em um contexto social e político diferente, numa época em que a esquerda era uma força real a ser reconhecida, muitas das controvérsias que cercam seu nome alimentam as questões candentes do nosso movimento hoje. Se olharmos além das distorções às quais seu legado foi submetido pelas historiografias do século XX, sejam elas feministas, social-democratas ou stalinistas, então ela pode servir como uma fonte crucial de inspiração para a formulação de uma política marxista de libertação das mulheres no século XXI.

Ben Lewis é tradutor e bolsista Leverhulme Early Career na Universidade de Leeds. Ele publica obras inéditas sobre marxismo alemão na Marxism Translated.

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