“Indicadores”, ardil para privatizar a Educação
Ordem de afastamento de 25 diretores da rede municipal pela prefeitura de SP escancara gestão meritocrática, que pune os mais vulneráveis, sem focar em soluções reais – e o controverso critério de avaliações do Ideb, agora usado para justificar intervenção nas escolas
Publicado 23/06/2025 às 17:54

No dia 22 de maio, 25 diretores da rede municipal de ensino de São Paulo foram chamados para uma reunião sem pauta em suas respectivas diretorias regionais de ensino (DRE). Chegando lá, foram informados que seriam afastados de suas escolas para fazer um curso de “reciclagem” entre os meses de junho e dezembro de 2025. Um terceiro Assistente de Direção (um interventor) seria nomeado para compor o quadro da gestão da escola durante o período de afastamento do diretor. No dia seguinte, foi publicado no diário oficial os registros funcionais dos diretores que seriam afastados e os nomes dos interventores de cada escola. A justificativa alegada pela prefeitura de São Paulo, gestão de Ricardo Nunes, para o afastamento dos diretores foi que as 25 escolas escolhidas haviam apresentado baixas notas no IDEB (índice de desenvolvimento da educação básica) e no IDEP (índice de desenvolvimento da educação paulistana) e, além desse critério, os diretores estariam há mais de 4 anos na mesma escola.
Este afastamento sumário revela o aprofundamento do uso distorcido desses indicadores pela rede municipal de ensino. Se antes os resultados do IDEB e do IDEP eram usados para criar rankings e impor o constrangimento às escolas com baixo desempenho, agora passou a ser usado para responsabilizar e desmoralizar a gestão escolar. Nesse processo de dissimulação do problema educacional paulistano, abandona-se a ideia de responsabilizar a unidade escolar e passa-se à execração pública de um dos seus profissionais. Com isso, transmite-se a falsa mensagem de que os problemas da educação da cidade de São Paulo são unicamente de natureza endógena ao contexto escolar, sem responsabilizar a política pública municipal, o que exigiria um esforço amplo e intersetorial para dar conta de fatores extra escolares que dificultam a aprendizagem de crianças e jovens em maior desvantagem social.
As comunidades escolares e toda a rede de ensino receberam com indignação a notícia da intervenção nas escolas e prontamente se colocaram em luta contra a ação arbitrária de Nunes. Foi grande a solidariedade recebida a partir de Universidades, entidades sindicais, organizações e coletivos. A resistência fez com que a prefeitura fizesse um recuo, retrocedendo na nomeação dos interventores. No entanto, o suposto curso de “reciclagem” segue em andamento. Suposto curso porque, na realidade, trata-se de um exílio dos diretores. Não há pauta definida para a formação, não há local de trabalho adequado nas diretorias de ensino e na Secretaria Municipal de Educação (SME) para os diretores afastados de suas escolas. Está cada vez mais evidente que não há um programa estruturado de formação para esses gestores e que o objetivo é tão somente promover a intervenção nas escolas. Tudo parece um grande improviso.
O que tem sido o suposto curso de reciclagem dos diretores
Desde o dia 6 de junho, os diretores afastados estiveram três vezes na Secretaria Municipal de Educação (SME). Na primeira vez, foi reservado o tempo de uma hora de reunião para apresentação do suposto programa de formação pela equipe da SME aos diretores, os quais foram divididos em grupos por região. Uma dessas conversas por região, no entanto, durou apenas 24 minutos, dado o inconformismo de um diretor com a situação. Nas outras duas vezes, os diretores assistiram a relatos de práticas de dois diretores de escola, cujas unidades têm bom desempenho no IDEB. No dia 17 de junho, Amaral Barbosa, diretor de uma escola rural com 300 alunos, no município de Pedra Branca, interior do Ceará, fez o seu relato. No dia 18, foi a vez de Wagner Roberto Neves, diretor de uma escola de programa de ensino integral (PEI) da rede estadual de São Paulo, localizada na região de Interlagos, Zona Sul da cidade. Em comum, os dois gestores tinham a longa permanência na direção da escola e a exaltação de aspectos intra e extra escolares que favoreceram a obtenção dos resultados no IDEB. Embora a prefeitura de São Paulo tenha escolhido esses dois profissionais para conversar com os diretores afastados, paradoxalmente teve como critério afastar aqueles que estão há quatro anos ou mais à frente de suas escolas. Foi interessante também notar, que assim como nas 25 escolas “prioritárias”, o IDEB dessas duas escolas apresentadas como modelos também caiu em 2023 (ano do IDEB de referência utilizado pela prefeitura de São Paulo para justificar o afastamento de diretores de escola), sendo que a nota dos anos finais (9º ano) do ensino fundamental da escola de Pedra Branca decaiu de 7,3, em 2021, para 3,7, em 2023, segundo o portal de dados educacionais QEdu1, o que representa um declínio ainda mais acentuado do que aquele constatado nas escolas “prioritárias”, cujos diretores estão sendo afastados. Por seu turno, o IDEB dos anos iniciais (5º ano) de 2023 não foi registrado no portal de dados, possivelmente o índice de comparecimento dos alunos no exame não deve ter atingido 80%. Vale destacar que o recorte utilizado reflete um ano crítico de medição desses indicadores, cujos declínios nos resultados já eram esperados, devido ao longo período de fechamento das escolas causado pela pandemia do Covid-19.
