O que é um bom livro para um jornalão?

Reflexões a partir da polêmica seleção dos “melhores livros do século XXI” da Folha de S.Paulo. O que ela diz sobre a hegemonia editorial que, hoje, consagrou a vitória do conteúdo sobre a forma – a mesma que diagnosticava a literatura negra como mal escrita?

I

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Diversos debates interessantes e acalorados têm surgido a partir da lista de melhores livros brasileiros do século 21 da Folha de São Paulo. Um dos tópicos mais quentes, ao lado das críticas à hegemonia editorial típica do neoliberalismo progressista, é a mudança na correlação de peso entre forma e conteúdo — com este último se sobrepondo à primeira. Walnice Nogueira Galvão é uma das muitas vozes que reconhecem, em tom de lamento, o predomínio do conteúdo sobre a forma na literatura contemporânea, como se, nesse processo, o literário perdesse algo de sua especificidade.

“Essa hipertrofia do significado, em detrimento do significante, pode estar implicando uma inclinação da literatura mais para o lado do entretenimento e menos para o lado da arte.” A vitória do conteúdo sobre a forma resultaria, assim, numa perda de força estética ou, ao menos, num desequilíbrio que compromete o conjunto da experiência. Esse descompasso, apontado por muita gente séria, está longe de se restringir ao campo da literatura — sendo lamentado por vozes diversas, de críticos renomados a fãs de filmes da Marvel. O que revela, aliás, a amplitude e a ressonância do diagnóstico.

As razões para esse fenômeno são diversas e tem recebido muitos nomes, a depender do contexto: identitarismo, redução do horizonte de expectativas, ruptura definitiva com os marcos do modernismo, capitalismo autofágico, realismo capitalista. Alguns, inclusive, saíram de moda — como pós-modernismo. Em comum a todos eles, a compreensão de que a dimensão comunitária da vida sofre um profundo processo de regressão em contexto neoliberal, o que incide de forma radical sobre a linguagem, estreitando o horizonte da literatura enquanto forma específica.

II

Enquanto o mundo explode, o desejo obsceno de pureza. Nos relacionamentos, a busca é por clareza contratual: “quais são suas intenções nesse app?” Investimento de baixo risco como substituto infértil do amor. Na arte, o desejo de coincidência entre autor e obra — eliminando toda e qualquer distância entre sujeito e linguagem. Escrever como quem não tem dinheiro para pagar um bom advogado de defesa. A busca por uma linguagem que não nos traia: luminosamente estéril.

Das coisas que a linguagem não pode fazer quando o mundo se acaba: o desejo por uma linguagem em que tudo esteja às claras não deixa de ser uma espécie verborrágica de silêncio.

III

Tudo isso faz sentido. Mas eu gostaria de tomar um atalho, pois acredito ser possível aprender algo com a história da recepção da literatura negra no Brasil — desde sempre acusada de ser mal escrita ou de comportar algum tipo de insuficiência. Para nossa tradição crítica, a literatura negra sempre deixou algo a desejar em termos de equilíbrio entre forma e conteúdo, com a balança pendendo para o segundo polo da equação. A história da literatura negra é contada como a história de sua insuficiência, a história da própria falta inscrita na linguagem.

E quando eu digo sempre, quero dizer SEMPRE. Sílvio Romero acusava Machado de Assis de ser um escritor pouco vigoroso por ser mulato e epilético. José Veríssimo dizia que Cruz e Souza balbuciava palavras sem sentido, como um preto deslumbrado com a civilização. Luís Gama era visto como um poeta sem destreza poética — assim como Solano Trindade e Sérgio Vaz. Lima Barreto, até hoje, é acusado de escrever mal. Carolina de Jesus, nem se fala. E até mesmo Conceição Evaristo já foi apontada como uma escritora que foca mais no conteúdo do que na forma.

Curioso paradoxo: sendo a literatura dos meus irmãos e irmãs tão simples e pobre, por que o que ela demanda em humana pureza jamais se alcança?

IV

Façamos uma pausa, para desfazer qualquer mal-entendido: só digo o que digo — nada além. O que não digo: que esse retorno a certo tipo de linguagem representativa não seja, de fato, uma questão fundamental do nosso tempo. Pra ser o mais direto possível: não estou dizendo que defender a verdade da forma literária faz do leitor um branco racista. Inclusive, muitos intelectuais e artistas negros — como Toni Morrison, James Baldwin e, entre nós, Allan da Rosa — já o reconheceram. O debate é quente, e não é de hoje. E é justamente por ser decisivo que as coisas são um bocado mais complexas.

Vês, ignóbil leitor, os tediosos volteios que preciso dar por conta desse maldito desejo de prever tudo, de dizer tudo, sem falhas? Não existe espaço para induções, não ditos, silêncios ou sutilezas: eu preciso dizer, com todas as letras, que tu não és racista, pois, caso contrário, melindrado, não me lerás. É essa desconfiada nostalgia por um Grande Outro desaparecido que encolhe os limites da linguagem. Observem e contemplem: desconfio das nuances da linguagem por desconfiar de ti, e não dela, obtuso leitor. Da última vez que confiei em ti, recortaste trechos da minha fala para dizer que eu estava querendo lacrar na internet. Os escritores não confiam na linguagem porque vocês judicializaram a porra toda. Que chances têm as metáforas nesse mundo?

V

“O império do conteúdo sobre a forma produz uma arte descompensada, como um triste sintoma de nosso tempo.” Decerto. Ficamos combinados assim. Mas a esse dado se sobrepõem outros, como certa negatividade elementar no trato negro com a estética, que tende a ser lida como falta ou insuficiência por um olhar moldado em tradições críticas mais acadêmicas. Um trato com a linguagem que é de outra ordem — de quem almeja fazer outras coisas com a língua. Espancá-la e desrespeitá-la, por exemplo. Maltratar a língua como quem se utiliza de um trapo, pois não está nela o que se diz. Afinal, a quem interessa sua civilidade? Guimarães Rosa a ama. Machado de Assis, ao contrário, faz dela sua escrava branca.

Uma linguagem que se dá desde a falta, desde a ausência, marcada pela urgência dos que não desejam civilizar-se. “A violência colonial tornou estéril qualquer tipo de comunicação e discurso baseado no reconhecimento recíproco”1. Falar desde a falta implica uma relação completamente distinta entre forma e conteúdo — que será inevitavelmente lida como falta, caso as lentes não sejam alteradas. Não se trata de fazer boa ou má literatura, mas de algo muito maior que isso: aquele mínimo outro que Marcos Queiróz identifica na “poética da crueza” dos revolucionários haitianos. Escrever com sangue nos olhos, para evitar o sangue nas mãos — como só os mortos em vida são capazes de realizar plenamente.

Durante muito tempo, Carolina Maria de Jesus foi esculhambada como uma não escritora. Os interditos foram diversos: não publicaram suas crônicas e poemas (diagnóstico: mais conteúdo do que forma), publicaram seu diário não como arte, mas como relato exótico (diagnóstico: mais conteúdo do que forma), negaram ao diário a condição de literatura (diagnóstico: mais conteúdo do que forma) e, após o sucesso, disseram que era obra de Audálio Dantas, jornalista branco e homem. Ainda hoje Carolina é vista com desconfiança.

Ironicamente, os três primeiros livros da lista da Folha seguem em alguma medida o paradigma de Quarto de Despejo. Ao escrever para além (ou aquém) do literário, sua obra se consolidou como uma das mais importantes do século.

VI

Achille Mbembe deu a letra, mas vocês não quiseram ouvir. O neoliberalismo reduz todos os corpos à condição de matéria descartável para o capital. Bem-vindes: somos agora todos negros, ainda que alguns mais negros do que outros. O devir negro do mundo é também um ser de linguagem. Quem diria que todos vocês, que se julgavam a salvo, teriam que aprender a escrever desde a falta?

E não é que nós, os fodidos, saímos na frente? Três dos nossos no topo da lista. Por quê? Ora, essa é fácil: sabemos algo que vocês não sabem. “Seu filho quer ser preto, ah, que ironia.” Mas mesmo que ele não quisesse, não teria pra onde correr. Estamos todos fodidos. Agora, aguenta.

