Caminhos para descolonizar a saúde na África

Continente precisará encarar novo momento após cortes de doações dos EUA. Momento de repensar o modelo de saúde, reativo, hospitalocêntrico, consumista e insustentável. Saídas: fortalecer a atenção básica, o cuidado comunitário e a participação popular

Pessoas coletando água de uma bomba em Kinshasa, na República Democrática do Congo. Vários países africanos, incluindo a RDC, enfrentam surtos de cólera causados principalmente pela falta de acesso à água limpa e saneamento adequado. Créditos: Health Policy Watch
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Por Githinji Gitahi no Health Policy Watch | Tradução: Gabriela Leite

A saúde na África está em uma encruzilhada – não apenas por causa das mudanças nas dinâmicas geopolíticas ou da redução da ajuda humanitária, embora esses sejam desafios reais, mas porque precisamos confrontar uma falha estrutural mais profunda na forma como nossos sistemas de saúde são projetados.

O continente, lar de mais de 1,4 bilhão de pessoas e que deverá abrigar um em cada cinco habitantes do mundo nas próximas décadas, enfrenta um paradoxo crítico. Apesar dos progressos no combate a doenças infecciosas, os sistemas de saúde africanos permanecem frágeis, subfinanciados, sobrecarregados e presos em um ciclo de intervenções curativas. Esses sistemas priorizam cuidados hospitalares caros que aguardam a doença, enquanto negligenciam a prevenção, a promoção da saúde e o engajamento comunitário para reduzir a carga de doenças.

Esse modelo não é sustentável nem equitativo e nos mantém presos na “armadilha do consumo curativo”. Ele drena nossos já limitados recursos, perpetua desigualdades e mina nossa visão de cobertura universal de saúde (CUS)*.

Sistemas construídos pela comunidade

É hora de mudar de um modelo reativo e centrado nos hospitais para um que invista na produção de saúde – sistemas resilientes, impulsionados pela comunidade e centrados nas pessoas, que previnem doenças, capacitam indivíduos e constroem um futuro mais saudável para todos os africanos.

Um cálculo rápido mostra que países de alta renda gastam cerca de US$ 4 mil per capita em saúde, principalmente por meio de financiamento público. Na África Subsaariana, esse valor é próximo a US$ 40 – isso supondo que os países atinjam a meta aspiracional de alocar 15% de seus orçamentos nacionais para a saúde. A maioria não o faz.

A África pode arcar com um sistema de saúde estruturado como está hoje? A resposta é claramente não.

Esse modelo baseado em consumo tem raízes coloniais, construído para os ricos que vieram para a África e precisavam de um sistema de saúde que refletisse suas necessidades, como estavam acostumados em seus países de origem, reforçado por incentivos políticos que favorecem projetos de infraestrutura de curto prazo em vez de reformas centradas nas pessoas a longo prazo.

Durante a recente Conferência Internacional da Agenda de Saúde da África (AHAIC) 2025, em Kigali, ficou evidente que muitos sistemas de saúde africanos ainda se concentram em tratar doenças em vez de preveni-las – um legado que precisa ser urgentemente superado.

Ciclo vicioso e a armadilha do consumo curativo

Hospitais e clínicas frequentemente servem como epicentros do cuidado, com recursos direcionados para intervenções caras e de nível terciário que os políticos priorizam para agradar eleitores. Esse viés curativo ocorre em detrimento de medidas preventivas necessárias para reduzir a carga de doenças, especialmente o aumento das doenças não transmissíveis (DNTs), como diabetes, hipertensão e câncer.

Em 2019, as DNTs representaram 37% das mortes na África Subsaariana, ante 24% em 2000, e a carga continua aumentando. Nossos sistemas não estão preparados para lidar com essa crise crescente.

A armadilha do consumo curativo é alimentada por vários fatores. Primeiro, um viés pós-colonial por cuidados baseados em infraestrutura e especialistas, em vez de abordagens comunitárias alinhadas às necessidades de saúde daqueles que construíram os sistemas.

