A geopolítica do fentanil e a falta de alternativas
Crise criada pela Big Pharma envolve relações delicadas entre EUA, México e China, agravada por um possível “trumpismo ácido”. Mas, diante da falência da guerra às drogas, há caminhos para superar a catástrofe das vidas destruídas pelo abuso de substâncias?
Publicado 09/06/2025 às 09:36 - Atualizado 09/06/2025 às 09:37

Por Raimundo Viejo Viñas, na CTXT | Tradução: Gabriela Leite
Em sua coletiva de imprensa de 5 de março, Lin Jian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, afirmou: “A pressão, a conversão e as ameaças não são a forma correta de lidar com a China. O lado chinês já expressou em múltiplas ocasiões sua oposição ao uso persistente da questão do fentanil pela parte americana como desculpa para aumentar ainda mais as tarifas sobre as importações chinesas”. Essa foi a resposta à crise comercial desencadeada pela elevação tarifária global de Trump.
Em sua intervenção, o governo chinês voltou a colocar em primeiro plano a questão do fentanil. Ou melhor: a questão do regime farmacológico, que afeta a política farmacológica norte-americana e a atravessa em visões irreconciliáveis. Dividir para conquistar. Como é evidente, as declarações chinesas foram muito bem calculadas e destinadas a revidar em uma linha de tensão que tem aparecido de forma recorrente nas relações entre as duas superpotências.
Um claro antecedente disso havia se tornado patente na reação chinesa à polêmica visita a Taiwan de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, em agosto de 2022. Naquela época, a China havia decidido suspender a colaboração com os Estados Unidos na luta contra o narcotráfico; o que implicava o fentanil de forma muito direta. Até aquele momento, o Governo chinês havia cooperado com os EUA para limitar o tráfico dos precursores químicos essenciais na síntese do fentanil; pois, embora a droga entre ilegalmente a partir do México, introduzido sobretudo pelo cartel de Sinaloa, sua elaboração não seria possível sem os precursores de origem chinesa.
As implicações da advertência de Lin Jian, portanto, iam muito além da conjuntura atual. Buscavam afetar os dois paradigmas que tensionam o bloco presidencial com orientações muito divergentes: o velho punitivismo neoliberal e o emergente “trumpismo ácido” encabeçado pelo ministério de Robert F. Kennedy e os oligarcas do Vale do Silício. Se o primeiro insiste na vigência do modelo da guerra às drogas, o segundo cresceu em seus efeitos devastadores e aponta mais além, para uma mudança de paradigma baseada em um marco desregulador que poderia comprometer os interesses farmacêuticos forjados ao amparo de décadas de punitivismo. Entre uns e outros deve-se manejar a administração Trump.
Por outro lado, a gravidade deste assunto também não pode ser desvinculada de outro fato inesperado: o assassinato de Brian Thompson, diretor da United Healthcare, a maior seguradora dos EUA, pelas mãos de Luigi Mangione. Não por acaso, a ação letal do jovem teve uma acolhida muito favorável em amplos setores da sociedade; farta dos abusos que Mangione denunciava com o triplo D das três balas que disparou sobre o CEO e que sintetizavam as práticas abusivas das seguradoras: “Delay” (atrasar o atendimento), “Deny” (negar a reclamação) e “Defend” (defender o decidido perante os tribunais).
Todos esses fatos, e muitos outros, se unem agora em uma crise extraordinária que evidencia até que ponto Trump retornou como um elefante em uma loja de porcelana. A importância do que acontece, de fato, está estreitamente ligada a como o regime farmacológico tem sido articulado por décadas, dentro e fora das fronteiras dos EUA. Toda a arrogância que Trump pode exibir no terreno militar pressionando a comunidade internacional contrasta com a fragilidade de sua resposta à implosão do neoliberalismo, quando se vê obrigado a atender à crise doméstica de um sistema de saúde totalmente ineficiente.
