Israel-Irã: Uma grande guerra a caminho?

Como o desgaste de Netanyahu explica a onda de ataques. O que está por trás da posição ambígua de Trump. A nova diplomacia que emerge na região. Os desafios de Teerã em mobilizar apoio concreto de aliados. E os caminhos para frear Tel Aviv

Foto: Omar Sanadiki/AP
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Isabela Agostinelli em entrevista a Glauco Faria e Guilherme Arruda

O intenso bombardeio promovido por Israel contra o Irã, iniciado na última sexta-feira (13/6), não é raio em céu azul. Está intrinsecamente ligado à campanha genocida na Faixa de Gaza e às agressões promovidas contra o Líbano, a Síria e o Iêmen desde o 7 de outubro.

No entanto, não se trata de somente outra frente do conflito no Oriente Médio. O que vem demonstrando a altiva retaliação iraniana — que furou repetidas vezes o “infalível” Domo de Ferro, atingindo regiões urbanas densamente povoadas e acertando mísseis balísticos em bases militares, ministérios e causando o fechamento de uma das duas únicas refinarias de Israel — é que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu decidiu provocar um adversário que possui uma capacidade de resposta muito mais elevada que os países atacados. A guerra poderá se tornar regional? Se assim for, tomaria escala global?

Os primeiros dias indicam que não será um passeio no parque para Israel. No entanto, é preciso ser realista: o cenário internacional é muito duro para o Irã. As críticas ocidentais à conduta israelense na guerra, mesmo que se ampliem, muito provavelmente não passarão da condenação verbal. A tendência geral à normalização sofreu um revés com o 7 de outubro, mas é difícil dizer se os países árabes tomarão ações mais concretas contra os crimes sionistas. À diferença da “relação especial” entre EUA e Israel, Rússia e China tendem a não se imiscuir diretamente no conflito. O Brasil, apesar de aspirar à liderança dos Brics, ainda é complacente, recusando-se a debater o rompimento de relações diplomáticas e econômicas com o Estado agressor.

Mas a ampliação do movimento de massas global em defesa do povo palestino poderia forçar os Estados a imporem sanções reais que paralisem o esforço de guerra israelense?

Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), Isabella Agostinelli ofereceu informações que traçam um contexto mais amplo para o atual cenário do Oriente Médio em entrevista ao Outra Manhã, programa de entrevistas de Outras Palavras

Neste domingo, o Exército israelense bombardeou novamente Teerã, a capital iraniana. O número de mortos nos ataques de Israel que se iniciaram na sexta-feira já subiu para mais de duzentos e vinte, segundo o Ministério da Saúde iraniano; entre eles, setenta mulheres e crianças. Do lado de Israel, os ataques mataram ao menos quatorze pessoas. Israel já ameaça há décadas atacar o Irã. Netanyahu, desde que voltou ao poder, tem uma verdadeira obsessão com essa ideia. Agora, resolveu cumprir as ameaças.

O que estamos testemunhando é mais uma onda de violência e mortes no Oriente Médio, ligada à ação do Estado de Israel como um grande desestabilizador na região. Israel se vende como um pilar do que chama de “nova estabilidade regional”, mas, na verdade, suas ações mostram o contrário. Existe uma grande discrepância entre o que é dito e o que é feito.

Refletindo sobre a racionalidade por trás dos ataques de Israel contra o Irã, iniciados nesta sexta-feira após décadas de ameaças retóricas, podemos levantar a hipótese de que o elemento central, agora, são as pressões que Israel tem sofrido interna e externamente. 

Nas últimas semanas, vimos um aumento dessas pressões — ainda que elas também sejam principalmente retóricas, e não muito materiais. Há o exemplo da Flotilha da Liberdade de que participaram o brasileiro Thiago Ávila e a Greta Thunberg, cujos participantes foram presos por Israel, o que gerou muita atenção da mídia no mundo todo. Há também o Comboio Sumud, caravana que está atravessando o norte da África e reúne muito mais pessoas do que a Flotilha. São quase 7 mil pessoas tentando levar ajuda humanitária a Gaza. A gente também tem visto uma pressão um pouco maior por parte dos Estados e da chamada “comunidade internacional”, que está dando a entender que Israel sofrerá algumas sanções. Principalmente da parte de países europeus, como a Inglaterra, houve a ameaça de quebra de tratados de livre comércio.

