Como o Congresso sequestra a democracia?
No pós-golpe, Legislativo sequestrou o orçamento e, agora, controla boa parte da agenda política nacional. Presidencialismo de coalizão entra em crise e emerge uma espécie de “governo congressual”. Lula acumula derrotas e ainda insiste em velhas fórmulas
Publicado 24/06/2025 às 20:55

Foto: AP
Nos últimos anos, o sistema político brasileiro passou por uma transformação que vai além das mudanças conjunturais típicas resultantes das eleições. Uma alteração estrutural no equilíbrio de forças entre o Executivo e o Legislativo redefiniu a lógica de funcionamento do chamado presidencialismo de coalizão, vigente desde a redemocratização. Esse novo arranjo tem sido chamado pelo cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), de “governo congressual”.
Em entrevista concedida ao programa Outra Manhã, da Outras Palavras TV, nesta segunda-feira (24), ele pontuou que um dos elementos centrais dessa mudança diz respeito às regras de execução do orçamento federal. O Congresso Nacional passou a controlar uma fatia crescente dos recursos públicos por meio de emendas parlamentares impositivas, que obrigam o Executivo a executá-las dentro do exercício fiscal. Isso enfraqueceu um dos principais instrumentos de negociação política da Presidência da República, que, até então, podia liberar ou reter emendas conforme o apoio parlamentar, negociando também o comando de pastas ministeriais — antes principais responsáveis pela execução de boa parte das emendas.
O processo começou em 2015, durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, que, enfraquecida politicamente pela ofensiva de uma direita oportunista, aliada a uma extrema direita que começava a tomar forma, não conseguiu evitar o avanço do Legislativo sobre prerrogativas do Executivo.
Em março daquele ano, o Senado aprovou a Emenda Constitucional nº 86, tornando “impositiva a execução de emendas individuais dos parlamentares ao Orçamento da União […]”, obrigando “o governo a executar as emendas parlamentares à lei orçamentária até o limite de 1,2% da receita corrente líquida (RCL) realizada no ano anterior. Desse total, metade — ou seja, 0,6% da RCL — terá de ser aplicada na área da saúde”.
Couto lembra, em seu artigo publicado no livro Governo Lula 3: Reconstrução democrática e impasses políticos, organizado por Fábio Kerche e Marjorie Marona, que essa emenda havia sido aprovada em 2013, mas ficou parada e só voltou à tona em um momento de fragilidade, sendo aprovada finalmente pela Câmara dos Deputados apenas dez dias após a aprovação no Senado.
Bolsonaro e a ruptura definitiva com o modelo tradicional
Após o governo Temer — ideologicamente mais alinhado à maioria do Congresso Nacional e aos interesses econômicos que o pautam, o que facilitou a aprovação da reforma trabalhista e da Lei do Teto —, Jair Bolsonaro iniciou seu governo rejeitando o modelo tradicional de coalizão. Antes mesmo de assumir, Bolsonaro anunciou que não faria alianças formais com partidos e apostaria em articulações com as chamadas frentes parlamentares — a do agronegócio, a evangélica e a da segurança pública (a famosa “bancada BBB”).
A estratégia revelou-se inócua, como destaca Couto na entrevista. Essas frentes não possuem prerrogativas institucionais dentro do Congresso, como indicação de líderes, controle de comissões ou capacidade de pautar votações. A falta de articulação partidária abriu caminho para um novo avanço do Legislativo sobre o orçamento.
“No primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, vem uma segunda emenda constitucional que institui a impositividade das emendas orçamentárias de bancada, que são aquelas que as bancadas dos estados propõem. O Executivo perdeu mais um recurso de barganha. Um pouco mais à frente, aprovou-se também uma emenda constitucional que institui as emendas Pix, aquelas em que o parlamentar pode destinar recursos diretamente para o município, sem qualquer tipo de definição de como esse dinheiro vai ser gasto”, relembra o cientista político.
As alterações sucessivas fizeram com que o Legislativo acumulasse um poder antes inédito. “Resumo da história: foi se empoderando o Congresso de tal maneira, ao longo desse período todo, que ele passou a assumir as rédeas do processo decisório”, pontua Couto.
Congresso empoderado e a era do governo congressual
Esse processo resultou na consolidação de um Congresso com enorme autonomia orçamentária, mudando o jogo político brasileiro. Na prática, o Legislativo passou a ter o protagonismo na definição da agenda nacional e orçamentária, deslocando o centro de gravidade da política de Brasília para dentro das Casas Legislativas.
Mesmo com o retorno de Lula à Presidência e a tentativa de restabelecer a lógica do presidencialismo de coalizão — distribuindo ministérios entre partidos aliados e promovendo negociações —, o cenário já era outro. Como revelou o presidente da União Brasil, Antônio Rueda, em entrevista à Veja, o interesse por ministérios diminuiu drasticamente. “Ele [Rueda] fala algo nessa entrevista que é muito impressionante. Diz o seguinte: ‘olha, para que a gente vai querer ministério?’ O Ministério do Turismo, ele dá esse exemplo, tem 37 milhões de reais de orçamento. Um deputado controla 50 milhões.”
O presidencialismo de coalizão, portanto, não desapareceu, mas foi profundamente alterado. Os desencontros de hoje entre o governo Lula e o Congresso Nacional podem até ter como um de seus componentes eventuais falhas na articulação política, mas dão sinais de que não se trata apenas de uma crise momentânea entre Executivo e Legislativo, e sim da consolidação de um modelo em que o Congresso pauta o governo — e não o contrário.
À medida que as emendas ganham mais relevância no orçamento nacional, causam problemas não só de gestão fiscal por parte do Executivo, como também de execução das políticas públicas, já que as emendas nem sempre são consonantes com o que foi planejado pelo governo, gerando distorções.
Couto destaca também que o denominado “hiperpresidencialismo” no comando das Casas — onde tanto o presidente da Câmara quanto o do Senado detêm grande poder concentrado — altera ainda mais a correlação de forças.
Uma ilustração desse cenário foi vista em abril, quando o deputado federal Pedro Lucas (União Brasil-MA) aceitou, e depois recusou, o convite para ser ministro das Comunicações, a fim de continuar como líder da bancada de seu partido na Câmara. Se saísse, seria necessário um novo processo de escolha interna, e um racha era quase certo entre parlamentares próximos ao governo e os contrários a ele. Integrante do Colégio de Líderes, Pedro Lucas tem papel fundamental justamente na destinação do orçamento, e não valia a pena para seu grupo arriscar essa posição.
Com o Supremo Tribunal Federal sendo o Poder responsável por conter os excessos da sanha legislativa — em especial quando parlamentares aprovam leis frontalmente inconstitucionais —, o desgaste do desequilíbrio chega também ao Poder Judiciário. Com a perspectiva de uma eleição em que a extrema direita possa conquistar metade das cadeiras em disputa no Senado em 2026, processos de impeachment de ministros da Corte poderiam ser abertos, desvirtuando ainda mais um debate sobre as questões nacionais já rebaixado.
O sistema político brasileiro entrou, definitivamente, em uma nova fase. E isso não é uma boa notícia.
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