O fentanil passa para o primeiro plano
A crise do fentanil, que assola os EUA desde o início da década passada, é a mais devastadora de todas as que tiveram origem no consumo de drogas. Ficam para trás as duas ondas que precederam o fentanil, mas que já alertavam para um perigo intrínseco ao regime farmacológico norte-americano. Essa sinistra genealogia não é casual, mas política, e tem origem no devastador modelo de saúde privada que nenhum presidente se atreveu a emendar por medo dos interesses de seguradoras, farmacêuticas e demais beneficiários do sistema.
A primeira das ondas que anunciavam a crise do fentanil se deu devido ao abuso de opioides receitados, e ocorreu entre o final dos anos noventa e 2010. Naquele contexto, farmacêuticas como a Purdue Pharma promoveram agressivamente analgésicos como o OxyContin. Substâncias como a oxicodona, a hidrocodona, a morfina e outros opioides legais e receitados por médicos aumentaram a dependência de muitos pacientes. O número de mortes disparou. Uma segunda onda ocorreu então, protagonizada pela heroína. Ao endurecer a regulamentação dos opioides receitados, os usuários se viram forçados ao consumo de heroína com o consequente aumento de overdoses inerente ao mercado negro. O resultado foi devastador: entre 2010 e 2015, as mortes por overdose de heroína triplicaram.
Apesar dessas ondas prévias que já alertavam para o perigo, a crise do fentanil acabou por explodir. Um regime farmacológico baseado na comercialização enganosa e no excesso de prescrição de opioides legais abriu a porta para que milhares de pessoas que nunca haviam tido contato com drogas ilegais se tornassem dependentes e não tivessem outra alternativa senão recorrer à distribuição ilícita. Como não poderia deixar de ser, o mercado respondeu à sua maneira: a partir de 2020, ano da covid, a apreensão de pílulas com fentanil disparou: de 4.149.037 passou para 115.562.603. Como era previsível, o problema de saúde “pública” só piorou.
Chegamos assim ao cenário atual. Para nos situarmos rapidamente, estamos falando já da principal causa de morte não natural entre os 18 e 45 anos nos EUA. Até 50 vezes mais potente que a heroína e 100 vezes mais que a morfina, o fentanil disparou o número total de mortes por overdose de opioides sintéticos; dos 52.404 casos registrados em 2015 para os 111.029 de 2022. E embora a crise parecesse imparável, em 2023 a tendência desacelerou pela primeira vez, caindo para 108.318 mortes por overdose.
Entre as razões pelas quais houve essa diminuição no ritmo, encontram-se algumas que resultam da gestão doméstica do problema. Por exemplo, a maior disponibilidade da naxolona, um antídoto contra as overdoses de fentanil ou – por mais terrível que seja – a menor população de dependentes devido à mortalidade prévia. Com tudo, o problema estrutural persiste e se entrelaça com a crise tarifária e o devir político global.
Geopolítica de um problema: a pressão indireta da China e do México
A advertência chinesa sobre o fentanil foi a resposta a um assunto que antes havia sido lançado por Trump em sua campanha presidencial para o primeiro mandato. Naquele ano, ele havia advertido: “Se venderem fentanil aos EUA através do México, imporemos uma tarifa de 25%. Será assim até que parem”. Até 2018, o fentanil era enviado como um fármaco acabado e legal para os Estados Unidos, Canadá e México. No final daquele mesmo ano, após a reunião entre Trump e Xi Jinping, a China modificou o status legal do fentanil e outras substâncias similares, proibindo as exportações.
As empresas chinesas, no entanto, não renunciaram a exportar os precursores, o que reforçou as redes do narcotráfico. Entre 2020 e 2024, diante do aumento disparado das apreensões, EUA e China voltaram a negociar, passando a proibir a exportação de cerca de trinta precursores. Como parte dessa estratégia de cooperação, a China forçou o fechamento de 332 contas empresariais que exportavam de solo chinês, assim como 1.016 lojas que vendiam seus produtos online. Mas o impacto dessas medidas, por mais que estejam proibidas em nível formal, tem sido limitado. A venda de precursores online da China prossegue hoje em grande escala.