Não chegam a ser motivos, mas podemos dizer que esses são alguns fatores que levaram o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, chefe de governo de Israel, a tomar essa atitude brusca de violação da soberania do Irã. No fim das contas, a grande justificativa por trás da ação de Israel foi a “guerra preventiva”. O ataque preventivo retoma o que foi a Doutrina Bush, que deu início à Guerra Global ao Terror e veio para justificar a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003.

Desde o início dos ataques, chama a atenção o posicionamento ambíguo dos Estados Unidos. Apesar de se posicionar claramente ao lado de Israel, os EUA não se posicionaram no sentido de mobilizar todo o seu aparato militar presente no Oriente Médio para também atacar o Irã. Vimos, inclusive, Trump dizer que espera que o Irã volte a negociar em torno do acordo nuclear. Vinte anos após a invasão do Iraque e do Afeganistão, poderia estar começando um Oriente Médio pós-americano?

Esta foi a pergunta que tentei responder na minha pesquisa de pós-doutorado ano passado, mas ainda não consegui: estaríamos vivendo um Oriente Médio pós-americano? Acho que podemos destrinchar essa questão em alguns pontos principais. Primeiro, o também motivo pelo qual Netanyahu adotou a postura de atacar preventivamente o Irã, considerado o grande inimigo na região.

Trump, como você disse, é uma figura ambígua. No começo, afirmou que estaria aberto a novas negociações em torno da retomada de um acordo nuclear entre Estados Unidos e Irã. Dias depois, falou que ia bombardear o Irã. Esse é o mesmo Trump que havia acabado com um acordo nuclear que havia sido feito em 2015, envolvendo o Irã, os EUA, algumas potências europeias e a China, o JCPOA. [Joint Comprehensive Plan of Action, ou Plano de Ação Conjunto Global, um acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano firmado em 2015]. Trump chegou ao poder em 2017 e, já no ano seguinte, se retirou do acordo e retomou as sanções econômicas contra o Irã. Havia a expectativa de que Joe Biden retomaria esse acordo, mas isso nunca se materializou; pelo contrário, ele aumentou o número de sanções.

A questão do acordo nuclear também é um motivo pelo qual o Netanyahu adotou essa postura de atacar preventivamente o seu grande inimigo ali na região: o Irã. Trump é essa figura ambígua que, no começo do ano, disse que estaria aberto a novas negociações em torno do acordo nuclear entre Estados Unidos e Irã. E, na mesma semana, disse que iria bombardear o Irã. Nestas retóricas, onde está a verdade? Qual é, de fato, a posição de Trump? É o mesmo Trump que acabou com o acordo nuclear que havia sido feito entre os EUA, algumas potências europeias, a China e o Irã?

Uma ambiguidade conveniente, ao apoiar Israel e ver que as sanções econômicas contra o Irã não funcionaram… 

As sanções econômicas têm sido um instrumento da política externa americana, quase que preferencial, para lidar com os seus chamados inimigos: Irã, Venezuela, Cuba, Coreia do Norte e a própria Rússia, depois da invasão da Ucrânia em 2022. A grande questão é: a justificativa é pressionar uma mudança de regime; só que isso não aconteceu com o Irã. Pelo contrário, o regime tem se fortalecido, algo que tenho acompanhado bastante, e impulsionam o Irã a diversificar suas parcerias estratégicas. 

Desde 2018, com a retomada das sanções que Trump chama de “campanha de pressão máxima”, o Irã se aproximou muito da Rússia e da China.  Militarmente, não existe ainda um Oriente Médio pós-americano. Os EUA ainda são o país que tem mais bases militares neste território. Mas, em termos de influência econômica e diplomática, a China tem se consolidado como um dos grandes parceiros — ou, pelo menos, o maior parceiro comercial de muitos países.

A China adotou uma postura muito importante lá em 2023, antes dos ataques do Hamas e dessa atual fase do genocídio em Gaza, que foi mediar os acordos de normalização entre Irã e Arábia Saudita, que até então eram países considerados inimigos. Ou seja, uma postura muito diferente da que, desde os anos 80, os EUA adotam como política externa no Oriente Médio, baseada em intervenções e presença militar massiva.

