Memória e cuidado coletivos contra o racismo na saúde

Implementação da política de saúde de quilombolas abre discussão mais ampla: como grupos tradicionais vivem a saúde? Em meio às grandes barreiras impostas, inclusive no SUS, resgate de sua história e saberes é crucial para romper o ciclo de poder e violência

Mãos negras de uma mãe de santo, adornada com anéis e pulseiras e, sobre elas, um ramo de folhas e flores. Para combater racismo na saúde, é preciso valorizar a memória coletiva.
Créditos: Amanda Oliveira/GOVBA
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O debate em torno da consulta pública sobre a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (PNASQ), tem aflorado a discussão nas redes sociais, nas mídias de comunicação, na arena política e no campo acadêmico/científico sobre a situação de saúde, não apenas da população quilombola, mas de outros grupos tradicionais. Por isso, não é possível falar em saúde, adoecimento e morte sem debater a noção social de que estes grupos constituem-se empecilho ao projeto de desenvolvimento do país.

A regularização fundiária não acontece em sua inteireza e é assinalada por intensas relações desiguais e excludentes de poder, as quais afetam a vida daqueles que dependem dos recursos naturais para sobreviver e reproduzir as suas famílias. Em paralelo, ainda temos as consequências dos impactos que as mudanças climáticas tem provocado na natureza e os projetos ditos de desenvolvimento, os quais estão alinhados à noções capitalista da superprodutividade e acúmulo de mais-valia destinadas ao beneficiamento de um grupo específico: os grandes produtores rurais do agronegócio, cuja propaganda de uma grande emissora de tv já diz: “ O agro é tech, é pop, é tudo!”

Além destes elementos, comunidades quilombolas, povos de terreiros e indígenas ainda sofrem com o impacto do racismo vivenciado cotidianamente, exacerbando os fatores de risco para a saúde. Assim, esses territórios são para estes grupos os espaços de existência e de produção de cultura, abrigo daqueles que desenvolveram práticas de trabalho e de resistência somadas a uma organização política própria, que objetiva manter e reproduzir a cosmologia de grupo.

Os processos de adoecimento são pensados a partir da autoatenção e da intermedicalidade, constituída com base em um itinerário terapêutico que congrega o acesso aos serviços de saúde institucionais, mas também o acesso a espaços religiosos ou de outras práticas de saúde tradicionais legitimadas pelas próprias comunidades. É na junção dessas práticas e dos saberes tradicionais passados por geração, por meio da oralidade, nos espaços de negociação entre atores e atrizes diversos, que surgem as novas estratégias sociais de cuidados em saúde, ou seja, emergem saberes híbridos sobre a tríade saúde-adoecimento-morte.

É o modo de lembrar que legitima as tradições, diferenciando os grupos rurais tradicionais dos urbanos, mas isso é possível porque alguns indivíduos são tidos para o grupo como sujeitos legítimos, pois possuem autoridade, a vivência e experiência para abordar o assunto. As relações sociais baseiam-se na sociabilidade pautada num ethos fundado nas trocas de reciprocidade, solidariedade e confiança e nas relações de parentesco, compadrio e vizinhança.

Por isso, os/as sabedores, portadores dos conhecimentos tradicionais — como benzedeiras, parteiras, rezadeiras, yalorixás, babalorixás, pajés, xamãs e tanto outros/as –, ainda possuem papel fundamental em suas comunidades, sendo legitimados/as pela efetividade do cuidado, pois é com eles que se aprende o passado e as práticas tradicionais de saúde. É por eles que se dá a transmissão dos fatos como forma de manutenção da tradição. São eles que possuem os saberes sobre o uso das plantas medicinais, das práticas de cuidado que se utilizam dos elementos da natureza e do tempo. São eles que, na ausência do Estado em garantir a atenção em saúde, mantém formas de cuidado para a sobrevivência de suas comunidades.

O fato é que o processo de vulnerabilização social ao qual estão expostas as populações tradicionais aparece situado dialeticamente entre a insuficiência sentida na invisibilidade social, e o excesso materializado no preconceito étnico-racial. Vemos que a definição de atendimento nas instituições de saúde, em sua grande maioria, dificulta o acesso destas populações, pois a presença do racismo institucional e interpessoal se faz legitimada pelo aparato legal do Estado. E ainda há a negação dos saberes tradicionais e do reconhecimento da efetividade da ação prática e espiritual desses/as sabedores/as.

