Cinema: A arte do diálogo

Virgínia e Adelaide narra o encontro, nos anos 1930, entre nossa primeira psicanalista negra e uma médica judia que fugiu da Alemanha nazista. Filme não é historiográfico: “a imaginação é pessoal, o imaginário é coletivo”, diz uma personagem

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Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Virgínia e Adelaide, de Jorge Furtado e Yasmin Thayná, é o encontro entre duas mulheres, duas culturas, duas faces da opressão racista e misógina. O filme está em cartaz em seletos cinemas pelo país afora e merece ser visto por uma série de motivos.

As mulheres em questão são a médica e psicanalista judia alemã Adelheid (Adelaide) Koch (1896-1980) e a psicanalista e socióloga negra brasileira Virgínia Leone Bicudo (1910-2003). Elas se conheceram em 1937 em São Paulo, onde Adelaide havia se refugiado com o marido e as filhas um ano antes, fugindo da Alemanha nazista. Tornaram-se inicialmente analista e paciente e depois amigas de toda a vida.

Documento e ficção

Logo de início um letreiro avisa: nomes, datas e locais são verdadeiros, “o resto é ficção”. O que interessa aos diretores não é reconstituir a história compartilhada das duas personagens, mas investigar os múltiplos aspectos desse encontro, sua reverberação na cultura (sobretudo brasileira) e – acrescento eu – seu significado no mundo atual, em que ressurgem ameaçadoramente as sombras do ódio racial, da violência de gênero e da intolerância com o diferente.

Sobre esses temas, Adelaide (Sophie Charlotte) e Virgínia (Gabriela Correa) têm muito a nos dizer. A primeira comeu o pão que Hitler amassou, sendo judia num país antissemita e profissional numa carreira predominantemente masculina. Depois, teve que se adaptar a uma língua e a uma cultura totalmente diversa da sua.

Virgínia, por sua vez, neta de uma escravizada, sofreu literalmente na pele, desde a infância, o racismo estrutural brasileiro, além do preconceito contra uma mulher na universidade e na ciência. Foi a nossa primeira psicanalista negra, e a primeira psicanalista sem formação acadêmica em medicina.

Os primeiros minutos do filme não são muito animadores: diálogos expositivos filmados num estrito campo/contracampo apresentam as personagens uma à outra e ao espectador, fazendo temer uma narrativa cinebiográfica convencional.

Mas logo esse temor se desfaz e entramos no universo ficcional-ensaístico que caracteriza tantos trabalhos de Jorge Furtado, misturando registros documentais, quadros sinópticos, breves esquetes e falas das atrizes diretamente para a câmera. O filme ganha alcance e energia, envolvendo o espectador em sua reflexão.

Cinema e psicanálise

Os próprios diálogos iniciais revelam-se plenos de sentido. A psicanálise, afinal, é essencialmente conversa, troca de experiências, memórias e impressões. O cinema, idem. É essa confluência entre o cinema e o processo analítico que o filme parece buscar – e ocasionalmente encontrar – na alternância entre os rostos e corpos que falam (por vezes com a tela dividida ao meio) e também nas associações de imagens, de evocações, de sonhos e devaneios.

“A imaginação é pessoal, o imaginário é coletivo”, diz Adelaide a certa altura. Esse trânsito entre o indivíduo e a cultura em que está inserido, ou melhor, o modo como cada indivíduo é atravessado por essa cultura é o que há de mais interessante em Virgínia e Adelaide.

A liberdade poética reivindicada pelo filme no letreiro inicial permite certos anacronismos – como retratar Virgínia como uma espécie de hippie de cabeleira black power ao voltar de Londres em 1960 (com direito à canção “You don’t know me”, de Caetano Veloso) –, bem como escalar duas atrizes com apenas dois anos de diferença de idade para representar duas mulheres cuja defasagem era de catorze anos. (Impossível deixar de sorrir quando ouvimos uma cintilante Sophie Charlotte dizer que tem “rugas até na alma”.)

Virgínia e Adelaide é também o encontro fecundo de dois realizadores, o renomado roteirista e cineasta branco gaúcho Jorge Furtado e a jovem roteirista e cineasta negra carioca Yasmin Thayná. Desse diálogo entre gerações, culturas e “lugares de fala” se fez um belo filme sobre… um diálogo entre gerações, culturas e “lugares de fala”.

O país ausente

Outra obra em cartaz que não deve passar batido é Em rumo a uma terra desconhecida, de Mahdi Fleifel. Em resumo, é a história de um grupo de jovens palestinos vindos de diversas origens (Gaza, Síria, Líbano) que vivem na periferia de Atenas e se entregam a todo tipo de atividades lícitas e ilícitas para tentar migrar para a Alemanha ou para a Itália.

Essa situação – à margem e “de passagem” – retrata de forma eloquente a tragédia do povo palestino, expulso de sua terra e hoje literalmente esmagado pelo Estado de Israel, sob o silêncio, quando não a cumplicidade, da chamada comunidade internacional. O diretor palestino Mahdi Fleifel sabe do que está falando. Nascido em Dubai, foi criado num campo de refugiados no Líbano e migrou aos nove anos para a periferia de Helsingør, na Dinamarca. O fato de ter-se tornado um cineasta de renome mundial é quase um milagre.

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