Sly Stone e o som como provocação coletiva

Homenagem ao músico que funkeou a contracultura e a “ressaca estadunidense”. Brilhante, rejeitou o marketing e foi, aos poucos, apagado. Enquanto outros se “refaziam”, ele desaparecia como gesto de crítica e coerência. Nos deixou este mês…

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Por Ricardo Queiroz Pinheiro, na coluna Outras Canções

Em 2007, numa das poucas entrevistas que aceitou dar após décadas de reclusão, Sly Stone apareceu abatido, desconfiado, arredio, demorando-se em silêncios antes de responder. Às vezes, respondia em monossílabos; outras, em frases que pareciam vir de um plano só dele. Falava de vozes em sua cabeça, de sons que surgiam do nada, como ecos de algo que já não sabia se vinha de fora ou de dentro. Não era metáfora: era uma forma literal de dizer ao mundo como estava — confuso, sensível, carregando no corpo e na escuta as marcas de tudo que viveu. Esse detalhe mínimo, estranho, quase patético — diz mais sobre Sly do que muitas biografias. A música que ele criou sempre esteve nesse limiar: entre o groove e o colapso, entre o som coletivo e o ruído interno, entre a festa e a ressaca.

Sly, naquele momento, já não brilhava — carregava sinais de um desgaste profundo. O brilho se transfigurava em cicatriz, e o que o tornava enigmático agora o tornava insondável. A indústria, que o havia elevado, também o triturou — e parte de sua reclusão era a resposta crua a esse processo. Ele não desapareceu do nada. Foi expulso pelas engrenagens que pedem sempre mais um hit, mais uma turnê, mais uma versão rentável de si mesmo.

Sly Stone, nascido Sylvester Stewart, foi criança prodígio, DJ precoce, multi-instrumentista autodidata. Mas o mais decisivo: foi um ouvinte incomum. Ouvia tudo — gospel, doo-wop, jazz modal, rock branco, James Brown, rádio — e editava com um talento raro. Ainda nos anos 60, compreendeu que a mistura superava o exercício estético: era um ato político. Criou a Family Stone, seu caldeirão de experiência sonora e multirracial. Gente preta, branca, mulher, homem, funk, psicodelia — tudo em combustão. Antes de se falar em representatividade, ele já praticava desordem como método. Seu som não era inclusivo, explodia fronteiras.

Mas Sly não queria ser pedagógico. Não havia projeto educativo: a música era o mote. O que ele e sua banda matutavam no palco era energia bruta. Usavam roupas extravagantes, mas tocavam como se estivessem em transe. E o público reagia com o corpo. Aquilo não era Motown, não era Stax, não era Woodstock: era outra coisa, no meio de tudo. A Family Stone parecia mais uma célula revolucionária do que um grupo musical. Everybody is star.

Stand! foi o ponto mais luminoso. Lançado em 1969, o disco parecia condensar tudo o que Sly acreditava que a música podia ser: convocação coletiva, beleza rítmica, lirismo direto e groove como comunhão. Cada faixa soava como uma bandeira que tremulava sozinha. A canção-título era imperativa: fique de pé, posicione-se. Mas havia também o deboche de “Don’t Call Me Nigger, Whitey”, o existencialismo sorridente de “I Want to Take You Higher”, a delicadeza ácida de “Somebody’s Watching You”. Era funk e psicodelia em plena alquimia, mas sem perder o chão. O otimismo ali não era ingênuo: era decisão estética e política.

Stand! saiu no mesmo ano em que Fred Hampton foi assassinado. O mesmo ano em que o otimismo hippie começava a rachar. Mas ali estava Sly, ainda acreditando no corpo como resistência, no som como provocação coletiva. O álbum funciona como um rito de passagem entre a década do sonho e a década do refluxo. Um antes e um depois.

Por trás do espetáculo, havia o controle. Sly produzia, arranjava, mixava, comandava cada detalhe. Era obsessivo, imprevisível, maníaco por som. Passava horas no estúdio, testando timbres, sobrepondo vozes, desfigurando gravações. “Everyday People” parece um hino universal, mas sua construção é quase científica: vozes em uníssono que se desafinam propositalmente, ritmos que parecem simples mas escondem microvariações. Nada era espontâneo — mas tudo soava como se fosse.

My own beliefs are in my songs
A butcher, a banker, a drummer and then
Makes no difference what group I’m in
I am everyday people”

A virada veio com There’s a Riot Goin’ On, de 1971. O título anunciava revolta — e o disco cumpria. Era o oposto de Stand!, lançado dois anos antes. Se Stand! era clarão, Riot era neblina espessa. Funk desacelerado, gravação suja, letras paranoicas, uma sensação de clausura. O próprio Sly parecia ter se recolhido a um porão interno. Era um disco em estado de recusa, que soava mais como ruído interior do que como produto cultural. O mundo reagia com estranhamento. A crítica demorou a entender. O público, mais ainda. Mas ali estava o artista confrontando sua própria linguagem, como se dissesse: o otimismo morreu — e eu fui ao enterro. É o álbum mais cultuado: um templo que o universo do hip hop evoca constantemente.

