População de rua: o reencantamento pela arte
Histórias de sem-teto que encontraram na produção artística uma forma de retomar laços sociais e cultivar a autoestima. Gestam-se solidariedade e outros sentidos de vida, relatam. Em SP, oficinas atendem até 200 pessoas por dia. Não faltam talentos, mas políticas públicas
Publicado 26/05/2025 às 18:33 - Atualizado 26/05/2025 às 18:41

Por Adriana Amâncio e Mariana Rosetti, especial para o Nonada
Dos 42 anos de vida, por mais de 30 Gleice Cassiane de Castro — mulher negra e artista — viveu e sobreviveu nas ruas de São Paulo. Desde criança, encontrou na criação uma forma de permanência. Canta, escreve a própria biografia, fez cursos de teatro, atua e pinta. A expressão artística se tornou seu modo mais potente de existir — e, mais do que isso, um fio condutor para seguir em frente.
Gleice faz parte da parcela pouco visível de criadores em situação de acolhimento. Para alguns, a arte surgiu antes da rua. Para outras, foi descoberta no meio do abandono. Independentemente do momento do encontro, todos os que conversaram com a reportagem foram taxativos: depois da arte, veio o sonho, a cura, a liberdade, a identidade, a reconstrução. Não há como voltar. Criar não é só expressão — é o que os manteve vivos.
Carla Regina Rilva, terapeuta Ocupacional, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Paulo e professora adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos, trabalha há 10 anos com pessoas em situação de rua e afirma que, mesmo com trajetórias muito diferentes, “[essas pessoas] têm em comum uma série de processos de desumanização”.
“Seja a partir das rupturas, das violências, dos descasos, das perdas”, fato é que “os convites para se relacionarem a partir das artes potencializam essas pessoas. Elas passam a se perceber, resgatam emoções, elaboram reflexões — e, o mais importante, têm seus saberes, fazeres e sentires valorizados nas experiências que constroem”, explica Carla.

Quando a arte ocupa o centro
Gleice conversa com a reportagem do Nonada no prédio do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na Avenida Paulista, onde teve, pela primeira vez, uma de suas obras exibida em uma exposição pública, chamada “A Arte do Povo da Rua”, promovido pela Defensoria Pública de São Paulo, por meio de sua escola (EDEPE), pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo próprio TRF-3. Reuniu trabalhos de pessoas em situação de rua atendidas por serviços socioassistenciais e de saúde da cidade.
“Agora eu tô mais focada na música e na pintura, porque no quadro dá para eu expressar melhor o que tô sentindo”, diz, radiante, enquanto mostra a obra recente, composta por uma explosão de azul, amarelo e laranja, que misturam e originam novas cores. Na pintura abstrata, enxerga uma borboleta: “símbolo da liberdade, transformação. Ela sai do casulo e voa”.
Ela conta que entende bem esse sentimento. Foi o que fez em dois momentos da sua vida. O primeiro, aos 7 anos, ao fugir de casa pela primeira vez, vislumbrando um destino melhor. Foi abandonada no dia do seu aniversário de cinco anos. As pessoas que a acolheram não poderiam ser chamadas de família: sofria abusos do marido da mãe adotiva, e ela, por sua vez, desacreditava as denúncias de Gleice.
Procurando liberdade, percorreu as ruas da zona leste e central de São Paulo, onde viu e viveu de tudo — desde a fome, até tentativas de violência física. Conheceu o silêncio de quem finge não ver, “já vi gente do meu lado morrer de pneumonia, ser queimada viva. Já tentaram fazer isso comigo também”, lembra. Tudo isso era refletido em suas obras.
No dia em que achou que não aguentaria mais, um homem a impediu de pular do vão livre do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). Apaixonou-se por ele e sentiu a dor de ser enxergada, criar esperanças, e ver tudo ruir em um relacionamento abusivo que durou 21 anos. Em 2023, precisou sair do casulo e voar — rumo à liberdade — mais uma vez.
Foi também através da arte que Gleice encontrou o fio que a manteve viva. “Se eu não tinha dinheiro, eu sempre dava um jeitinho de pedir para alguém […] tinta, pincel”, e assim nasciam suas obras. “Eu já fiz curso de teatro, curso de fotografia. Ali no [bairro] Patriarca, no Circo Escola, foi onde eu me encontrei”, se referindo à experiência teatral. “Às vezes eu não tinha nada, mas a partir do momento que você tem amor no seu coração, você é a pessoa mais rica do mundo”, defende.
