Cinema: O Eros que liberta
No norueguês Dreams, que ganhou o Urso de Ouro, uma jovem encantada pela nova o desejo sexual – “confusão interior” que leva sua mãe e avó a refletirem sobre si mesmas. Mostra – entre memória, fantasia e desejo – a “terrível e maravilhosa” descoberta do amor
Publicado 10/07/2025 às 16:49 - Atualizado 10/07/2025 às 16:50

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Está discretamente em cartaz em cinemas selecionados um filme muito especial, o norueguês Dreams, que fecha a trilogia Sex/Love/Dreams, de Dag Johan Haugerud. Sobre os dois primeiros já escrevi aqui quando foram lançados: Qualquer maneira de amor – por José Geraldo Couto.
Não há conexão direta entre os três filmes. Cada um deles tem personagens, situações e ambientes bem diversos dos outros dois. Todos giram em torno das tênues e porosas fronteiras entre o amor, a amizade e o sexo. Dreams, que ganhou o Urso de Ouro e o prêmio da crítica no Festival de Berlim, trata, em resumo, da paixão de uma adolescente, Johanne (Ella Øverbye), por sua professora Johanna (Selome Emnetu).
Romance de formação, portanto. Descoberta do amor e da sexualidade, tópico da literatura e da arte desde que o mundo é mundo. Mas o que torna o filme original e pungente é o modo como essa história se constrói e se dá a ver.
Camadas da narração
Encantada pela nova professora – negra, jovial, de uma beleza radiante –, Johanne vai descobrindo aos poucos, com espanto, seus próprios sentimentos, que trafegam entre a curiosidade, a admiração, o afeto e o desejo sexual. Perturbada por sua confusão interior, ela resolve colocar no papel tudo que passa pelo seu pensamento e pelo seu coração. Resulta disso um possível livro. Como a narração em off é feita pela própria Johanne, cria-se pouco a pouco uma dúvida: o que é dito está no livro? Veio antes ou depois?
Se tudo é visto e filtrado pela subjetividade da garota, o que dizer das cenas em que ela não está presente, como nas conversas entre sua mãe, Kristin (Ane Dahl Torp), e sua avó, Karin (Anne Marit Jacobsen), ou entre a avó e sua amiga editora, ou ainda entre a mãe e Johanna? Ou será que toda essa narração é feita para o analista, já perto do final do filme? Afinal, ele diz, significativamente, que a conversa durou noventa minutos.
Desde logo Johanne, apesar de sua franqueza e candura, não é uma narradora confiável. Em seu relato se misturam memória, fantasia e desejo – como nos sonhos, título do filme. E o modo como Dreams sobrepõe tempos e relatos contribui para a ambiguidade.
Escadas
Dizendo assim, talvez dê a impressão de que se trata de um filme palavroso, literário. Nada mais falso. A imagem comanda as associações, às vezes em harmonia com as falas, às vezes em fricção com elas.
O primeiro plano é de uma imensa escadaria urbana sob a névoa. Essa escada retornará à tela algumas vezes, notadamente num dos momentos mais fortes e intrigantes de todos: o sonho em que a avó de Johanne visualiza sua versão particular da passagem bíblica da escada de Jacó. Em meio a homens de todas as idades, ela abre caminho pelos infinitos degraus, rumo a um Deus que ela imagina como “um sueco loiro, nu, ostentando o falo para quem quiser ver”.
Outras escadas – do colégio, do prédio onde mora Johanna, etc. – marcarão presença ao longo da narrativa, galgadas com expectativa ou com cansaço, descidas como quem se afunda no abismo.
Se as escadas figuram instâncias de ascensão e queda, de busca de transcendência ou precipitações no fundo do poço, os cachecóis de lã são signos de afeto e conexão humana. Uma cena lida num romance comove Johanne: um homem mais velho envolve o colo de sua jovem namorada num cachecol de lã. Uma cena idêntica se repetirá no apartamento de Johanna, que além de professora é artista têxtil e ensina Johanne a tricotar. O sentido do tato é essencial na constituição da conexão entre as duas, pelo menos da parte da garota.
Música da luz
Também a luz tem um efeito criador de sentido. O apartamento de Johanna é envolto numa luz dourada, cálida, transmitindo a sensação de refúgio e calor humano em meio à cidade branca e gelada. No momento em que a relação entre Johanne e Johanna cai num real mais prosaico, a luz se torna fria e objetiva.
A primeira aparição de Johanna, aliás, é significativa: a luz oblíqua que entra pela vidraça da classe cria uma suave névoa em torno da nova professora, conferindo-lhe logo de cara uma aura quase irreal. No contraplano – os alunos em suas carteiras – a iluminação é normal, sem névoa alguma.
Gerações de mulheres
A experiência amorosa de Johanne, entre o platônico e o erótico, acaba por ter impacto também sobre a mãe e a avó, mulheres de outras gerações, levadas a olhar de um modo diferente para o interior de si mesmas.
É ao mesmo tempo cômica e comovente a sequência em que as duas discutem Flashdance, que assistiram juntas décadas atrás. Kristin, que tinha dez anos na época e adorou, queixa-se de que a mãe estragou seu prazer ao mostrar que era um filme nojentamente sexista, já que o sonho realizado da protagonista era se tornar objeto do desejo fetichista dos machos. Estão no meio de um bosque e, durante a discussão, anoitece e elas se veem perdidas. Quem as ajuda a encontrar o caminho, ironicamente, são três irmãs Brontë, como as célebres escritoras britânicas, pioneiras da literatura feminina moderna.
As ironias, sutilezas e jogos internos potencializam o prazer de fruir um filme delicado, intenso, cambiante como a adolescência de uma garota – algo que não seria possível sem o extraordinário talento e carisma da jovem atriz Ella Øverbye. Por seus olhares, por sua respiração, por sua voz hesitante, por sua pele trêmula se expressa a “terrível e maravilhosa” (palavras suas) descoberta do amor.
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