Ucrânia: a nova geopolítica da guerra
Como as negociações em Istambul abriram pequena brecha para a paz. A ambiguidade de Trump e a estratégia de Putin. O jogo da Turquia e suas ambições no Oriente Médio. A margem de manobra da Ucrânia encolheu – mas ainda existe
Publicado 26/05/2025 às 20:03 - Atualizado 26/05/2025 às 20:06

Por MK Bhadrakumar | Tradução: Antonio Martins
O 16 de maio ficará marcado como um ponto de virada, para o bem ou para o mal, no conflito da Ucrânia. O principal é que as “negociações de paz” entre Rússia e Ucrânia foram retomadas em Istambul e, espera-se, avançarão os termos do acordo preliminar negociado em março de 2022. Mas é preciso fazer ressalvas. O fato de o presidente turco Recep Erdogan ter levado três horas para persuadir o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky a autorizar as negociações diz muito.
Por outro lado, Zelensky mostrou flexibilidade notável, ao violar seu próprio decreto presidencial que proibia funcionários ucranianos – exceto ele próprio – de manter qualquer negociação desse tipo com autoridades russas. A Turquia demonstrou mais uma vez que continua sendo um influenciador significativo no conflito ucraniano.
O resultado foi um espetáculo extraordinário. Relatos mencionam que a delegação russa teve não uma, mas três reuniões — primeiro com uma equipe turco-americana, depois com um grupo turco-americano-ucraniano, culminando em uma conversa exclusiva com a equipe ucraniana.
As negociações “bilaterais” russo-ucranianas supostamente abordaram tópicos como opções de cessar-fogo no conflito ucraniano, uma grande troca de prisioneiros, um possível encontro entre Zelensky e o presidente russo Vladimir Putin, um acordo de princípio para realizar uma reunião de acompanhamento, entre outros.
A mídia ucraniana informou que o lado russo repetiu suas exigências para que as forças de Kiev desocupem as partes restantes das quatro regiões do leste e do sul da Ucrânia anexadas por Moscou. A Ucrânia, é claro, rejeitou a demanda. De fato, esses pontos de discussão na reunião de Istambul teriam sido bastante para um encontro que durou apenas uma hora e quarenta minutos.
Enquanto isso, a Turquia voltou a se posicionar como parte interessada. A mediação de paz na Ucrânia oferece-lhe uma oportunidade para trabalhar em estreita colaboração com os EUA, o que pode ter desdobramentos favoráveis para os dois principais conflitos que a pressionaram nos últimos anos — a Síria e a questão curda. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão tomou uma decisão histórica em 12 de maio, abandonando a luta armada e se dissolvendo.
A Turquia promoveu a normalização das relações entre os EUA e o governo islamista em Damasco. O encontro de Trump com o presidente sírio Ahmed al-Sharaa em Riad, em 14/6, juntamente com o fim das sanções de Washington contra a Síria, sacode a geopolítica do Oriente Médio e alinha Ancara e Washington.
Vale notar que tudo isso ocorre no contexto de uma guinada “ocidentalista” na política externa turca no último ano, após a reeleição de Erdogan. Tradicionalmente, as relações entre Trump e Erdogan têm sido amistosas. Basta dizer que Trump pode contar com a cooperação de Erdogan na mediação de paz na Ucrânia, onde a ótima relação do líder turco com Zelensky é uma vantagem, como ficou evidente em Ancara.
Erdogan apoiou Zelensky em bons e maus momentos. Os drones turcos de alta tecnologia fornecidos à Ucrânia, que serão fabricados localmente, aumentarão significativamente a capacidade militar de Kiev. A Turquia, herdeira do legado otomano, é um segundo lar para a comunidade tártara. O tártaro é uma língua oguz derivada do turco otomano. O ministro da Defesa ucraniano, um aliado próximo de Zelensky, é um tártaro étnico. E a Turquia recusou-se a reconhecer a Crimeia como parte da Rússia.