Ainda sobre o Irã, vale prestar atenção em um fenômeno interessante. O país, claro, tem grandes questões domésticas de violações de direitos humanos e há as mulheres que lutam por seus direitos (pois o feminismo não é algo somente ocidental), o que têm desdobramentos dependendo de cada local, mas não houve de fato mudança de regime ou pressão popular para uma mudança de regime. Na verdade, nesses últimos dias, a população iraniana foi às ruas pedir para que o país desenvolva o seu programa nuclear. Isso nunca tinha acontecido. Então, também aí há uma variável importante que é a sociedade civil; não a organizada, mas a população em si. Fala-se muito da força das ruas árabes — no caso do Irã, seriam ruas persas — que acredito ser um indicador interessante do apoio da população ao desenvolvimento do programa nuclear iraniano, algo que exige ser acompanhado de perto. 

Israel nunca assinou o Tratado de Não-Proliferação e tudo indica que possui algo entre 50 a 90 armas nucleares, desenvolvidas com a colaboração de países como Estados Unidos, Reino Unido e França. Israel chegou a fazer testes nucleares clandestinos até mesmo em parceria com a África do Sul do apartheid. Mas, ao se pronunciarem sobre a guerra em curso, as potências ocidentais frisam apenas que o Irã não pode desenvolver armas nucleares. Não se trata de uma hipocrisia da comunidade internacional, que permitiu e apoiou a construção do arsenal atômico clandestino de Israel, exercer toda essa pressão diplomática para que o Irã não faça o mesmo?

É total hipocrisia e impunidade as ações de Israel, apoiadas pelos EUA, claro, porque não assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear — a justificativa usada para ameaçar seus vizinhos. O Irã assinou. Não há provas de que o Irã tem ou está desenvolvendo bombas nucleares. É uma narrativa similar à usada no Iraque: um país está desenvolvendo armas de destruição em massa, neste caso o Irã, ameaçando a estabilidade regional. 

Kenneth Waltz, o “pai da teoria das relações internacionais”, publicou em 2012 um artigo chamado “Por que o Irã deveria ter a bomba”. Basicamente, o argumento da teoria chamada neorrealista das relações internacionais discute a necessidade de uma balança de poder, o mesmo ou similar, para garantir a estabilidade regional. 

Isso também retoma um pouco a uma das primeiras perguntas, sobre os motivos de Netanyahu atacar o Irã agora, diante da perspectiva de que as negociações entre Teerã e Washington para promover um novo acordo nuclear fossem retomadas ainda neste mês. A estratégia de Trump e Biden sempre foi de pressão, infundada e ineficaz, por meio de sanções econômicas.

Agora tem-se uma retórica um pouco diferente; uma postura, pelo menos em estratégia, que é voltar à mesa de negociação para, enfim, chegar ao novo acordo nuclear e diminuir, ou pelo menos acabar, com as sanções econômicas. Isso significa que, se esse acordo, de fato, for feito, haverá um novo arranjo de acordos que permitam que o Irã não sofra mais com estas sanções e consiga se estabelecer no Oriente Médio de forma um pouco mais estável. 

Isso não é interessante para Israel. Ano passado, Netanyahu foi aos Estados Unidos e discursou no Congresso americano, dizendo que o Irã era o grande inimigo e que era o momento para desenvolver sua visão para o Oriente Médio. Ele apontou que, com mediação dos EUA e com as relações com alguns países árabes, principalmente monarquias do Golfo, seria possível estabelecer a Aliança de Abraão – uma espécie de Otan do Oriente Médio. 

A normalização das relações com a Jordânia em 1994 e, antes, em 1979, com o Egito, além das que Israel tem com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão, não são acordos de paz, porque não são países que estavam em guerra com Israel, mas era uma lógica surgida em 2020, e mediada por Trump, baseada no que alguns autores vão chamar de paz neoliberal ou paz econômica: a ideia de que as relações comerciais são as responsáveis por estabilizar a região ao fazer com que os países não entrem em guerra. A Palestina, dentro dos acordos de Abraão, foi completamente ignorada; ou seja: a questão palestina não era mais um elemento que deveria ser resolvido para garantir a chamada paz entre árabes e israelenses. 

Outro país entraria no acordo: a Arábia Saudita é o grande foco dos acordos de Abraão, apesar de ainda não fazer parte. Desde Trump I e depois com o Biden, houve uma tentativa de incluir a Arábia Saudita, sendo o ator mais poderoso do Conselho de Cooperação do Golfo e das Monarquias do Golfo. Uma normalização entre Arábia Saudita e Israel significaria o completo abandono da questão palestina. Os ataques do 7 de outubro do Hamas e o genocídio em Gaza paralisaram completamente essas negociações. A Arábia Saudita disse que não vai retomar as negociações enquanto não houver uma solução factível para a criação de um Estado palestino. 

Mas o genocídio em Gaza também mostrou que a ingerência dos Estados Unidos ainda é muito forte. Autores apontam, e eu concordo, que os EUA não somente apoiam o genocídio em Gaza, mas estão diretamente envolvidos, ao mandarem ajuda militar e financeira — ou seja, são os financiadores.  China e Rússia muito pouco têm feito também para frear esse genocídio, apesar de serem duas grandes potências que poderiam ter uma influência para pressionar o Estado de Israel. Ontem mesmo, houve outros bombardeios em Gaza, mas os olhos do mundo estão, obviamente, voltados para o Irã. 

Além da dinâmica recente de normalização das relações com Israel, chama atenção a conduta dos Estados árabes durante a atual guerra. O Comboio Sumud está sendo impedido de seguir até Gaza por um dos governos rivais que disputam a Líbia. Os participantes da Marcha Global para Gaza estão sendo presos e deportados pela ditadura do Egito. Segundo a própria monarquia, a Jordânia está derrubando os mísseis iranianos que cruzam seu espaço aéreo, alegando “defesa da soberania”. Existe alguma chance de que os estados árabes mudem de postura e tomem ações concretas contra os crimes e a conduta agressiva de Israel?

Sou bem pessimista nesse sentido. Acompanhando as ações de Egito e Jordânia, se vê que a questão palestina está longe de ser uma prioridade desses Estados. Não acho que os países do mundo árabe vão adotar uma postura mais dura em relação a Israel, principalmente os que já assinaram os Acordos de Abraão, como os Emirados Árabes Unidos (dentre eles, o Bahrein teve uma postura um pouco diferente, mas é um país muito pequeno).

Desde o momento em que normalizaram suas relações com Israel, esses governos passaram a ser considerados “traidores” pelas populações árabes. Normalizar as realizações com Israel é entendido, em primeiro lugar, como aceitar a própria colonização sionista da Palestina. Desde o 7 de outubro, ocorre uma série de manifestações no próprio Egito, na Jordânia, na Arábia Saudita e em outros países contra isso. Uma pesquisa do Washington Institute for Near East Policy mostrou que 96% dos sauditas é contra a normalização com Israel. Essa seria uma normalização de jure, porque ela já existe de fato, dado que existem relações comerciais por debaixo dos panos. Elas são principalmente ligadas à troca de tecnologia e à indústria de armas. 

Israel tem uma posição muito estratégica em sua política externa, que alguns autores chamam de “diplomacia das armas”, ou da venda de armas. Eles conseguem se dar bem com muitos países — inclusive do Sul Global, como o Brasil — e solidificar suas relações com base na indústria de armas e no setor tecnológico. Soma-se a isso a venda de sua imagem como uma “start-up nation” e como um oásis ocidental no Oriente Médio. No fim das contas, esses instrumentos conseguem consolidar essas boas relações comerciais, mesmo que não diplomáticas. Existe uma discrepância entre o que é dito na diplomacia e o que é feito na economia política internacional.

Com os países árabes, trocam-se muitas tecnologias e táticas de contra-insurgência. O Egito é um dos maiores exemplos. A cooperação foi se consolidando depois das revoltas árabes e se materializou mais adiante nos Acordos de Abraão. O comércio de Israel com os países árabes cresceu exponencialmente desde então e a venda de armas foi recorde no ano passado. De toda forma, a sociedade civil nesses países é contra a normalização, apontando que normalizar as relações com Israel é normalizar o genocídio, a limpeza étnica, a ocupação e a colonização israelense da Palestina. 

