Saúde de imigrantes: como derrubar fronteiras no SUS
Embora universal, o atendimento de estrangeiros em vulnerabilidade enfrenta entraves, de questões linguísticas a preconceitos culturais. Em São Paulo, um pequeno centro contribui para diminuir as barreiras. Qual a sua importância e por que precisa ser muito ampliado
Publicado 05/06/2025 às 11:37 - Atualizado 05/06/2025 às 15:11

Imigrações e emigrações são historicamente uma realidade global. No século 21, elas são fortemente conectadas com guerras e conflitos, crises políticas, econômicas e pobreza extrema, e também as catástrofes climáticas. Movimentam também tensões sociais, expandidas pela xenofobia que ajuda a eleger políticos de extrema-direita como Donald Trump, nos EUA. Em meio a tantas dificuldades, como fica a saúde dos imigrantes?
Há situações, como no Brasil, em que o sistema de saúde, por seu caráter de universalidade, assegura os cuidados gratuitos para qualquer pessoa em território nacional – inclusive os imigrantes. Isso também significa(ria) que os imigrantes enfrentam os mesmos desafios nacionais — superlotação, longas filas de espera, falta de médicos especialistas, escassez de medicamentos e precariedade do serviço em pontos específicos do país.

Contudo, a questão da saúde para os imigrantes é, na realidade, ainda mais complicada. Eles lidam com dificuldades adicionais ligadas à condição de serem os “estrangeiros”, como desconhecimento completo sobre o modo de funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) devido à falta de orientação, má formação dos servidores públicos sobre os direitos de migrantes, exclusão dos serviços de saúde preventiva, dificuldade com o idioma e insensibilidade por parte dos profissionais de saúde quanto a questões culturais e religiosas que não as brasileiras. Sobre a dimensão psicológica, frente a problemas tão elementares — e por ora vistos como “mais urgentes” –, a sua saúde mental é absolutamente secundarizada e minimizada.
Embora essas ilustrações sejam reais e recorrentes, elas tampouco esgotam possibilidades e alternativas. Apontando, justamente, a carência de políticas e programas voltados ao imigrante, experiências locais como o Centro de Referência e Atendimento Para Imigrantes (CRAI) em São Paulo surgem como uma luz no fim do túnel.
O CRAI, nomeado de Oriana Jara — importante imigrante chilena que dedicou sua vida à militância pela pauta do direito ao migrante –, é um equipamento público ligado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania que oferece apoio especializado aos imigrantes residentes em São Paulo. Criado em 2014 pela Prefeitura, na gestão de Fernando Haddad (PT), o Centro oferece, dentre outros serviços, o acesso a direitos sociais — como a saúde.
Em entrevista ao Outra Saúde, uma funcionária do CRAI, que chamaremos ficcionalmente de Joana, para preservar seu anonimato, destaca dois pontos já mencionados e que, muitas vezes, andam juntos: o desconhecimento completo sobre o modo de funcionamento do SUS por parte dos imigrantes e sua exclusão de alguns serviços, sobretudo referentes à atenção primária e saúde preventiva.
De acordo com Joana, “a forma como cada população vê a saúde é diferente, então, para alguns lugares, a saúde não é preventiva e você não precisa ter um acompanhamento sem estar doente. Isso é um choque para muitos imigrantes que chegam ao Brasil, que tem uma visão de saúde que é preventiva. A pessoa tem que começar tudo de novo, e é um pouco angustiante, eu imagino, ter que começar um diagnóstico do zero”.
Além das barreiras culturais — inclusive na forma de ver saúde –, há, também, barreiras linguísticas. Segundo a funcionária do Centro, há relatos de imigrantes que, sem saber falar português e desesperados por atendimento, ficam parados na frente das UBSs, esperando alguém entrar em contato. É necessário medidas de acessibilidade nos serviços de saúde pública que permitam a comunicação entre os imigrantes e os profissionais de saúde.
