Água: o preço exclui os brasileiros

Tarifa social foi conquista. Mas não basta, num contexto de superendividamento das famílias e privatização dos serviços de saneamento. Um esforço de juristas e urbanistas tenta resgatar a pauta da universalidade do bem essencial

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A recente promulgação da lei que institui as diretrizes para a Tarifa Social de Água e Esgoto (TSAE) em âmbito nacional, Lei Federal nº 14.898/2024, registrou avanços na garantia de direitos sociais aos vulneráveis, na perspectiva da inclusão de usuários que são conectados ao serviço de água e saneamento formal. A lei é de aplicação automática e prevê critérios de elegibilidade mais abrangentes que diversas normas estaduaisi.

Contudo, como sabemos, a eficácia jurídica da norma está bem longe da eficácia social, ou seja, sua efetiva e continua exequibilidade. No mundo dos fatos, a referida lei não garante a acessibilidade econômica do serviço na prática aos usuários mais vulneráveis, que são aqueles incapazes de pagarem a tarifa social ou aqueles para quem a cobrança é desproporcional às suas condições financeiras, o que pode contribuir no processo de superendividamento das famílias e no comprometimento do mínimo existencialii.

Para além disso, apesar da acessibilidade econômica para a realização do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES)iii ter como principal estratégia a tarifa social, essa vem se mostrado insuficiente em casos de extrema pobreza e vulnerabilidade. Fato que tem motivado o surgimento de uma série de experiências por parte do poder público de isenção da tarifa de água no Brasil e no mundo.

Essa agenda de mínimo de água para a sobrevivência e higiene é denominada de free basic water (FBW) na África do Sul ou mínimo vital de água potável (MVAP) na América Latina (Quintslr; Ferreira, 2023). As políticas de isenção de pagamento de tarifas de água no Brasil são adotadas, por exemplo, no e Pará (PARÁ, 2021a; 2021b).

Ao compararmos o acesso à água e saneamento com a realização de outros direitos humanos, como a saúde, educação e alimentação, diferentes modelos de financiamento público são identificados no Brasiliv e no mundo. A realização do Direito à Água e ao Saneamento está propensa a depender de uma combinação de fontes de financiamento que não pode prescindir do financiamento público, especialmente na sua dimensão de saúde pública.

Superendividamento: como garantir o mínimo existencial?

No contexto de políticas neoliberais com medidas de austeridade no bojo de políticas de privatização de serviços públicos essenciais no Brasil observamos, que estimulado pela alteração da Lei 11.445/2007, o marco do saneamento nacional, pela nova Lei nº 14.026/2020, constitui potencial no sentido de agravar o processo de superendividamento e o retrocesso de direitos fundamentais.

A garantia do mínimo existencial é fundamental para a efetividade dos direitos garantidos no âmbito do microssistema do Código de Defesa do Consumidor, principalmente com as modificações da Lei Federal nº 14.181/2021 que dispõe sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.

O superendividamento pode ser definido como a impossibilidade global do devedor pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos) em um tempo razoável com a sua capacidade atual de rendas e patrimôniov.

Na perspectiva do processo de superendividamento, como um fenômeno social, tem se agravado sensivelmente na sociedade contemporânea, atingindo níveis que inviabilizam o próprio mercado de consumo. Estudo da Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2022, identificou que 69,7% das famílias estavam endividadas e que 43,2% dos consumidores não conseguiriam quitar seus débitosvi.

É importante frisar que o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, inciso I, adota como diretriz o princípio da vulnerabilidade, “porque reconhece a clara exposição da pessoa natural às falhas do mercado”vii. Com efeito, o consumidor dos serviços de abastecimento de água e saneamento deve ser discriminado positivamente como sujeito real de direitos distinguindo-o dos demais agentes do mercado.

Em outubro de 2024 apresentamos, a partir de estudos no Laboratório de Direito e Urbanismo do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, uma Tese Independente no XVII Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, organizado pelo  Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e a Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor (MPcon), a proposta de uma interpretação extensiva da referida Lei de Tarifa Social de Água e Esgoto que garanta o mínimo existencial às pessoas em situação de vulnerabilidade. O enunciado foi aprovado em colegiado composto por juristas, advogados e membros do Poder Judiciário do evento e será publicado na Revista Brasileira de Direito do Consumidor:

“Título: O direito à água e o mínimo existencial para pessoas em situação de vulnerabilidade. A Lei Federal nº 14.898/2024, que institui diretrizes para a Tarifa Social de Água e Esgoto em âmbito nacional, deve ser interpretada extensivamente para a inclusão da isenção de uma primeira faixa de consumoviii, custeada pela Conta de Universalização do Acesso à Água, à luz do acesso econômico equitativo à água e ao saneamento, como mínimo existencial, para pessoas em situação de vulnerabilidade, segundo cada caso concreto.”

A publicação do enunciado em revista de ampla divulgação no meio acadêmico jurídico e judicial pode dar suporte para fundamentar novos estudos sobre o tema e tem o potencial de impactar petições e decisões judiciais em favor de pessoas em situação de vulnerabilidade.

Assim, a partir do entendimento da água como catalisadora de direitos e da necessidade da garantia do mínimo existencial, considera-se que, para além do uso gratuito de água estabelecido pelo volume mínimo que o ser humano precisa para viver – ou seja, a água suficiente para beber, se alimentar e para higiene – deve-se pleitear por interpretações jurídicas protetivas, caso a caso, que garantam que ele viva com dignidade e não apenas sobreviva.


Referências

BRASIL. Lei Federal nº. 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Brasília, DF: Presidência da República, [2007]. Disponível em: lei-11445-5-janeiro-2007-549031-normaatualizada-pl.pdf (camara.leg.br) Acesso em: 20 jul. 2024.

BRASIL. Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico. Disponível em: L14026 (planalto.gov.br) Acesso em: 5 ago. 2024.

BRASIL. Lei Federal nº. 14.898, de 13 de junho de 2024. Institui diretrizes para a Tarifa Social de Água e Esgoto em âmbito nacional, DF: Presidência da República, [2024]. Disponível em: L14898 (planalto.gov.br) Acesso em: 20 jul. 2024.

HELLER, Léo. Os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2022.

MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: RT, 2010.

MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães, VIAL, Sophia Martini. Os vetos parciais sobre a Lei 14.181 e a promoção suficiente dos superendividados: uma ode às quatro culturas desperdiçadas do direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 30, n. 138, p. 17-47, nov./dez. 2021.

ONU. Resolution adopted by the General Assembly on 28 July 2010. Disponível em: A/RES/64/292 (undocs.org) Acesso em: 13 jun. 2025.

PARÁ. Lei nº 9317, de 22 de setembro de 2021a. Institui, no âmbito do Estado do Pará, o Programa Estadual “Água Pará”. Disponível em: PORTAL LEGISLATIVO Acesso em: 23 jun.2025.

PARÁ. Decreto nº 1893, de 28 de setembro de 2021b. Regulamenta o Programa Estadual “Água Pará”, instituído pela Lei Estadual nº 9.317, de 22 de setembro de 2021. Disponível em: LEGIS-PA Acesso em: 23 jun. 2025.

QUINTSLR, S.; FERREIRA, L. C.. A agenda do volume mínimo de água para sobrevivência no Brasil e no mundo. Anais do XX ENANPUR, Belém, PA, 2023. Disponível em: Microsoft Word – ST4_QUINTSLR-FERREIRA_A-agenda-do-volume-minimo-de-agua-para-sob-f48a6139a250b483ab237f41472a49be.docx Acesso em: 25 jun.2025.

i É o caso da norma do Rio de Janeiro, Decreto Estadual nº 25.438/1999, que possui critérios de elegibilidade limitados que incluem residentes de áreas de especial interesse social, mas que não alcançam uma parcela da população inscrita no CadÚnico e que não reside nessas condições, bem como a aplicação da tarifa social não é automática.

ii Bertoncello leciona sobre o mínimo existencial: “O mínimo não é menos nem ínfimo. É um conceito apto a construção do razoável e do justo ao caso concreto, aberto, plural e poroso ao mundo contemporâneo’. E a metodização da busca do mínimo existencial do devedor-superendividado não é diversa, porque dependente da ponderação dos valores incidentes na relação creditícia pretérita.” BERTONCELLO, K. R. D. Superendividamento do Consumidor. Mínimo Existencial. Casos Concretos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 55.

iii A/RES/64/292 (undocs.org)

iv No Brasil pode-se mencionar, por exemplo, os seguintes financiamentos públicos: na saúde, o Sistema Único de Saúde financiado por impostos gerais; na educação, o ensino público gratuito (do básico ao superior) e programas como FIES; na alimentação o Programa de Aquisição de Alimentos e merenda escolar.

v MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: RT, 2010.

vi SENACON e PNUD realizam estudo sobre superendividamento no Brasil | United Nations Development Programme

vii MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães, VIAL, Sophia Martini. Os vetos parciais sobre a Lei 14.181 e a promoção suficiente dos superendividados: uma ode às quatro culturas desperdiçadas do direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 30, n. 138, p. 17-47, nov./dez. 2021, p. 32.

viii A Lei da TSAE considera os primeiros 15 m³ (quinze metros cúbicos) por residência como a primeira faixa de consumo, em seu artigo 6º, § 1º.

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