Moscou entende tudo isso. Putin se apressou em deixar para trás as tensões nas relações russo-turcas após a mudança de regime na Síria em dezembro passado e, em 11/5, buscou Erdogan para discutir as negociações diretas entre Rússia e Ucrânia em Istambul. O comunicado do Kremlin afirmou que Erdogan “expressou total apoio à proposta da Rússia e enfatizou sua disposição em sediar as conversas em Istambul. O lado turco oferecerá toda assistência possível na organização e realização de negociações voltadas para a paz sustentável (…) Os líderes também manifestaram interesse mútuo em expandir os laços bilaterais em comércio e investimentos, especialmente na implementação de projetos estratégicos conjuntos em energia.”
Erdogan é um interlocutor difícil, mas Putin tem tido sucesso em manter o relacionamento estável e (em grande parte) previsível. O fator turco pode ser decisivo se, em algum momento, Zelensky deixar de ser refém do CoW4 (os quatro mosqueteiros europeus da chamada “coalition of the willing”, ou “coalizão dos dispostos” — Reino Unido, França, Alemanha e Polônia). Nesse caso, pode-se contar com Erdogan para assumir um papel ativista.
No cômputo geral, a Rússia obteve uma vitória diplomática, já que sua iniciativa de “negociações diretas com a Ucrânia sem pré-condições” foi aceita por Trump. O formato das negociações implicou a retomada das conversas russo-ucranianas realizadas em Istambul, em 2022. Putin manobrou astutamente para desarticular o plano do grupo CoW4, que tentou afastar Trump e se tornar parte dos planos de guerra na Ucrânia.O CoW4 sentiu-se encorajado recentemente pela percepção de que Trump poderia impor sanções draconianas à Rússia, se esta não demonstrasse sinceridade. Mas, até agora, Trump mantém diálogo com Putin. No início do mês, afirmou que um avanço no conflito ucraniano só seria possível por meio de uma cúpula com Putin. As negociações diretas entre russos e ucranianos na Turquia representam um revés para o CoW4.
O líder da delegação russa e assessor presidencial Vladimir Medinsky (que também comandou as negociações em Istambul em março de 2022) disse à mídia que Moscou está “satisfeita” com os resultados das conversas e pronta para “retomar contatos” com Kiev.
Dito isso, Moscou não baixará a guarda. Putin realizou uma reunião em 15/5 com os membros permanentes de seu Conselho de Segurança, o principal órgão decisório da Rússia, para discutir as negociações em Istambul. O comunicado do Kremlin afirmou que Putin “definiu tarefas e traçou a posição negociadora” da delegação russa em Istambul.
Por outro lado, o Kremlin afirmou ao mesmo tempo que, independentemente das negociações em Istambul, as operações militares da Rússia na Ucrânia continuarão. Com timing impecável, Putin escolheu o mesmo 15/5 para anunciar a nomeação do coronel-general Andrey Mordvichev (apelidado de “General Avanço”) como comandante das forças terrestres russas.
O general Mordvichev, que está sob sanções ocidentais, tem uma reputação de “duro”, como comandante do 8º Exército de Guardas do Distrito Militar Sul da Rússia. Este corpo esteve profundamente envolvido no cerco devastador a Mariupol em 2022 e na Batalha de Avdiivka em 2023-2024, pontos de virada no conflito ucraniano. A nomeação ocorre em meio a relatos de que a Rússia prepara uma grande ofensiva na Ucrânia. Mais de 650 mil soldados russos estão mobilizados atualmente no país.
Evidentemente, a ambiguidade estratégica no cerne das intenções russas na Ucrânia persiste. Putin está determinado a manter as coisas assim e extrair vantagens nos próximos meses (ou anos). A nomeação do general Mordvichev, que suplantou vários generais seniores, será notada nas capitais da OTAN.
Em uma entrevista em 2023, sobre o cronograma das operações russas na Ucrânia, Mordvichev afirmou sem rodeios que ainda havia “muito tempo”. E acrescentou: “Se estivermos falando da Europa Oriental, o que teremos de fazer, claro, então levará mais tempo.”
Zelensky também está seguindo uma estratégia dupla. O ministro das Finanças da Ucrânia, Sergeii Marchenko, disse a um painel de alto nível, no encontro anual do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento em 14 de março, em Londres: “Para se preparar para a paz, é preciso se preparar para a guerra. Temos que planejar. Pode me chamar de cínico, mas na verdade sou apenas um ministro da Fazenda.”
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