Para a professora Carla, o problema é estrutural e exige revisão profunda: “uma sociedade que produz níveis tão profundos de exclusão, desigualdade, pobreza extrema e fome precisa, urgentemente, se transformar. É necessário entender que não existe um ‘fora’: todos habitamos o mesmo território chamado Terra, conectados e corresponsáveis por todas as formas de vida que aqui buscam coexistir”, pontua.
A terapeuta defende, ainda, as expressões artísticas como ferramentas de enfrentamento e cuidado coletivo: “as artes são estratégias sensíveis e críticas de tornar esse mundo menos hostil. Por isso, gosto do artivismo — essa arte engajada, comprometida com as denúncias e com as transformações urgentes e inadiáveis do nosso tempo”.
Há uma potência transformadora quando se rompe o olhar assistencialista, defende Carla. “Quando alguém que tem uma trajetória de violação ou caridade é tratado como alguém que cria, transforma, ensina e deve ser respeitado, sua postura no mundo muda. Incentivamos os sonhos, os desejos, incentivamos os sorrisos e as memórias, a construção de relações humanas qualificadas, horizontais e permeadas por afeto e confiança mútua. E muitas vezes é isso que revoluciona uma vida: acreditar em si mesma”.
Gleice, que também denuncia suas dores através das produções, está às vésperas de um novo casamento — desta vez com afeto, respeito e futuro. Mora em um hotel social com o noivo, um homem doce que conheceu em um abrigo, e com quem divide o desejo de recomeçar. A cerimônia, marcada para maio, terá flores e música. Ela mesma vai cantar.
Enquanto se prepara para a festa, termina de escrever sua autobiografia. Conta que pretende lançar o livro em julho e sonha com uma tarde de autógrafos. “Eu quero que as pessoas conheçam quem eu sou de verdade. Quem eu sou agora: uma mulher cheia de sonhos e cheia de vontade de viver”, diz. Nos tempos mais sombrios, desenhava quadros escuros, carregados de dor. Hoje, sua arte ganhou luz. “A arte de antes era obscura. A de agora é ampla. Se deixar, eu colo até borboleta no meio”.
O que falta não é talento — é política
Darcy Costa precisou acreditar em si mesmo. Diretor – Presidente do Centro de Integração Social pela Arte, Trabalho e Educação (Cisarte) e coordenador do Movimento Nacional de População de Rua, viveu em situação de rua por três anos, tendo outra camada de dificuldade: a dependência do crack.

A arte lhe proporcionou uma experiência de acolhimento, recuperação da autoestima, autonomia e de construção de um projeto de vida: o Cisarte, espaço dedicado ao acolhimento e à reinserção social das pessoas em situação de rua, por meio da arte. A estrutura, que conta com uma área de 1.400 metros quadrados, fica sob o Viaduto Pedroso, na Bela Vista, área central de São Paulo. No local, a cozinha se transforma em uma oficina, que desafia os moradores a produzirem pratos de comida e saborearem ao final. Há aulas de costura, serigrafia e o Brechó Social, onde o público acolhido pode adquirir peças de roupas por preços simbólicos.
As oficinas diárias recebem entre 140 e 200 pessoas em dias mais lotados. Darcy explica que muitas pessoas em situação de rua chegam ao Cisarte bastante debilitadas, acreditando que o único potencial que têm é de praticar o mandeio, ou seja, contar histórias para conseguir um trocado ou prato de comida. O objetivo do trabalho do Centro é ajudar essas pessoas a resgatarem a autoestima.
“A arte mexe com as emoções e os sentimentos que a pobreza e o sofrimento roubaram dele. Ele é um ser humano pleno, mas uma nuvem de sofrimento ocultou isso, a gente tenta despertar essa emoção e criatividade que já existem em seu interior”, conclui.
Darcy acolhe uma população que sofreu um boom no Brasil. Dados do Observatório do CadÚnico, de março de 2025, apontam um total de 335.151 pessoas vivendo nas ruas do Brasil, sendo que quase 70%, ou 233.018, se autodeclaram pretas e pardas. As mulheres somam 13.638. O aumento é de quase 1.362%, em pouco mais de uma década, se compararmos esses dados com o registrado, em dezembro de 2013, quando a população nacional somava 22.922.
Apenas o estado de São Paulo registrou, em março de 2025, o equivalente a mais de quarenta por cento da população total de rua do Brasil, o que, em números absolutos, totalizava 143.509. Cerca de 66% desse público se autodeclara preto e pardo e 27.453 são mulheres.