Tanto a questão comunicacional quanto a do preconceito dizem respeito ao mau preparo dos servidores públicos com relação às populações imigrantes. Joana lembrou que, muitas vezes, os profissionais de saúde não querem atender a um certo grupo porque há estigmas de que “em certo lugar a saúde é mesmo negligenciada” ou porque “de onde vieram eles são tratados assim”. Esses relatos são frequentemente trazidos não só pelos imigrantes, mas também pelas próprias equipes técnicas dos serviços de saúde. Entende-se, portanto, que o problema de acesso à saúde pelos imigrantes passa, necessariamente, pela promoção de acesso à população imigrante pelo próprio sistema de saúde.
Há no espaço físico do CRAI, visitado pelo Outra Saúde, a existência de uma sala de psicologia. Perguntada, Joana diz que o setor funciona tanto por agendamento como com portas abertas. Partindo justamente do entendimento de que a saúde mental dos imigrantes é deixada de lado até por eles próprios, devido à quantidade de assuntos pendentes de resolução, a algumas pessoas que chegam procurando um serviço de regularização migratória, por exemplo, é oferecido o serviço de psicologia.
Sobre isso, ela explica: “Temos voluntários que atuam na recepção e, percebendo que precisam de ajuda, eles sugerem o serviço. Assim, aos poucos nossa psicóloga do Centro e a equipe de voluntários da Universidade São Judas vão incluindo esse imigrante nos agendamentos”. Em casos mais graves, o CRAI encaminha para os serviços de saúde correspondentes — como o CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial), por exemplo.
Algo que chamou atenção nas falas de Joana foi a constante queixa da existência de somente um Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes em São Paulo. Essa problemática atravessa a garantia do acesso dos imigrantes aos serviços públicos de saúde. Isso tanto porque, para a maioria deles, a mediação do CRAI entre eles e o conjunto dos serviços públicos faz toda a diferença, quanto porque os motivos que os impedem de chegar ao CRAI — como mobilidade urbana e falta de recursos financeiros — são, também, questões de saúde pública.
Além de haver somente um CRAI para uma cidade que abriga 360 mil imigrantes, há a questão do financiamento. A verba é exígua quando comparada à demanda por atendimentos. Com o grande corte orçamentário na OMS, devido à saída dos EUA da organização mundial, várias outras organizações não-públicas, financiadas pela Opas/OMS, já fecharam as portas, aumentando exponencialmente uma demanda que já era alta.
Nesse contexto, Joana ressalta a importância da articulação entre o CRAI e mecanismos de participação popular, como o Conselho Municipal de Imigrantes, para a formulação de políticas públicas que assegurem não só o acesso, mas também a garantia do uso permanente de serviços públicos, como os de saúde, por parte das populações imigrantes de São Paulo.
O tema da saúde dos imigrantes, em suma, transcende o tema do tratamento versus prevenção; ele diz respeito a um leque de situações que vão desde serviços de cuidado até a promoção de acessibilidade linguística, cultural e material. Se, como afirmam agências globais de saúde — como a Opas e a OMS –, as migrações constituem um dos determinantes da saúde global, devemos agir em relação a este desafio, sobretudo em um contexto em que caminhamos para um número cada vez maior de populações migrantes mundo afora. Para isso, discutir a saúde pública a partir desse recorte, bem como difundir globalmente experiências como o CRAI, é não só essencial, como urgente.
Confira a entrevista completa com Joana, funcionária do CRAI.
Quais são as principais dificuldades no atendimento à saúde para os imigrantes, segundo sua observação?
Eu acho que em saúde é importante trazer alguns pontos. Um primeiro ponto é que a forma como cada população vê a saúde é diferente. O Brasil tem uma visão da saúde que é preventiva. Então, a gente tem toda uma construção do SUS a partir disso. Essa é a nossa forma de ver a saúde, que foi construída no decorrer do tempo. Mas nem todo lugar vê a saúde da mesma forma.
E aí eu trago algumas experiências pessoais, de outros lugares que eu trabalhei, como centros de acolhida por exemplo. Lá tive um contato diário com as famílias, e fui aprendendo um pouquinho de como outros países veem a saúde. Então, para outros lugares a saúde não é preventiva. Você remedia. Se você está doente, aí sim você procura um médico. Você não vai ser acompanhado na sua saúde no decorrer do tempo mesmo sem estar doente.