Um dos resultados do 7 de outubro foi expor ao mundo os perigos da normalização de Israel, lembrando que a criação e a manutenção desse Estado se baseiam na colonização, na expulsão e no roubo de terras. Enquanto olhamos para o que está acontecendo no Irã, Israel leva adiante sua política de expansão de assentamentos na Cisjordânia. Antes do 7 de outubro, Gaza estava ficando completamente marginalizada. Depois, ela passou a ser o centro das atenções. 

É importante que não se perca essa visão mais ampla do que é a questão palestina. Ela tem suas particularidades locais, mas revela violências estruturais que atingem todo o mundo. O que acontece na Palestina não é muito diferente do que aconteceu na África do Sul durante o apartheid ou de outros genocídios em curso. Apesar de Gaza ser um espaço muito pequeno, de somente 365 km², ela consegue revelar as operações estruturais do capitalismo e do colonialismo no século XXI.

Os gastos militares globais aumentaram em 37% na última década, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Em parte, isso se deve às pressões de Donald Trump sobre os demais países da OTAN e também à guerra na Ucrânia. Mas a escalada das tensões no Oriente Médio seguramente cumpre um papel nessa tendência. Como o atual conflito se encaixa na corrida armamentista mais geral que ocorre no mundo?

A guerra é sempre muito lucrativa para a indústria de armas. Desde o 7 de outubro, o volume do comércio de armamentos de Israel se expandiu bastante. Não só lá como também nos Estados Unidos, até por conta da guerra na Ucrânia. Existe um elemento de lucratividade na guerra permanente, mas que tem um fator particular neste caso: Israel foi fundado e se mantém por meio desse estado de guerra permanente contra os palestinos. A Palestina é um grande laboratório onde Israel testa suas armas que depois vão ser exportadas, inclusive para o Brasil.

Vários movimentos chamam a atenção para as conexões entre a colonização israelense da Palestina e a violência contra as comunidades, denunciando que as armas que matam os palestinos são as mesmas que matam a juventude negra no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Já existe uma nova corrida armamentista, mas ainda é complicado dizer no que ela vai resultar. Israel e o governo Netanyahu têm apostado tudo para tentar se manter existindo, e há uma tentativa de envolver diretamente os Estados Unidos na guerra. Não sei se os EUA se envolveriam militarmente no sentido de envio de tropas, já que existe a possibilidade de uma postura vinculada à retórica America First do Trump, de se retirar dos conflitos intermináveis no Oriente Médio. Isso já aconteceu no primeiro mandato dele, como nas negociações com o Talibã que resultaram na retirada das tropas americanas do Afeganistão em 2020. Mas tudo é possível nas relações internacionais, especialmente em um momento em que Trump diz uma coisa e no dia seguinte faz outra.

Em termos das relações entre as grandes potências e os países da região, os Estados Unidos e Israel têm consolidado e expandido sua chamada “relação especial”, em que muitas vezes é difícil distinguir o que são os interesses de Israel e o que são os interesses dos Estados Unidos. Se houver uma guerra total entre Israel e o Irã, acredito que os EUA vão se envolver diretamente. No entanto, o mesmo não seria verdade em relação ao Irã, que mantém boas relações com China e Rússia. A China opta por apoiar o Irã por meio de conversas diplomáticas e de bastidores, ela tradicionalmente não tem essa postura de envolvimento militar nos conflitos do Oriente Médio. A Rússia chegou a se envolver no conflito da Síria — mas o governo de Bashar al-Assad, com quem os russos mantinham relações, caiu em dezembro do ano passado. O envolvimento militar russo é improvável.

Isso responde também a uma dinâmica regional que tem se materializado desde a Primavera Árabe. As monarquias árabes que fazem parte do Conselho de Cooperação do Golfo adotam uma política externa que alguns autores chamam de hedging. Não se trata exatamente de neutralidade, mas é uma política de segurança em que se mantém boas relações com potências inimigas. É o caso da Arábia Saudita, que mantém relações com os Estados Unidos e a Rússia ao mesmo tempo. As monarquias não adotaram a política de sancionar a Rússia, encabeçada pela União Europeia e os EUA. Pelo contrário, elas mantiveram a cooperação energética, muito pautada pelo comércio do petróleo e do gás natural. Essas outras potências não se envolveriam em uma guerra regional entre Israel e Irã.