A visita de Pelosi em 2022 foi respondida com um ano de interrupção na cooperação, o que se complicou pela questão da minoria muçulmana uigur na província chinesa de Xinjiang. A fim de exercer pressão sobre a China em matéria de direitos humanos, os EUA adotaram uma série de sanções em matéria de exportação tecnológica. A China voltou a responder com a “diplomacia do fentanil” e os EUA tiveram que recuar. A cooperação entre ambos os países foi relançada, embora a China continuasse operando de maneira encoberta.
Nessa ordem de coisas, também é fundamental analisar o papel do México, uma vez que o fentanil nunca chegaria aos EUA sem que os cartéis mexicanos – muito especialmente o de Sinaloa, mas também o de Jalisco Nueva Generación (CJNG) – sintetizem e introduzam ilegalmente o fentanil a partir dos precursores chineses. Para os cartéis, as vantagens do fentanil em relação a outras substâncias são evidentes: mais barato de produzir, mais fácil de esconder e com uma margem de lucro muito maior.
Que regime farmacológico para que futuro
O retorno de Trump à Casa Branca provocou um terremoto político à altura da maneira como ele saiu. A guerra comercial desencadeada por sua política tarifária inaugurou um tempo cujos resultados ainda estão por ser vistos. Se por um lado parece evidente que o neoliberalismo inaugurado pela era Reagan chegou ao fundo do poço, por outro parece se repetir uma lógica global. A insurreição das oligarquias avança à custa de uma degradação sem precedentes da democracia e dos direitos humanos.
Diante deste cenário, a política norte-americana encontra-se fraturada e desarmada. Por mais que as mobilizações nas ruas lideradas pela dupla formada por Sanders e Ocasio-Cortez ofereçam empoderamento cidadão, a questão de fundo é como será articulada uma resposta após o fracasso das antigas variantes progressistas do neoliberalismo (Clinton, Biden, Harris). Seja a social-democracia alemã, o governo espanhol ou os democratas nos EUA, o certo é que esses interregnos entre as declinações conservadoras não souberam atualizar alternativas mais ou menos reformistas de dentro do paradigma neoliberal.
A essa altura, parece evidente que é preciso algo mais: uma leitura que entenda o que está em jogo politicamente no regime farmacológico. Com a crise do paradigma neoliberal, o punitivismo também entrou em crise. EUA e Alemanha, junto a muitos outros países, avançaram timidamente na mudança de paradigma. A regulamentação da cannabis abriu uma via para outras substâncias que servem de contraponto à tragédia do fentanil: psilocibina, MDMA, ketamina, LSD e outros psicodélicos oferecem hoje uma arena onde as contradições no seio do bloco oligárquico se agudizam. A questão é se os serviços de saúde pública se encarregarão ou se a questão será abandonada para o mercado negro.
Assim, a questão do fentanil exige ser enquadrada sob outra perspectiva. Ainda está para ser visto até onde a política reacionária do trumpismo alcança em articular um regime farmacológico alternativo ao que originou e sustentou a crise do fentanil. O “trumpismo ácido” (psicodélicos para as oligarquias, benzodiazepínicos para as classes médias, fentanil para as classes baixas) poderia ser a opção emergente que já habita o bloco reacionário e disputa o futuro com o velho punitivismo.
Mas, enquanto isso, o que o progressismo tem a oferecer a respeito? Onde se encontra, além do “comunismo ácido” de Mark Fisher, uma reflexão que entenda de onde se pode enunciar hoje uma estratégia vencedora no terreno farmacológico que, afinal, não deixa de ser o de nosso próprio regime de consumos e consciência? Recuperar a iniciativa não requer hoje apenas entender e explorar as contradições do bloco oligárquico. Trata-se, acima de tudo, de sermos capazes de oferecer uma compreensão distinta da imposta por quatro décadas de punitivismo neoliberal.
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