Isso já é um choque para muitas pessoas quando chegam no Brasil. Não é tão tranquilo. A pessoa já tem, por exemplo, um diagnóstico X no país dela; ela chega no Brasil e tem que começar lá do clínico geral de novo. Vamos supor que ela já tem uma receita de um medicamento no país dela. Chegando aqui, o médico não vai poder aceitar uma receita de um outro país. É um pouco angustiante, eu imagino, para a população que vem de outro país, entender que vai ter que começar um diagnóstico do zero, que vai ter que começar ali uma medicação diferente do país de origem. E como explicar tudo isso se você às vezes não fala uma língua nem parecida com o português? É uma grande dificuldade.
Um outro ponto que tem que levar em consideração também são as questões de gênero. Nem sempre é confortável para uma mulher de determinada nacionalidade estar na presença de um médico homem, sozinha com ele na sala. Isso também afeta o atendimento.
Outro ponto a gente já recebeu informações de pessoas atendidas que falam: “Às vezes eu fico parada ali na frente do hospital, da UBS, e ninguém vem falar comigo” ou “Eu não sei mexer nos tablets lá para tirar a senha”.
A gente tem algumas experiências interessantes. Por exemplo, a UBS Humaitá, que é aqui do lado do CRAI. Eles têm, no tablet de tiragem de senha, várias línguas como opções. Isso são articulações que a gente [CRAI] vai fazendo com a região quando há um movimento daquele órgão público de entender que a sua região é composta por população migrante.
Então, a língua é uma barreira, a forma de ver a saúde é uma barreira, e muitas vezes há preconceitos no sentido de “Ah, mas eu ouvi falar que nesse país aqui os filhos são tratados de tal forma” ou “Ah, mas isso aqui é cultural”. Tem coisas que não são culturais, tem coisas que são inclusive violências. Nem sempre tem-se um cuidado de fazer essa diferenciação. E essas são demandas que são trazidas tanto pelas equipes técnicas dos lugares que atuam com saúde, mas também pela população migrante.

Nisso, o CRAI vai trabalhando para criar momentos de sensibilização. Por exemplo, o nosso setor de educação faz formações com agentes de saúde. E aí, não adianta fazer formações que atinjam somente os profissionais que trabalham na recepção. É necessário você seguir até lá em cima: passando pela diretoria, pelos médicos, pelas pessoas da limpeza. Só que tanto na assistência quanto na saúde a gente tem uma rotatividade muito grande de pessoas.
E falando sobre o CRAI, a gente tem uma educadora para São Paulo inteira. Então, é difícil você conseguir chegar com formações que vão atingir todo mundo. Mas é um trabalho de formiguinha. Existem cartilhas também. Então, nos últimos anos a gente teve o lançamento de uma cartilha que teve como enfoque a população haitiana. Uma cartilha sobre mulheres gestantes haitianas que dizia sobre o que é pré-natal no Brasil, como ter acesso a ele.
Muitas coisas vão sendo criadas no sentido de promover a informação, mas as reclamações continuam acontecendo. Então reclamações de violências que acontecem nesses espaços existem; mas existem também reclamações por parte das próprias equipes técnicas de não terem informação para lidar com algumas demandas.
Quais os desafios mais latentes enfrentados pela equipe do CRAI hoje, principalmente pensando na relação com o município? E quais os avanços?
Eu acho que um dos principais desafios é a luta diária de fazer com que o que está no papel seja real. Conscientizar outros equipamentos públicos sobre o que é o CRAI e o que são os direitos da população migrante e refugiada no Brasil. E, através desse processo de conscientização, que essa população consiga ter a sua autonomia promovida para que possa, ela mesma, falar sobre os seus direitos.
Mas acho que o maior é a gente poder expandir o CRAI. O fato de só existir um CRAI para a cidade de São Paulo inteira é atualmente o nosso maior desafio. Se a pessoa quiser agendar para fazer a preparação ou a documentação aqui no CRAI para depois ir na Polícia Federal, a nossa agenda está para daqui a um mês. Porque a gente não tem condições mais de atender a quantidade de demanda que a gente tem.