Esse mergulho na escuridão não era apenas estético. Sly estava cercado: os canas vigiando seus passos, gravadora exigindo resultados, a banda desmoronando, as drogas tomando conta. Mas ele não recuava. Em vez de voltar ao formato previsível, empurrava ainda mais fundo a dissonância. “Family Affair”, maior sucesso do disco, é quase um sussurro: vozes abafadas, caixa eletrônica, tristeza contida. Funk sem catarse. Soul sem consolo. É como se Sly dissesse: esta é a América. E nela, o amor é uma abstração.

O tempo passou e ele não se adaptou. Os anos 80 exigiam clareza, espetáculo higienizado. Sly respondia com silêncios, sumiços, reaparições constrangedoras. Sua figura virou ruína em tempo real. Mas mesmo na decadência, havia coerência. Ele não mentia sobre sua condição. Enquanto outros se refaziam em versões otimizadas, Sly desaparecia — e esse gesto, em si, era uma crítica. Sua recusa ao marketing finalizou o personagem. Ficou o rastro. O desconforto. E a música.

Quem ouve hoje a discografia de Sly Stone percebe que cada canção carrega uma ideia de mundo. Stand! é uma convocação, esperança angulosa; If You Want Me to Stay, ultimato afetivo; In Time, matemática aplicada ao groove; Runnin’ Away, fuga cínica em forma de canto infantil. Não há tema menor. Tudo é tratado como documento emocional e político. O amor, a tensão racial, a festa, o fracasso — tudo pulsa com urgência. Mesmo os silêncios falam. As repetições são afirmações.

Poucos músicos dialogaram com seu próprio repertório como ele. Sly revisita, refaz, distorce. “Thank You” vira “Thank You for Talkin’ to Me Africa” — mesma letra, nova escuridão. É como se dissesse: vocês dançaram, mas não ouviram. A releitura não é versão preguiçosa, é uma espécie de manifesto sem demagogia. Isso diz tudo sobre ele. Nunca quis ser marionete, produziu incômodo real.

Ainda em “Riot”, o uso precursor de drum machine anteviu o hip hop. Com a banda fragmentada, Sly gravava sozinho. Inventava modos de soar coletivo sem depender de ninguém. Cada batida eletrônica carrega solidão e insistência. É ali que o funk encontra a máquina. E nasce o protótipo do que viria depois: Prince, OutKast, D’Angelo, MF Doom, Kendrick Lamar. Não por imitação, mas por tensão herdada. Sly Stone foi um mestre sem proselitismo.

Sem Sly, o neosoul não teria alma nervosa, nem o funk eletrônico seu veneno político. Ele foi o elo entre o gospel e o sampler, entre o delírio coletivo de um palco e o isolamento de uma mente sitiada. Os anos passaram, mas a música que pulsa com urgência e contradição ainda é escrita na chave que ele forjou.

Seus herdeiros estão por toda parte. No falsete lacônico de Frank Ocean. No virtuosismo desconstruído de Thundercat. Na arquitetura desobediente de Flying Lotus. Na fala rimada e ferida de Kendrick Lamar. Todos eles operam no espaço que Sly abriu: um espaço onde a música negra não precisa escolher entre festa e denúncia, entre espiritualidade e ironia. Sly lhes deu a possibilidade de ser ao mesmo tempo lúdico e insuportável, suave e afiado, hermético e popular. Não como modelo a seguir, mas como autorização para o risco.

Sly nunca aceitou os limites impostos ao músico negro nos Estados Unidos do pós-guerra. Não queria apenas ocupar o palco — queria desmontar as regras de convivência sonora ali dentro. Ao borrar vozes, embaralhar arranjos, desalinhar batidas, misturar sons, desmontava a expectativa de controle. Seus discos eram livres — o quanto podiam ser, na indústria. Sem teoria e falação, mas como experiência concreta. O estúdio virava campo de tensão — não de experimentação livre, mas de invenção sob pressão.

Sly Stone morreu há algumas semanas, no início de junho de 2025. No dia, passei o fim da noite e o comecinho da madrugada ouvindo seus álbuns. Vale o quanto pesa. O corpo se foi, a música continua em estado de combustão. A morte de Sly não o silencia. Vai viver nas pistas, nos estúdios, nas ruas, nos desvios. Talvez ele tenha finalmente descoberto o som perfeito. Este texto não é pra chorar, mas pra confirmar o quão vivo ele foi.

Boa viagem, camarada.

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