Com uma população de 96.220, o município de São Paulo possui quase 30% do total de pessoas em situação de rua no Brasil. Sete de cada dez pessoas se autodeclaram pretas ou pardas e 21.974 são mulheres. A população em situação de rua de São Paulo é quase cinco vezes maior do que a do Rio de Janeiro (21.764) e quase sete vezes a de Belo Horizonte (14.454).
Ao longo dos últimos doze anos, São Paulo figura como o epicentro da crise urbana, liderando nacionalmente e representando, sozinho, pelo menos 50% das pessoas em situação de rua de todo o estado. As pessoas que têm a sua humanidade apagada pela invisibilidade das ruas têm cor e carregam a marca de viverem à margem da promessa de emprego e sucesso econômico que a maior metrópole da América Latina e quarta maior do mundo ostenta.
“Temos plena consciência de que o trabalho com a população em situação de rua precisa ganhar o mundo, precisa ser acessado por toda a comunidade”, afirma Carla. “Precisamos de outras narrativas — experiências sensíveis e críticas que os processos criativos nos ajudam a transmitir — para que essas histórias possam ser compartilhadas com todos, sem estarem sempre associadas à criminalidade ou à benemerência.” Ela completa: “Pena, medo ou vergonha não contribuem em nada para a construção da cidadania de alguém que já foi profundamente afetado por processos de exclusão e desigualdade.”
Foi através do Cisarte que encontramos Washington, de 58 anos, que aprendeu a tocar piano aos 7, em Londrina (PR), sob a orientação de um amigo pastor, em uma igreja evangélica. Nunca mais parou. Aos 18, mudou-se para São Paulo em busca de estudo e trabalho — e acabou encontrando palco no Terminal Rodoviário do Tietê, onde toca até hoje. Mora há cinco anos na região pejorativamente chamada de Cracolândia, por concentrar muitos dependentes químicos, e compõe o repertório com o que o coração pedir: “o que vier, a gente toca”, diz.
Ele também toca violão de sete cordas e sonha em viver da música. Com fala mansa, acredita no poder que a arte tem de curar. “A música não só agrada à pessoa, mas cura também. A música tem um poder de cura. Você já imaginou o mundo sem música?” Ao piano, ele encontra o único lugar onde as ausências não fazem falta.
Moji: o exílio, a maternidade e a tela
A metrópole tem como regra a massificação, tudo parece se dissolver no mesmo bolo cinza: concreto, pressa e números. Mas a cidade erra quando tenta homogeneizar quem vive à margem. Nem toda pessoa em situação de rua é dependente química. Nem toda fugiu de casa, sofreu violência doméstica, abuso sexual ou teve um colapso financeiro. Outras, viveram tudo isso junto. A rua é múltipla — assim como as histórias que abriga.
Para a iraniana Moji Shirazi, de 36 anos, São Paulo foi a possibilidade de exercer sua maternidade com liberdade. Artista plástica de formação, trabalhava com esculturas e quadros de grande porte, muitos deles encomendados pelo poder público e expostos em espaços abertos no Irã. Tudo mudou quando engravidou.
Aos oito meses de gestação, decidiu fugir da repressão e da violência que marcam a vida de mulheres no Irã. “Meu país [é] muito fechado. Não tem liberdade para mulheres. Muita lei, muita agressão física”, relata. Ao deixar o próprio território, Moji perdeu a estabilidade que tinha: casa, carro, dinheiro — e, principalmente, o vínculo com a família.

Chegou ao Brasil em 2018 e logo enfrentou outra barreira: o idioma. Tentou alugar uma suíte, mas foi rejeitada por proprietárias que desconfiavam de seu sotaque. Durante os dias de peregrinação, “roubaram meus documentos, meu passaporte. Bateram em mim”, conta. Até ser acolhida por mulheres brasileiras solidárias e passar por abrigos, onde vive atualmente.
“No meu próprio país, pude transformar minha vida com minha arte e […] experimentei os melhores sentimentos. Ser reconhecida como artista é uma sensação maravilhosa para mim”, diz. “Muitas vezes eu falo que sou artista, mas ninguém entende. Então achei melhor mostrar através da arte quem eu sou”, revela”. Foi na arte que encontrou um canal para afirmar sua identidade — como mulher, imigrante e artista.