Por isso, as ciências sociais têm proposto que os/as profissionais de saúde estejam atentos/as à narrativa destas pessoas no momento do atendimento, pois a comunicação estabelecida estará permeada por um diálogo de criatividade, e, portanto, deve-se considerar também as palavras quase ditas ou não ditas, os momentos de silêncio e as expressões corporais e visuais, bem como a ordem de prioridade e intencionalidade definidas nos fatos destacados.

Essa memória que será contada é também coletiva e pode apontar como as experiências de adoecimento e morte são vivenciadas e compartilhadas dentro dos seus grupos; quais são as estratégias de sobrevivência criadas; e como se organizam internamente ou intragrupos para suprimir a atenção e cuidado em saúde que deveriam ser proporcionados pelo Estado brasileiro. A saúde para as comunidades tradicionais é coletiva, logo, o adoecimento e morte também o são, e como tal, só podem ser vivenciadas se o grupo estiver saudável e não anômico.

Todavia, a falta de preparo e capacitação dos/as profissionais de saúde no acolhimento e atendimento a esta população faz com que estes/as não alcancem a complexidade das relações sociais, dos modos de vida e trabalho e o impacto da determinação social nas condições de saúde. Seus conhecimentos e métodos tradicionais de pensar as representações sociais da saúde e da doença, do itinerário terapêutico, das formas de cuidado e até da morte não são valorizados e respeitados, transformando-se em instrumentos de exclusão e estigmatização promovidos no âmbito do campo científico, acadêmico e profissional/prático da saúde em nosso país.

Todavia, o impacto do racismo é real na vida dessas pessoas, tornando-o uma experiência que está para além da percepção individual, mas que é compartilhada pelo grupo, porquê é vivenciada por seus membros em diversos espaços e contextos. O serviço de saúde e os/as profissionais que atuam nesse campo precisam estar preparados e letrados no sentido de compreender com mais profundidade as idiossincrasias dos povos tradicionais e como o racismo vivenciado adoece fisicamente e mentalmente, bem como tem acarretado o óbito de uma parcela considerável dessa população.

Em suma, é preciso superar a ideia de individualidade do cuidado nos serviços de saúde. Mas, o que é preciso fazer para efetivar a dimensão coletiva do cuidado em saúde? O primeiro passo é superar práticas assistenciais centradas nos procedimentos profissionais, como marca da ação hegemônica do paradigma biomédico, seguido da reconfiguração do agir profissional e institucional que sejam desterritorializados, interdisciplinares, multiprofissionais e intersetoriais.

Esse projeto de cuidado coletivo deve priorizar a superação do modo de cuidado centrado na doença e na figura do/a médico/a e ter como base o sujeito e suas relações sociais. Contextualizar o cuidado de acordo com as necessidades desses/as usuários/as, reconhecendo o papel da dialogicidade, da agência do outro, dos/as sabedores tradicionais, da escuta qualificada que não emite julgamentos, permitindo que a centralidade esteja na fala e na narrativa deste/a outro/a.

A narrativa êmica, que resgata as lembranças da memória coletiva, cumpre este papel, pois quando este sujeito, silenciado historicamente, rompe com o silêncio e consegue falar de suas dores, expressar suas experiências de adoecimento, regatar as lembranças de sua vida, o faz também por sua coletividade. Ao expor a sua compreensão de mundo sem que seja julgado, combatido e silenciado, este sujeito, e, por consequência, todo o seu grupo, resiste, se rebela e se expressa.

O ato de falar, narrar, contar, gritar é uma forma política de romper o ciclo do poder e das violências, de contar as histórias por outra perspectiva que não a da história única do colonizador, do vencedor ou do influente poderoso. Discursar, narrar não são apenas atos de resistência: são um ciclo processual de educação para a consciência crítica, do rompimento com as matrizes de opressão, do questionamento à lógica que opera os dispositivos de racialidade, ou seja, um estágio no processo de transformação radical.

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