A guerra de Trump e a resposta da China

No momento em que a Casa Branca tem como alvo central o Brasil, vale examinar a resposta altiva de Pequim. E, em especial, o que a torna possível: a disposição de construir, em meio a um sistema interestatal capitalista, a superação deste paradigma

.

A “quarta explosão expansiva” do sistema interestatal capitalista tem sido apresentada como um desdobramento e síntese da contribuição de José Luís Fiori ao debate público sobre a conjuntura internacional que estamos vivendo. Isso significa que o mundo está passando por profunda reconfiguração geopolítica e tecnológica, marcados por aumentos intensos na competição entre Estados e por mutações estruturais na hierarquia internacional. A atual fase é marcada pela decomposição da ordem mundial unipolar do pós-Guerra Fria, pela ascensão de novas potências e pelo surgimento de uma ordem ainda indefinida, atravessada por múltiplas crises simultâneas.

A questão que nos propomos lançar aqui é sobre o papel da China tanto neste processo histórico, quanto no “sistema interestatal capitalista”, de forma que possamos ter mais sofisticação de análise ao interpretar como este país, e outros, respondem à tentativa dos Estados Unidos em reconfigurar o sistema tendo o si mesmos como o “ponto zero”.

O primeiro ponto que levantamos aqui é que apesar do sistema interestatal ser capitalista, nem todos os seus participantes o são. Assim sendo este sistema não impediria a priori o surgimento e o desenvolvimento de formas históricas nacionais não-capitalistas, podendo no máximo, a partir de suas instituições, bloquear o desenvolvimento dessas experiências. Cuba, Venezuela, Coreia Popular, China, Vietnã e Bielorrússia são alguns exemplos. O caso da China, as respostas que ela entrega a cada investida tarifária dos EUA não estão desconexas de seu sistema político, produtivo e financeiro não-capitalista. A diplomacia que a permite arranjos amplos como o recente acordo de livre-comércio com o Japão e a Coreia do Sul são produto e uma revolução social de clara

orientação não-capitalista, assim como as reformas econômicas de 1978, apesar de recolocar a China como parte deste sistema interestatal, e internalizar esquemas instituições de mercado assim

como formas não-públicas de propriedade, não foi acompanhada por nenhuma declaração no sentido do abandono da ordem iniciada em 1949.

Este sistema estatal está sendo não somente reconfigurado, mas remoldado internamente por uma economia que se reinventou ciclicamente utilizando-se de todas as possibilidades que a ordem pós-2ª Guerra Mundial fundou. Dado o tamanho de sua população, mercado interno e instituições políticas o seu desenvolvimento está levando a uma subversão do supracitado sistema a ponto de um lado voltar a existir as chamadas “esferas de influência”, por outro cada “esfera” não centrada na China ainda depender sobremaneira da capacidade de produzir, absorver produtos e investimentos do gigante asiático. Por sua vez, a sua estratégia socializante e os resultados de suas reformas econômicas serem inspiração para rebeliões nacionalistas como as que estamos a assistir na África recentemente. Não estamos assistindo a um momento qualquer do mundo. Deveríamos levar muito à sério o que Xi Jinping disse a Putin sobre “as transformações pelas quais estamos a encabeçar jamais vistas em cem anos”. Uma clara alusão à Revolução Russa.

O organismo econômico chinês foi capaz de se adequar tanto às instituições de Bretton-Woods quanto ao bullying comercial e tecnológico lançado por Trump em 2017 e profundado por Biden. O salto chinês no período em todos os aspectos que envolvem a presente revolução técnico-científica é uma demonstração prática de como essa dinâmica não-capitalista irá moldar o destino do sistema interestatal. A reação russa ao ataque coordenado do G-7 a si mesma, e também contra a China, não se explica somente pela capacidade de reorganização de seu país a partir do início dos anos 2000. A “integração produtiva total” entre as economias russa e chinesa que se acelerou desde 2014 responde pelo o que deverá ser a essência da nova roupagem deste sistema interestatal. O mesmo podemos dizer deste movimento de maior aproximação entre China, Vietnã e Malásia que entre si. Esses dois países respondem por cerca de US$ 300 bilhões do comércio chinês. Ambos os países, apesar de históricas desconfianças em relação à China, não prescindem deste parceiro para moldar seus projetos nacionais – cada vez menos dependentes dos Estados Unidos e União Europeia.

Vejamos o caso da União Europeia, um possível “bloco” dentro deste novo arranjo sistêmico que se apresenta. Como este bloco poderá prescindir de um país cujas importações e exportações respondeu por US$ 840 bilhões em 2024? Como a Alemanha poderá dar um novo salto para uma quase autarquia que abarcaria a Europa sem os insumos e mercado chinês? Ou mesmo sem a energia russa?

Ora, se de um lado a Rússia coloca um freio militar à ordem liberal, sendo parte fundamental do fim desta mesma ordem, podemos dizer que um país liderado por um Partido Comunista, com instituições políticas forjadas pela antiga União Soviética e uma dinâmica de acumulação que absorve os atributos do “Estado Desenvolvimentista” a la Chalmers Johnson, criando um “Estado Socialista” caracterizada menos por um State-Led Development e mais por um Communist Party-Led Development? Aqui não se trata de uma pergunta e sim, afirmação.

A ciência social tem uma imensa dificuldade de lidar com fenômenos novos. Se ao menos consegue, a partir da história, entregar determinado nível de explicação e novos arranjos categoriais e conceituais, ainda pode se ver presa a vícios típicos de quem observa a parte e não o todo. Estamos diante de um novo giro do parafuso cíclico da história onde uma formação econômico-social de novo tipo deverá ocupar o centro deste sistema. A dialética, que se constitui como parte da formação de seu pensamento nacional deste Confúcio e Lao-tsé com o qual Hegel dialogou nos entregou complexos corpos teóricos derivados da fusão das tradições da filosofia clássica chinesa com o marxismo, entre elas a “abordagem da contradição” e as noções de contradição antagônica e não antagônica.

Não iremos sair do lugar caso não estejamos dispostos a mergulhar neste imenso terreno histórico e teórico. Entender o que está por vir passa por estudar a fundo o que o pensamento chinês sintetizado hoje nas teorias do “socialismo com características chinesas” tem a nos entregar. O chamado “ocidente coletivo” não mostrou disposição para entender os recados dos jesuítas e a missão de aprender com a dialética rústica chinesa. Irão ser superados tendo a própria força como instrumento.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *