O laboratório de porrada e privações da ultradireita
De Milei a Trump, uma extrema direita transnacional testa o quanto de violência a população é capaz de tolerar em nome da “liberdade” de mercado. Não apenas física, mas também por meio da “austeridade” que condena à morte principalmente pobres e idosos
Publicado 16/05/2025 às 18:38

Por Elena Sala, do Africa is a Country, com tradução na Revista Opera
O presidente da Argentina, Javier Milei, declarou guerra – não apenas à “casta” política, mas às próprias instituições relacionadas ao bem-estar público. Em pouco mais de um ano, ele cortou pensões, reduziu drasticamente os orçamentos das universidades e implementou um protocolo antiprotestos que legaliza o uso da força bruta. Apesar de sua promessa de campanha de usar sua “motosserra” econômica contra a “casta” política, o setor mais atingido foi o dos aposentados “encharcados de mijo” (nas palavras do próprio presidente), representando 30,6% do total dos cortes orçamentários. Longe de esconder, Milei na realidade abraça um espetáculo de repressão e crueldade. Sua versão do neoliberalismo é assumidamente violenta.
E ele não está sozinho. Do uso frenético de metáforas por Milei à propaganda de Trump sobre uma limpeza étnica em Gaza, uma extrema direita transnacional está testando quanto de violência o público é capaz de tolerar em nome da “liberdade” de mercado. Em diferentes contextos, esses líderes promovem um modelo de governança que algema o Estado de suas funções redistributivas, enquanto abre caminho para que o cripto-corporativismo baseado em IA opere livremente – às vezes até promovendo seu uso como política oficial do Estado.
O que une essas figuras não é apenas uma ideologia socialmente conservadora, mas também um estilo comum. A demonstração de força, o desdém pela complexidade e a culpabilização de minorias selecionadas constituem uma mudança, rotulada por Gareth Watkins, em direção ao “conservadorismo pós-moderno”:
“O principal efeito dessa mudança foi consagrar o comportamento de um adolescente mimado de 15 anos como princípio organizador do movimento reacionário (…) – na opinião deles, a direita pós-moderna precisa se tornar ainda mais absurda; precisa abandonar completamente os ideais do Iluminismo, como a razão e a argumentação.”
O abandono da racionalidade e sua substituição por atributos pessoais são marcas registradas de uma nova forma de governança que, por sua vez, precisa descartar completamente os freios e contrapesos. Essa forma de governança se afasta da linguagem suave da tecnocracia dos anos 1990. Hoje, ela é altamente ideologizada, repleta de mitologias pessoais, barulhenta, teatral e punitiva.
Quando Milei se gaba de conduzir “o maior ajuste fiscal da história da humanidade”, ele está fazendo mais do que anunciar uma política. Ele está anunciando uma nova moralidade darwinista na política: a dor é prova de coragem, o colapso é um pré-requisito para um renascimento messiânico e aqueles que ficam para trás são simplesmente inadequados para os tempos atuais.
A austeridade não é mais uma necessidade econômica, mas um imperativo moral: falar sobre orçamento hoje é mergulhar no cerne do contrato social. A nação é apenas mais uma variável dependente em um jogo em que o poder corporativo tem a vantagem de ser o primeiro a agir.
O sistema de saúde da Argentina é um bom exemplo: uma das primeiras decisões do autoproclamado anarcocapitalista foi desregulamentar o sistema de saúde privado, o que automaticamente fez os preços dispararem até 235% em 2024. Ao mesmo tempo, o sistema de saúde estatal começou a limitar o acesso a medicamentos gratuitos para aposentados e a fechar serviços especializados, como programas de luta contra a AIDS e hospitais públicos em funcionamento.
A crueldade não é surpresa vinda de um presidente que declarou abertamente que “é maravilhoso quando as empresas vão à falência”, convidando as empresas argentinas a “se adaptarem” à sua agenda radical de liberalização econômica ou “perecerem”. Milei se referia à concorrência entre empresas nacionais e americanas que, em suas palavras, “entregam produtos melhores a preços mais baixos”. É uma narrativa que coloca os fracos contra os fortes – na qual os fracos não só são eliminados, mas também considerados merecedores disso. Não há reconhecimento das desigualdades estruturais e precariedades que colocam as empresas argentinas em desvantagem, nem dos benefícios mais amplos que advêm do fortalecimento da produção nacional, como a criação de empregos, o estímulo econômico e o desenvolvimento estratégico para o país como um todo.
Da mesma forma ilusória, quando Trump fez seu discurso de posse afirmando que “os pilares da nossa sociedade estão quebrados e aparentemente em completo estado de ruína”, ele estava recebendo a melhor herança socioeconômica de qualquer presidente eleito desde que George W. Bush chegou ao poder em 2001. A economia dos EUA ultrapassou outras grandes economias no período pós-pandemia, superando as previsões de crescimento pré-pandêmicas, mesmo em meio a preços em alta e aumentos agressivos das taxas de juros.
Mesmo assim, Trump pode estar acertando em cheio em uma noção compartilhada: a de que as instituições democráticas americanas estão em seu nível mais baixo em termos de credibilidade. Como afirma Aziz Rana, elas:
“Permitiram que Trump assumisse o cargo em 2016 sem vencer o voto popular e, em seguida, reconstruísse a Suprema Corte em linhas que estavam totalmente em desacordo com a opinião pública. Quando Trump tentou reverter o resultado das eleições em 2020, as instituições existentes tornaram extremamente difícil impor qualquer sanção contra ele, seja por meio de impeachment, processo judicial ou exclusão de futuras eleições.”
Em todo o mundo, instituições construídas sobre normas informais e consenso das elites estão se mostrando incapazes de resistir a líderes que não fingem seguir as regras e, por sua vez, expõem o quão frágil era a estrutura institucional. Afinal, quanto da estabilidade dependia, de fato, do consenso das elites?
Na Argentina, isso se traduz no uso generalizado de decretos executivos por Milei, incluindo um novo acordo com o FMI, constitucionalmente duvidoso. Isso se traduz na criminalização dos protestos, na tentativa de enfraquecer os direitos de negociação coletiva e nos ataques à educação pública. Quando estudantes e trabalhadores protestam, são recebidos com gás lacrimogêneo e balas de borracha. O Estado não tenta esconder a violência, mas sim transmiti-la.
Nos EUA, o ataque de Trump às universidades e aos ativistas sinaliza uma ambição mais ampla: verificar os sinais vitais das instituições democráticas. O caso de Mahmoud Khalil, um ativista palestino e portador de green card detido sem acusação, levantou vários alertas. Muitos veem seu caso como um teste para suprimir a dissidência política, especialmente nos campi universitários. Embora a detenção de Khalil esteja sendo contestada judicialmente, ela já sinalizou que criticar a política externa dos EUA pode acarretar riscos pessoais, especialmente entre estudantes ativistas. A ironia de que essa repressão à liberdade de expressão viole a Primeira Emenda, outrora invocada pelos conservadores para defender o discurso de ódio, é irrelevante para um bloco de direita que não se preocupa mais com coerência. Na Argentina e nos EUA, o que está sendo testado não é apenas até onde esses governos podem ir, mas também quão elástico o Estado de Direito pode se tornar a serviço do poder.
Independentemente disso, fazer qualquer exigência de responsabilização é falar para ouvidos surdos, pois esses líderes exercem autoridade ilimitada sobre a mídia e restringem e criminalizam a dissidência. Essa infraestrutura de repressão não é incidental, mas fundamental para a governança corporativa que trata a dissidência como um obstáculo à lógica de mercado.
“Tudo que pode ser privatizado será privatizado” poderia muito bem ser o slogan global do momento – ecoando da Casa Rosada de Javier Milei às declarações de Elon Musk perto da Casa Branca. Mas o objetivo não é realmente reduzir o Estado; é submeter toda a vida coletiva à lógica do mercado.
Resta saber se o espetáculo de força continuará seduzindo aqueles que primeiro levaram essas figuras ao poder. Por enquanto, a mensagem é clara: o vencedor leva tudo.
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