Em segundo lugar, uma força de trabalho treinada para tratar doenças, não promover bem-estar. Na faculdade de medicina, passei apenas um letárgico mês estudando saúde comunitária, contra anos aprendendo sobre diagnóstico, cirurgia e farmacologia. Essa narrativa é apoiada por incentivos políticos, já que infraestrutura dá votos, e abordagens orçamentárias históricas priorizam a compra de equipamentos e infraestrutura.

Além disso, a desconfiança em sistemas de saúde distantes, pouco acolhedores e liderados pela oferta leva as pessoas a buscar cuidados apenas quando estão muito doentes, resultando em diagnósticos tardios e altos custos de tratamento.

Não se trata apenas de um problema de saúde, mas de uma crise social e econômica. Quando os sistemas focam em curar em vez de prevenir, consomem recursos financeiros e humanos escassos enquanto ignoram causas profundas, como água contaminada, saneamento precário, desnutrição e a proliferação de alimentos ultraprocessados, cheios de gorduras trans industriais e bebidas açucaradas.

O resultado são altos custos para serviços de saúde, enquanto famílias são empurradas para a pobreza devido a gastos catastróficos com saúde. O resultado é um ciclo vicioso em que a doença perpetua a pobreza, e a pobreza perpetua a doença.

Redirecionar a atenção para a produção de saúde

Para romper esse ciclo, precisamos adotar um modelo de produção de saúde que mantenha as pessoas saudáveis, fortaleça comunidades e aborde os determinantes sociais da saúde.

Ele deve ser antecipatório, equitativo, centrado nas pessoas e sustentável, garantindo que todo africano tenha acesso às ferramentas e ao conhecimento para viver uma vida saudável, incluindo serviços de saúde reprodutiva para adolescentes e mulheres.

Isso requer duas grandes mudanças. Em primeiro lugar, precisamos priorizar a prevenção e a promoção da saúde. A prevenção é a base da produção de saúde.

Evidências mostram que a atenção primária à saúde, com foco em cuidados primários e prevenção, fortalecimento e engajamento comunitário e abordagens multissetoriais, melhora os resultados de saúde, promove equidade e aumenta a eficiência do sistema. No entanto, apenas 48% dos africanos têm acesso a serviços de atenção primária, deixando 615 milhões de pessoas sem cuidados adequados.

Para resolver isso, precisamos investir em sistemas comunitários, incluindo agentes comunitários de saúde (ACS), que são a espinha dorsal da atenção primária.

ACSs são frequentemente o primeiro e único ponto de contato para comunidades carentes. Eles fornecem serviços preventivos, como vacinas, educam as comunidades sobre práticas saudáveis e detectam sinais precoces de doenças – mas muitos ainda são mal remunerados, pouco treinados e desconectados dos sistemas formais de saúde.

Os governos precisam se comprometer a financiar e integrar programas de ACS nos sistemas nacionais de saúde, conforme orientado pelas diretrizes da OMS de 2018 – não como soluções temporárias, mas como pilares centrais da estratégia nacional de saúde.

Mapa do status de credenciamento e salário de agentes comunitários de saúde no mundo. Existe, no país, pelo menos um grupo de agentes comunitários de saúde (ACS) remunerado e credenciado? Roxo: ambos; turqueza: apenas remunerado ou apenas credenciado; vermelho: nenhum.

Promover saúde também significa enfrentar seus determinantes sociais – pobreza, educação, água limpa e saneamento, nutrição e fatores ambientais. Também precisamos de políticas que combatam fatores de risco.

Taxar produtos pouco saudáveis, como gorduras trans industriais, tabaco, álcool e bebidas açucaradas, pode reduzir a carga de doenças crônicas enquanto gera receita para programas de saúde. Esses recursos podem ser direcionados para iniciativas comunitárias que ofereçam água limpa, saneamento e nutrição, abordando as causas profundas das doenças.

Segundo, precisamos fortalecer as comunidades para que sejam participantes ativos de sua saúde. Sistemas de saúde não podem ter sucesso sem a confiança e a participação das pessoas a quem servem.

Muitas vezes, os sistemas de saúde africanos são projetados em torno de instituições e doenças, não das pessoas. Alguns brincam que nossos ministérios da saúde são “ministérios da doença” – um reflexo de como o sistema pode parecer desconectado da realidade vivida.

