Tragédia e oportunidade das stablecoins
O que são as novas moedas digitais, atreladas ao dólar. Por que podem privatizar o dinheiro e provocar crises financeiras incontroláveis. Antídoto: tornar obsoletos os banqueiros, permitindo que pessoas e empresas abram contas no Banco Central
Publicado 14/07/2025 às 18:24 - Atualizado 14/07/2025 às 18:35

Tornou-se famosa a frase irônica de Margaret Thatcher, segundo a qual o problema dos socialistas é que, mais cedo ou mais tarde, eles acabam com o dinheiro dos outros. Mas o que acontece quando os banqueiros acabam com o dinheiro dos outros, como parece provável que ocorra em breve? Ou teremos outra crise financeira catastrófica ou, para servir ao interesse público, inovamos de um modo que Thatcher teria taxado de socialista.
Antes de propor uma dessas respostas inovadoras para o iminente pesadelo financeiro, é preciso entender a transformação monetária em curso, impulsionada pela ascensão, rápida e constante, das chamadas stablecoins.
Diferentemente do Bitcoin e de outras criptomoedas, que não têm lastro e flutuam como ioiôs, as stablecoins são emitidas por empresas privadas que prometem que suas moedas digitais seguirão rigorosamente o valor do dólar americano. Há boas razões pelas quais pessoas comuns, não apenas criminosos, querem usar stablecoins. Elas oferecem uma forma de enviar dinheiro, especialmente para o exterior, que é mais barata, rápida, imune a sanções dos EUA e mais confiável do que sistemas frágeis de mensageria interbancária, como o SWIFT.
Há ainda mais razões pelas quais os banqueiros e demais rentistas estão ansiosos para nos oferecer, cada um, sua própria marca de stablecoin. Ao transferir a negociação de ações, títulos, derivativos e outros ativos para sua própria blockchain1, eles podem tornar as transações muito mais rápidas e confiáveis. Além disso, se sua stablecoin se tornar dominante, eles controlarão não apenas o mercado, mas também a moeda em que as negociações são feitas, criando oportunidades para ganhos financeiros monumentais.
Mas as stablecoins estão preparando o cenário para o próximo colapso financeiro. Para começar, seus emissores têm incentivo para emitir mais moedas do que os dólares que mantêm em reserva como lastro. E, como os emissores de stablecoins mantêm uma parte significativa de suas reservas em dólares nos bancos, uma corrida bancária causará uma corrida às stablecoins. Ela assumirá a forma de uma onda de pedidos de conversão em dólares reais, o que então desencadeará uma cascata de corridas bancárias.
Além disso, um doom loop (espiral rumo ao fundo) conecta stablecoins, ações e títulos: assim que as negociações financeiras migrarem para blockchains “lubrificadas” por uma stablecoin, uma corrida bancária contra essa moeda supostamente estável ameaçará o mercado de ações e o mercado de títulos do Tesouro americano, avaliado em US$ 29 trilhões.
E ainda há a fragilidade global produzida por stablecoins supostamente lastreadas em dólar, mas emitidas fora dos EUA por empresas que as autoridades norte-americanas dificilmente resgatariam em caso de colapso.
Quão significativa é essa transição do sistema monetário convencional para essa selva de stablecoins privadas? Em 17 de junho, o Senado dos EUA aprovou a chamada Lei Genius (“GENIUS Act”). Seu principal objetivo é legitimar e impulsionar a adoção de stablecoins.
Em essência, o governo do presidente Donald Trump está privatizando o sistema do dólar por motivos geopolíticos, ideológicos e de interesse próprio. O próprio Tesouro americano prevê que depósitos bancários de US$ 6,6 trilhões (equivalente a 660% do orçamento anual de defesa dos EUA) migrarão para stablecoins sob o manto da Lei Genius. Isso nada mais é do que uma bomba-relógio gigantesca plantada nas bases de nossas economias.
Haveria alguma alternativa? Suponha que os cidadãos norte-americanos pudessem baixar uma carteira digital do Federal Reserve [o banco central de seu país] em qualquer loja de aplicativos. Imagine que eles poderiam então pedir que seus empregadores depositassem seus salários nessa carteira e até transferir dinheiro de suas contas bancárias comerciais para aproveitar as taxas de juros overnight do Fed, além de transações gratuitas.
Utilizando a mesma tecnologia blockchain dos emissores privados de stablecoins, o Fed poderia garantir que cada pagamento ou transferência seja completamente seguro e transparente, permitindo que todos vejam quanto dinheiro circula no sistema de forma agregada – impedindo assim que as autoridades criem dinheiro novo sem o conhecimento de todos.
Esta seria a mãe de todas as stablecoins, sem nenhuma das desvantagens. Velocidade, eficiência e privacidade seriam combinadas com taxas de juros mais altas nos depósitos (em comparação com bancos comerciais) e a segurança absoluta de que suas moedas digitais são dólares 100% lastreados pelo Fed, sem os riscos morais ou ciclos viciosos que afligem as stablecoins privadas. Além disso, esse sistema público traz uma vantagem adicional: torna possível um fundo de garantia para todos.
Lembre-se de que, no atual sistema de reservas bancárias fracionárias, os bancos comerciais criam muito mais dólares a partir de cada dólar depositado (o chamado multiplicador monetário). Por outro lado, se o Tesouro dos EUA estiver correto em sua previsão de que US$ 6,6 trilhões em depósitos migrarão dos bancos para stablecoins, a oferta total de dólares está prestes a encolher drasticamente. Isso levará o Fed a elevar substancialmente as taxas de juros para permitir que os bancos façam o mesmo e contenham a migração e a queda na oferta monetária – um resultado desastroso para a economia real.
Se, ao contrário, houver uma migração em massa dos depósitos em bancos privados para as carteiras digitais do Fed, o banco central não precisará aumentar as taxas de juros. Bastará calcular o volume da queda na oferta monetária e creditar na carteira de cada cidadão o valor necessário para manter a estabilidade monetária.
Em essência, sem que o Estado precise criar novos impostos ou contrair um único centavo em dívida, o Fed estaria oferecendo um fundo de garantia substancial para todos nesta nova rede criptográfica pública – funcionando como um verdadeiro bem comum monetário.
Os banqueiros certamente odiarão essa ideia. Ao serem privados de seu monopólio sobre pagamentos e poupanças, as carteiras do Fed os forçariam a funcionar como deveriam. Ou seja, como intermediários financeiros que transformam as economias de Maria em empréstimos para João.
Os mercados financeiros também seriam obrigados a usar o novo dólar do Fed, mas sem os lucros exorbitantes que obteriam se tivessem permissão para privatizar essa moeda digital. Banqueiros e financistas teriam, pela primeira vez, que nos oferecer serviços em condições que nos permitissem recusar.
1Blockchain: Não há ainda tradução em português. Nome dado a um processo de certificação digital em rede, por meio do qual a validade de uma moeda digital é conferida por seu registro simultâneo em múltiplos computadores.
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