E quando a gente considera também alguns cortes que a gente teve de financiamentos internacionais, sobretudo nos Estados Unidos, a gente percebeu que muitas organizações que atuam com a pauta migratória em São Paulo estão diminuindo seus atendimentos ou fechando. Então a demanda do CRAI aumentou do começo desse ano para cá. E a gente entende o incômodo porque para a pessoa, a demanda dela é urgente. O fato de a gente ser um equipamento para a cidade de São Paulo inteira e mesmo que tenha um CRAI móvel, isso não é suficiente.
E aí, entre outras questões, a gente tem, por exemplo, dificuldades com tecnologia. Os nossos computadores nem sempre são os melhores. A gente tem ausência de computadores às vezes. A verba é pequena em relação a uma cidade inteira, a todas as políticas existentes. E ela não é suficiente para o tamanho da demanda que a gente tem hoje. Porque os planos de trabalho são pensados para anos à frente.
Mas passam os anos, as demandas mudam e às vezes o plano de trabalho fica obsoleto. A gente vai fazendo adaptações conforme necessário. Mas nem tudo é perfeito. Às vezes faltam salas aqui para a gente atender. Por exemplo, hoje a sala de reunião está sendo usada para atendimentos também. Então. falta equipamento, falta espaço, faltam pessoas para conseguir vencer a demanda por ter só um CRAI.

Em relação aos avanços, um dos principais foi o aumento de setores no Centro. A equipe cresceu bastante desde 2014. Hoje, ter 30 pessoas é um avanço muito grande. A existência do CRAI Móvel também foi uma coisa positiva, apesar de gerar risco para os trabalhadores também. Também houve avanços de organização interna. As coisas antes funcionavam só “portas abertas”; hoje em dia conseguimos nos organizar com agendamentos também, com setores diferenciados e parcerias com organizações civis e universidades.
Gostaria que você falasse um pouco sobre como funciona o setor de psicologia e saúde mental aqui no CRAI.
Às vezes os próprios imigrantes chegam com essa demanda e, às vezes, elas não chegam, mas percebemos, ao longo do atendimento, que essa intervenção pode ser importante. Sugerimos ou no momento do atendimento ou na própria recepção. A gente tem voluntários também que atuam ali e o voluntário pode perceber e sugerir.
A partir daí, colocamos a pessoa na lista de interesse da psicologia. Nossa psicóloga, então, vai aos poucos incluindo essa pessoa na agenda. Alguns atendimentos são feitos por ela mesmo. Outros são feitos pelos nossos parceiros — os estagiários da Universidade São Judas, por exemplo. Então, pode ser que no mesmo dia a gente tenha vários atendimentos acontecendo.
A pessoa é acompanhada por um determinado período de tempo e, às vezes, ela precisa ser encaminhada para o órgão público de saúde responsável. Às vezes vai ser a UBS, às vezes vai ser o CAPS, dependendo da complexidade.
Antes você comentou sobre a carência de outros Centros de Referência e Atendimento para Imigrantes. Nesse contexto, qual o papel de vocês, o único CRAI existente, na formulação de políticas públicas para essa população e na garantia de seus direitos?
Existir uma política municipal em São Paulo é um grande avanço. Eu acho que, e eu sempre falo isso, quando escrito lá na Constituição, quando escrito na Lei Federal, é difícil de descer para o guichê da escola. Por isso, ter uma política municipal, uma lei municipal, é uma forma de a gente trazer mais para perto da realidade da comunidade que aquilo é direito.
Porque dificilmente uma pessoa vai abrir uma legislação para ver o que é seu direito ou não. Então, eu acho que o papel do CRAI nesse sentido é estar presente nos espaços. É promover a defesa desses espaços e fazer com que a legislação municipal funcione. Garantir que ela seja intersetorial — para a saúde, para a educação, para a saúde, para a assistência. Não deveria ser nosso papel, mas muitas vezes agimos como um órgão fiscalizador.
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