Enquanto isso, os diretores seguem exilados nas diretorias regionais e as suas escolas estão sem diretor. Sobre isso, cabe ainda dizer que é na diretoria regional, sozinho e sem ter o que fazer, que a violência é percebida com maior intensidade. É lá que as pessoas sentem de maneira ainda mais aguda como esse processo é brutal e atenta contra a dignidade delas, entre as quais, cinco não suportaram esse golpe violento e estão em licença médica. A despeito disso, essas pessoas ainda têm força para seguir na resistência para a derrubada total da medida arbitrária de Nunes.
O avanço do projeto neoliberal e autoritário sobre a educação pública
Toda essa movimentação da prefeitura de São Paulo representa o avanço do projeto neoliberal, autoritário e de desmantelamento da educação pública. Esse projeto tem como objetivo a privatização da escola pública e o enraizamento da ideologia neoliberal, contribuindo para a reprodução das relações sociais capitalistas que proporcionam exploração e desigualdades. Nesse sentido, determina aquilo que deve ser ensinado ou não na escola a partir de uma base curricular comum. O controle da implementação dessa base curricular se dá a partir das avaliações de larga escala (PISA, SAEB, SARESP, Prova São Paulo). Assim, bonifica-se as escolas com bons resultados e responsabiliza-se as escolas com baixos índices, desconsiderando qualquer reflexão mais profunda sobre os motivos que levam uma escola a ter índices abaixo das metas, como, por exemplo, o contexto socioeconômico e cultural em que a escola está inserida ou mesmo condições estruturais para o desenvolvimento do trabalho pedagógico. O decreto que afasta os diretores das escolas com o argumento dos baixos índices educacionais vem combinado com outras medidas que apontam a terceirização da gestão das escolas. Em dezembro de 2024, o prefeito Ricardo Nunes manifestou a intenção em terceirizar a gestão de 50 escolas municipais que apresentavam baixos índices no IDEB2. Em janeiro de 2025, a proposta de terceirização da gestão de 50 escolas foi reafirmada pelo secretário municipal de educação, Fernando Padula3. Recentemente, a prefeitura de São Paulo confirmou a terceirização de 3 escolas em construção nas regiões de Santo Amaro, Campo Limpo e Pirituba4. O modelo a ser seguido é o da EMEF Liceu Coração de Jesus, escola municipalizada em dezembro de 2022. De acordo com esse modelo, o currículo e materiais ficam sob responsabilidade da secretaria municipal da educação, a gestão e contratação de funcionários fica a cargo da instituição privada.
O avanço do modelo privatista no atual momento histórico faz uso do autoritarismo para sua implementação, tendo em vista que trata-se de medidas antipopulares e bastante questionáveis. Para avançar sobre a educação em São Paulo, foi necessário uma ação extremamente violenta que foi o afastamento repentino de diretores, sem justificativas com argumentos sólidos, conforme demonstraremos adiante, desrespeitando as comunidades escolares e o princípio da gestão democrática, tão duramente conquistado e construído a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996. Além dessa ação, o autoritarismo da gestão Nunes sobre a educação municipal também é expresso quando manifesta a possibilidade de adoção do modelo das escolas cívico-militares em São Paulo, conforme anunciado em maio de 20245.
Incoerência das justificativas apresentadas pela gestão de Ricardo Nunes
Afastar diretores de escola com base em notas do IDEB e IDEP é uma ação repudiável por si só, uma medida profundamente autoritária e pouco efetiva para a resolução dos problemas educacionais. Para uma escola que apresenta baixos índices, devemos envolver toda a comunidade escolar na reflexão dos motivos que levaram a tais resultados, quais os problemas que a escola enfrenta, quais as possíveis saídas, e qual apoio é necessário para que a escola saia dessa situação. Tudo isso é o contrário da penalização.