Comunidades – incluindo jovens, mulheres e grupos marginalizados – devem ter lugar na mesa de decisões. Políticas de saúde devem ser criadas em conjunto e governadas por aqueles a quem se destinam.

É hora de atualizar o marco atual da OMS e reconhecer “pessoas” como o sétimo bloco de construção de sistemas de saúde eficazes, ao lado de prestação de serviços, força de trabalho, sistemas de informação, financiamento, acesso a medicamentos e tecnologias, além de liderança e governança.

Fortalecer comunidades também requer promover responsabilização. Mecanismos liderados pela sociedade civil podem responsabilizar governos, setor privado e outros parceiros pelo cumprimento de compromissos com a cobertura universal, garantindo que políticas estejam alinhadas com princípios de justiça social. Ao dar às comunidades participação em seus sistemas de saúde, podemos construir confiança, incentivar a busca precoce por saúde e reduzir a dependência de cuidados curativos.

Além disso, governos africanos devem combater ineficiências e corrupção, otimizando o uso de recursos limitados. Ao adotar tecnologia digital e inteligência artificial, podemos melhorar sistemas de dados de saúde, aprimorar a prestação de serviços e direcionar intervenções com mais eficácia. A tecnologia deve ser implantada no nível comunitário, não apenas em hospitais, para melhorar o acesso equitativo, especialmente nas áreas mais remotas.

Construindo sistemas de saúde do futuro

Shukulu Nibogore senta no colo de sua mãe enquanto Athanasie Mukamana, uma agente comunitária de saúde em Ruanda, mede seu braço em busca de sinais de desnutrição. Créditos: Health Policy Watch

A armadilha do consumo curativo é um legado de sistemas de saúde coloniais e prioridades globais desalinhadas. Ela não é inevitável. A África tem a oportunidade de redefinir sua agenda de saúde, aproveitando sua população jovem, rica herança cultural e crescente inovação tecnológica. Mas isso requer liderança corajosa e ação coletiva.

Governos africanos devem priorizar a saúde em seus orçamentos nacionais, reconhecendo que não é um custo, mas um investimento em capital humano para o desenvolvimento socioeconômico.

Doadores e parceiros globais de saúde devem mudar seu foco de intervenções específicas de curto prazo para o fortalecimento de sistemas de saúde a longo prazo, alinhados com a Agenda de Lusaka – um esforço para que todos priorizem o fortalecimento de sistemas de saúde, promovam financiamento sustentável e aumentem a equidade por meio de coordenação nacional.

Na Amref Health Africa, estamos comprometidos com essa visão. Nosso trabalho com agentes comunitários de saúde, jovens e líderes locais em 35 países por mais de 67 anos demonstra que a produção de saúde é possível quando as pessoas estão no centro do sistema.

À medida que nos aproximamos de 2030, o prazo para alcançar a cobertura universal de saúde, precisamos decidir: continuamos no caminho de cuidados reativos e caros, com retornos limitados, ou adotamos um modelo que produz saúde, dignidade e oportunidade para todos?

A armadilha curativa pode ser o legado que herdamos, mas a produção de saúde é o legado que devemos construir.


* Nota da tradutora: A Cobertura Universal de Saúde (CUS) é definida pela OMS como um cenário em que “todas as pessoas têm acesso à gama completa de serviços de saúde de qualidade”, uma meta para seus Estados-membros. Trata-se, em geral, de um modelo baseado na promoção da saúde via poder público, que adquire pacotes de serviços essenciais de diversos provedores – incluindo o setor privado, por meio de planos e seguros de saúde.

No entanto, desde 2015, seu avanço está estagnado e até regrediu em regiões rurais de países de baixa renda. Sanitaristas do Sul Global argumentam que o problema não é de implementação, mas de estratégia: defendem que a verdadeira solução para o acesso universal está no financiamento público robusto dos sistemas de saúde. Outra Saúde já tratou do tema aqui e aqui.

Vale destacar que o autor deste texto – diretor de uma organização privada – é um defensor dessa visão. Ainda assim, acreditamos que sua reflexão é relevante para o debate sobre os desafios da saúde no continente africano.


Sobre o autor: Githinji Gitahi é chefe executivo do Grupo Amref Health Africa.

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