Além disso, existe a questão do armamento nuclear. É a primeira vez desde a Guerra Fria em que podemos estar na iminência de um conflito nuclear. Não acredito que essa guerra vá evoluir nesse sentido, até porque isso poderia significar a destruição da humanidade, mas é difícil não desconfiar do que Netanyahu e Trump podem fazer. 

Por isso, volto para o que tem se defendido desde o início do genocídio em Gaza, que é a necessidade de sanções e pressão contra o Estado de Israel que não sejam somente retóricas e diplomacia. Uma pesquisa que saiu no ano passado mostra que o Brasil é responsável por 9% do suprimento de petróleo cru de Israel. Interromper isso é uma forma de fazer uma pressão real. É o que se fez na Colômbia, depois da pressão de sindicatos e movimentos da sociedade civil. A Colômbia era um dos países que mais vendia carvão para Israel, e o governo de Gustavo Petro interrompeu esse comércio. Mas é preciso um movimento de massa. Além disso, não basta um só Estado sancionar ou pressionar Israel, mas toda a comunidade internacional, que supostamente preza pela paz e segurança internacional, tem dado carta-branca para Israel fazer o que bem entender. 

Essa é a defesa do movimento global Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que existe desde 2005 e é uma forma de resistência para que Israel mude sua postura em relação aos palestinos, mas também ao Irã, ao Iêmen, à Síria, enfim, todos os países agredidos.

Desde o 7 de outubro, dez países passaram a reconhecer o Estado da Palestina. Outros onze países romperam ou reduziram o nível das relações diplomáticas com Israel. Ontem, manifestações significativas por todo o Brasil exigiram a ruptura das relações diplomáticas e econômicas com Israel. O ato em São Paulo chegou a contar com 30 mil pessoas. Mesmo assim, o governo Lula não se move. O que está por trás dessa paralisia?

Acredito que um dos elementos seja justamente a força de Israel com base em sua diplomacia das armas. Ela faz com que Israel tenha uma influência na política externa e até mesmo na política doméstica dos países. Além disso, é preciso considerar a força do movimento sionista — aqui, não só falando de “lobby israelense” ou “lobby sionista”, porque não se resume a isso —, da própria ideologia sionista, que encontra adeptos em muitos países. Mas o comércio é o elemento central que vai nos ajudar a entender por que o Brasil de Lula, que se diz progressista e defensor dos direitos humanos, segue com essa postura ambígua.

Lá em 2010, no apagar das luzes de seu segundo governo, Lula reconheceu o Estado da Palestina como um dos seus atos finais. Mas é preciso lembrar que naquele mesmo governo foi assinado o Acordo de Livre Comércio Mercosul-Israel, que não aconteceria sem a anuência do membro mais poderoso do bloco. Aquele foi o primeiro acordo comercial do Mercosul com um país de fora das Américas, isso não é pouca coisa.

Um dos elementos centrais para desmantelar a influência do imperialismo dos Estados Unidos no Oriente Médio é pressionar materialmente o Estado de Israel. No caso do Brasil, isso significa parar a venda de petróleo que abastece a indústria militar israelense e, em última instância, o genocídio em Gaza. 

O Brasil pode fazer muito mais do que só vir a público e dizer que está acontecendo um genocídio e Israel deveria parar de matar os palestinos. Uma política externa brasileira mais robusta e assertiva deveria pressionar materialmente o Estado de Israel, e ser um exemplo do que outros países latino-americanos e do Sul Global podem fazer. O Brasil se vende muito como uma liderança da América Latina, dos Brics e do Sul Global, mas está se restringindo aos termos retóricos. Eu não quero dizer que as palavras não são importantes, a diplomacia funciona por meio de gestos. Mas para parar as bombas que caem diariamente contra os palestinos, elas não bastam.

A Colômbia trouxe um exemplo importante, que deve ser seguido. Além de ter parado de vender carvão a Israel, a Colômbia integra o que é conhecido como Grupo de Haia, um grupo de nações do Sul Global que se uniram para fazer valer a ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional contra o Netanyahu e também para promover uma série de ações voltadas para o movimento de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel. O Brasil, assim como os demais países do Sul Global, deveria seguir o exemplo colombiano. O que acontece na Palestina pode acontecer a qualquer momento em nossos países, que vivem até hoje o legado da colonização e do imperialismo dos Estados Unidos e seus aliados.

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