Sem acesso a materiais de qualidade, Moji começou a pintar com o que recebeu dos gerentes do abrigo. “Material é importante. Mas o que eu tinha não era bom. Mesmo assim, fiz”, diz, enquanto mostra à reportagem do Nonada os quadros na exposição “A Arte do Povo da Rua”. Para ela, a mostra tem gosto nostálgico: já viveu e saboreou suas obras sendo prestigiadas.
Mas, embora tenha encontrado um espaço mais acolhedor para viver sua maternidade, escolheu um país que não a reconhece como artista. Hoje, mora em um abrigo com o filho, de 8 anos, e um cachorro. Seu desejo é claro: retomar a produção de obras grandes, reencontrar outros artistas e abrir caminho: “eu posso fazer arte grande, pintura grande”.
Embora nunca tenha dormido diretamente nas ruas, o risco é uma possibilidade constante para Moji. A instabilidade vivida em abrigos, a dificuldade para conseguir trabalho e a ausência de uma rede de apoio tornam o medo iminente. Para muitas mulheres em acolhimento, a ameaça da rua não ficou no passado — ela pode bater à porta a qualquer momento.
Todas as entrevistadas vivem hoje em lares provisórios, e todas poderiam ter suas trajetórias transformadas se fossem efetivamente reconhecidas como trabalhadoras da cultura. Se fossem remuneradas pela arte que produzem. Se tivessem acesso contínuo a iniciativas como o Cisarte ou à exposição no TRF-3. A falta de reconhecimento da arte como trabalho, sobretudo quando produzida por pessoas em vulnerabilidade, faz com que suas vidas permaneçam em suspenso.
A infância que imagina, pinta e sonha
Noemi nunca viu o mar presencialmente — só pelo YouTube. Mas, assim que ganhou materiais de pintura, foi a vasta extensão de azul, que povoava o seu imaginário, que decidiu desenhar. Aos 8 anos, explica as escolhas: “o céu [eu pintei] de azul, né? Que é o mesmo azul que usei para fazer o mar” e explica que escolheu dourado para o peixe para não ficar tudo tão azul.
Enquanto fala com a reportagem, mostra um desenho que exposto na Arte do Povo da Rua, veste uma camiseta azul bebê e tem os cabelos longos e encaracolados — com as pontas loiras — presos em dois laços brancos e azuis. Noemi Vitória Marília da Silva vive em uma ocupação na região central de São Paulo, com a mãe e quatro cachorros: Fofa, Bob, Luke e Zoe. Mas, por muito tempo, esteve em situação de rua, na Praça da Sé, onde fica a Catedral Metropolitana de São Paulo e o marco zero da cidade. A criança não tem contato com o pai, preso por tentativa de feminicídio contra Kelly, sua mãe.
Durante a entrevista, Nono, apelido dado carinhosamente por Kelly, conta empolgada que é fã de Demon Slayer – Kimetsu no Yaiba, um anime japonês de grande sucesso. Explica que tem o costume de desenhar os personagens e que seu favorito é Tanjiro Kamado, um jovem que se torna caçador de demônios para vingar sua família assassinada e salvar a irmã. Guiado por empatia e coragem, enfrenta o mal sem perder a humanidade. “Meu sonho é ir para praia e conhecer Tanjiro”, diz a menina que desenha o que anseia.

A cientista social, artista plástica e arte educadora Adriana Duarte observa que os relatos das mulheres ouvidas pelo Nonada abordam circunstâncias de violência de gênero. As violências que essas personagens trazidas aqui sofreram adoeceram não só o corpo. Segundo Adriana, é a capacidade de atuar na dimensão do inconsciente que “faz com que a arte seja a única possibilidade de cura da alma. Ela adentra o inconsciente, eleva a sua autoestima e cultiva a ideia de que você se basta neste mudo duro”, detalha.
Na mesma linha, Carla ressalta que a arte “expressa modos de vida, visões de mundo, formas de estar e sentir. Somos seres coletivos, afetivos, e precisamos de muitas formas para criar relações com o que somos e com o que nos cerca. Todas as nossas atividades humanas são fruto da criação: a linguagem, a comida, as vestimentas, até o dinheiro — tudo isso foi inventado por nós”, explica.
Ela completa: “a arte utiliza diferentes técnicas e linguagens — e integra tudo isso para expressar. Quem cria, inventa um novo jeito de comunicar. E quem observa, interpreta a partir da própria experiência, dando novos sentidos à obra. É um diálogo entre mundos”. A arte é um diálogo entre mundos e não seria diferente com o povo da rua.
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