De toda forma, mesmo que pudéssemos considerar apenas uma nota, um índice, para avaliar uma escola, ainda assim a justificativa utilizada pela prefeitura para o afastamento de diretores seria falha. Segundo a nota técnica6 da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), a prefeitura não usou nenhum critério objetivo para determinar quais seriam as 25 escolas. De um modo geral, as 25 escolas afetadas pela intervenção da prefeitura não estão entre as que possuem piores índices, inclusive algumas apresentam notas acima da média. Outro aspecto que a nota da REPU destaca é o fato de não terem sido utilizados os mesmos critérios para avaliar escolas diferentes. Por exemplo, para algumas utilizou-se o IDEB dos anos iniciais, para outras o IDEB dos anos finais, outras o IDEP, e assim por diante. Ou seja, foram escolhidos os números menos favoráveis de cada escola para incluí-la na lista da intervenção. Na lista tem até escolas com projetos político pedagógicos referenciados na comunidade e com premiações, como é o caso da EMEF Espaço de Bitita, que já recebeu comendas e venceu diversos prêmios, como Faz Diferença, concedido pelas Organizações Globo; Territórios Educativos, concedido pelo Instituto Tomie Ohtake; Prêmio Paulo Freire; Professor Nota 10, da Fundação Víctor Civita; Criativos da Escola, da Fundação Alana; Prêmio Heitor Vila-Lobos, da Câmara Municipal, só para citar alguns exemplos. Além disso, a escola recebeu o Voto de Júbilo da Câmara Municipal de São Paulo, em dezembro de 2023, e foi certificada pela Unesco, em 2017, outorga que lhe assegura participação no PEA-UNESCO (Programa das Escolas Associadas da UNESCO).
Ademais, são considerados apenas os índices de 2023, período no qual estávamos saindo de uma pandemia. É inegável os impactos que a pandemia trouxe para o aprendizado das nossas crianças, adolescentes e adultos. Escancarou-se a desigualdade educacional. Estudantes de baixa renda tiveram maiores dificuldades para acesso a equipamentos e internet para dar prosseguimento aos estudos. Devido às jornadas extenuantes de trabalho das famílias, muitas vezes os estudantes não tinham adultos que pudessem acompanhar e orientar o desenvolvimento dos estudos em casa. Em muitos casos faltava o básico para a sobrevivência, como comida e condições sanitárias adequadas para enfrentar o covid 19. É óbvio que os índices educacionais pós pandemia vão ser mais baixos do que no momento anterior. A recuperação da aprendizagem impactada por esse período epidêmico precisará de um longo período para se restabelecer. É no mínimo injusto não considerar essa questão ao analisar os índices educacionais das escolas brasileiras.
Outro ponto que não está sendo levado em consideração pela prefeitura de Nunes são as condições de trabalho e estudo nas escolas. É comum professores acumularem cargos em mais de uma rede de ensino devido aos salários defasados da categoria. Os docentes não possuem tempo suficiente dentro de suas jornadas de trabalho para preparação e correção de atividades, o que acarreta em acúmulo de tarefas a serem realizadas fora da escola, em horário extra não remunerado. Nas escolas faltam funcionários de apoio para o adequado atendimento das crianças com deficiência. Manutenções de equipamentos e da estrutura predial não são efetuadas ou, se são, ocorrem com muita lentidão e depois de inúmeras solicitações, como tem sido o caso da falta de linha telefônica em algumas dessas escolas, que aguardam pela manutenção desde novembro de 2024 e sem perspectivas de resolver o problema, devido ao impasse entre a prefeitura e a empresa prestadora do serviço. Com as recentes ondas de calor, ficou evidente a falta de climatização das escolas. As salas de aula são lotadas, o que torna muito difícil o atendimento à todos os estudantes em suas particularidades de aprendizagem. Cada vez mais amplia-se o número de professores contratados por tempo determinado, sem concurso público. Segundo o portal de notícias Metrópoles, o número de professores temporários aumentou 40 vezes em 5 anos na capital de São Paulo7.
Lições da luta
Apesar de muito duro, podemos tirar algumas lições do processo de luta contra o afastamento dos diretores das escolas da rede municipal de ensino de São Paulo.
O afastamento arbitrário e sem fundamentação sólida expressa uma disputa em torno do currículo. A partir das avaliações em larga escala busca-se homogeneizar e centralizar as escolas em torno de uma base nacional comum curricular. As nossas escolas estão inseridas em contextos culturais e socioeconômicos diversos. Para que a aprendizagem seja significativa e faça sentido para a comunidade onde a escola está inserida, é importante levar em consideração a sua cultura e o contexto social. Por exemplo, se uma escola atende uma população numerosa de migrantes, isso deve ser levado em consideração no currículo e nas práticas pedagógicas da escola. Ou se uma escola está inserida em um contexto de muita violência, é necessário que seu projeto pedagógico considere ações e objetos de conhecimento que visem a superação dessa realidade. A cobrança de metas e índices abstratos sufoca qualquer trabalho que busque dialogar com a diversidade das comunidades atendidas pela escola pública.
Observamos também que as escolas que construíram vínculos mais profundos com a comunidade onde estão inseridas foram as que conseguiram apresentar maior capacidade de resistência, assim como as escolas que constroem a gestão democrática com mais afinco. Outro aprendizado da luta é a importância da solidariedade. Foram muitas as entidades, grupos, organizações e Universidades que repudiaram a medida do prefeito de São Paulo. A repercussão nos veículos de comunicação foi muito grande. Tudo isso contribuiu para exercer pressão e fazer com que a prefeitura recuasse na nomeação dos interventores para as escolas. Dessa forma, fica como aprendizado que a defesa da escola pública passa pelo envolvimento das comunidades, pela solidariedade de todas as categorias e pelo aprofundamento da democracia.
Referências
- qedu.org.br
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