VII

Se a arte está mais certa do que sua crítica — ou seja, se não se trata de preguiça generalizada ou de uma nova “regressão da audição”, mas de um dado material objetivo a ser transfigurado esteticamente — talvez a pergunta fundamental seja: por que as formas de recusa radical, ou de maior densidade formal, se tornaram sistematicamente incapazes de dar conta da experiência de dissolução do mundo contemporâneo? Ora veja: não é que os escritores desaprenderam a escrever, ou estejam sem tempo para experimentar — o que, convenhamos, não deixa de ser verdade. São, na verdade, os antigos parâmetros literários — ainda modernos — que perderam seu prazo de validade na alvorada do século

XXI

Sei que podes apresentar-me uma infinidade de exemplos contrários, diligente leitor, e eu provavelmente concordaria com todos eles. Mesmo na famigerada lista da Folha encontramos diversos exemplares da boa e velha densidade formal. Mas isso não deixa de ser uma forma de fugir do problema. Precisamos levar a sério a bola cantada por Roberto Schwarz no final dos anos 1990, quando afirmou que os pressupostos da crítica dialética talvez estivessem desaparecendo — pressupostos cujo princípio era a coincidência entre radicalidade estética e verdade histórica.

Nesse admirável mundo novo, celebra-se a força artística e crítica de Torto Arado, enquanto MC Poze é preso e o Estado cria uma lei anti-Oruam. Nesses casos, o poder subversivo parece ter mudado de lado, pagando-nos com um piparote, sem lágrimas ou adeus.

VIII

Mas o que significa falar em potência estética nesse caso? Certamente não é aquela que se aprende nas discussões acadêmicas. Tampouco é aquela que reconhecemos como matriz dos nossos esforços civilizatórios. Os progressistas adoram um pobre como Édouard Louis: culto, refinado, de esquerda, falante de francês e gato. A potência do funk, por outro lado, é formada por uma legião de irrecuperáveis que abraçam o capitalismo enquanto ecoam os discursos mais fundamentalistas de seus pastores, espalhando aos quatro ventos que Papa Francisco era comunista.

A potência do funk não é uma recusa do capitalismo, nem uma adesão irrestrita a parâmetros civilizatórios ou ideais iluministas de alta civilização. Ninguém vai ouvir Beethoven quando o funk vencer — e nem sequer conseguimos mais fingir que alguém ainda se importa com isso. É o fim da aventura “humana” na Terra. Mas também não se trata de uma potência que os conservadores abraçam. Ao contrário: eles soltam seus cães — Senado, PM, Alexandre de Moraes e Geraldo Alckmin. A diferença com a esquerda, nesse caso, é menos de princípio do que de tom. A direita quer prender, matar, torturar. A esquerda, domesticar: currículoacadêmico, circuito Sesc, feat com Caetano Veloso.

Eu mesmo, já domesticado, não sou lá muito fã de Trap. Nenhum artista do gênero me comove esteticamente, e consigo reunir uma boa quantidade de argumentos para justificar minha recusa em termos de valor. Mas a música de Oruam me incomoda muito menos do que o fato de que, nesse caso, meu juízo estético coincide com o da Polícia Militar, cuja função social é matar a mim e ao menor. Portanto, ainda que eu não goste e critique seus limites, não farei disso motivo de orgulho, como se meu acesso limitado, restrito e ilusório ao mundo da elite cultural me colocasse acima das regras do capitalismo suicidário. Não se iludam: entre salvar Oruam ou Drummond, eu não hesitaria duas vezes. Assim como sei quem vocês atirariam aos cães na primeira oportunidade.

IX

Tem como escapar? Tem como escapar. Davi Kopenawa escreve como a floresta nos odeia. Como a floresta odeia aos livros impressos no cadáver da floresta. Como a floresta odeia aquilo que em nós desaprendeu a sonhar. A radicalidade de uma linguagem que não é mais humana.

É porque a linguagem da história nos foi surrupiada que inventamos o Preto Velho enquanto informante etnográfico além do branco tempo. Para entendê-lo, contudo, tem que saber incorporar. Saberão os intelectuais dançar?

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