Para reaprender a caminhar nas cidades

O tempo em que elas foram espaços de formação, confrontos e diferenças parece distante. Reduziram-se a somatórias de vidas atomizadas, ou simples cenários de deslocamento. Reaprender a andar, olhar e escutar é uma resposta – um gesto de recusa à indiferença

Foto: Alex Zafer
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A cidade começa no que se ouve e se vê — mas também no que se reconhece como familiar, mesmo no desconhecido. É no gesto de cruzar experiências (sensoriais e narradas) que se inicia qualquer possibilidade de convivência. Talvez esse seja o princípio mínimo de uma política urbana viva: fazer da presença uma forma de escuta e da circulação uma forma de vínculo. Contra o enclausuramento dos corpos e das palavras, é preciso afirmar uma ideia de cidade como espaço de reconexão — menos como promessa de ordem, mais como campo de reinvenção cotidiana. Uma revolução discreta, feita de gestos simples, percursos imprevisíveis e vínculos reconstruídos na escala do comum.

Jane Jacobs, jornalista, pensadora urbana autodidata, ativista comunitária e crítica dos planejamentos modernistas, dizia que os olhos da rua eram fundamentais para a vitalidade urbana. Não apenas como sistema de vigilância ou garantia de segurança, como tantos urbanistas passaram a interpretar, mas como possibilidade de presença mútua, reconhecimento, convivência. Os olhos que se cruzam na calçada dizem: estamos aqui, juntos, mesmo sem palavra. Talvez seja por aí que devamos começar a pensar a cidade. Pelo que ainda resta de possibilidade de troca, de vínculo, de enunciação cotidiana.

Gosto de falar da cidade. Da cidade que conheço andando, entrando em ônibus, atravessando ruas, errando caminho. São Bernardo, São Paulo, bairros distantes uns dos outros, centros que se evitam, zonas que não se tocam. Gosto de entender a cidade na prática, rua a rua. Descrever tudo. É só uma tentativa de pensar por que tanta gente passou a viver sem ver, sem conversar, sem se deslocar de verdade. Há um silêncio estranho no cotidiano urbano. Muita presença, pouca troca. A cidade perdeu alguma coisa — e talvez tenha sido o que dava sentido a estar nela.

Essa percepção se intensifica no cotidiano. Nas ruas, no transporte, nas praças, há um jeito comum de estar ausente. O andar apressado, os olhos que desviam, o corpo que não quer contato. Como se as pessoas caminhassem não para ir, mas para escapar. Fones nos ouvidos, olhos grudados na tela, passos rápidos, como se não houvesse chão sob os pés. Tudo parece calculado para evitar o encontro. Os gestos são de proteção e, se possível, de ausência. Mas isso cobra caro: empobrece a cidade, silencia o cotidiano, transforma presença em algo fugidio.

Não é só uma questão de pressa ou tecnologia. Dizem que a gente está saturado de informação e temor. Pode ser. Mas o que vejo na rua é outro tipo de saturação: um cansaço que vem de não viver nada que se sustente como experiência. Tudo passa rápido, nada se elabora. As histórias não circulam. Os aprendizados não sedimentam. Como se a cidade já não oferecesse mais o que ensinar. E talvez não seja só ela — talvez sejamos nós que já não sabemos como aprender com o que está diante dos olhos.

Essa dificuldade em aprender parece estar ligada à dificuldade em narrar. Às vezes penso que esse silêncio que observo nas cidades tem algo de mais profundo. Não é só cansaço, distração e medo. É como se a experiência tivesse se tornado difícil de ser contada. Um tipo de mutismo que não vem da falta de assunto, mas da falta de escuta e de elaboração. Walter Benjamin, em O Narrador, escreveu que os combatentes da Primeira Guerra voltavam mudos do front: sua experiência era intransmissível, sem forma comunicável. A guerra, disse ele, empobreceu radicalmente o valor da experiência. Penso se não estamos diante de algo semelhante: uma cidade onde ninguém passou por guerra, mas onde quase ninguém consegue mais dizer o que vive. As vivências não encontram mais forma, nem audiência.

Talvez tudo comece pelo corpo. Se narrar é difícil, viver também está mais rarefeito. A cidade foi se tornando inabitável para o encontro. O corpo urbano virou um corpo blindado. Ele se desloca, mas não se move. Não se atrita, não encontra, não se deixa marcar. Ainda nos anos 1970, Richard Sennett, em O Declínio do Homem Público, mostrou como a cidade deixou de ser um espaço de confronto entre diferenças e passou a ser um somatório de vidas paralelas. Para ele, o espaço público perdeu sua função formativa porque o corpo perdeu a disposição para a fricção. A falta de envolvimento não é só emocional, é física: um corpo que não se depara com o outro não constrói sentido. O que temos hoje é o contrário da cidade viva: do carro fechado e ônibus lotados à entrega por aplicativo, tudo é feito para que se passe por ela sem precisar habitá-la. E, aos poucos, o corpo vai se tornando inútil para conhecer o mundo.

A experiência do espaço urbano depende de um certo envolvimento sensível. Georg Simmel, em seu ensaio As Grandes Cidades e a Vida do Espírito (1903), observou como a modernidade urbana exigia do sujeito um tipo de endurecimento psicológico. Para lidar com o excesso de estímulos e a multiplicidade de interações, o indivíduo desenvolvia a atitude blasé: uma indiferença protetora. Simmel não romantizava o passado, mas já via, ali no início do século XX, que a sensibilidade estava em risco. Que o excesso não gera necessariamente riqueza — pode gerar apatia. E que a cidade, se não cuidada, vira campo de ruído, não de sentido.

Falo disso também por experiência. Na adolescência, eu andava muito. Passava horas nos sebos, nas lojas de discos, nas bancas de rua. Às vezes saía com um livro, às vezes com um vinil, às vezes com as mãos vazias. Mas sempre voltava com alguma coisa que não cabia na sacola. Uma conversa, uma descoberta, uma rua que eu não conhecia. O centro de São Paulo era um mundo. As ruas escondidas de São Bernardo, Santo André, e até do meu bairro também. Eu não procurava nada específico. Só andava. E aprendia mais assim do que em muita aula. Não supervalorizo essa experiência, nem a transformo em modelo. Havia dificuldades, havia exclusões, havia medos — apenas eram outros, mais localizados, talvez menos intensos em sua escala. Era outro momento, outro ritmo de cidade, outra relação com o tempo e com o espaço. Mas foi real. E deixou marcas.

Caminhar, errar, experimentar o espaço: talvez aí ainda reste uma fresta. O gesto de andar pode ser um modo de se reapropriar da cidade. Michel de Certeau, em A Invenção do Cotidiano, escreveu que os passos na cidade são também uma forma de fala. Ele sugere que caminhar não é apenas deslocar-se, é escrever no chão da cidade uma narrativa silenciosa, feita de desvios, atalhos, astúcias. Caminhar é inventar percursos onde o planejamento urbano só vê funções e trânsito. Não se trata de romantizar a deriva, mas de reconhecer que há uma inteligência do corpo que sabe escapar, improvisar, criar sentido mesmo no espaço mais controlado. É esse tipo de gesto que salva um dia, uma rua, uma memória.

Esse tipo de aprendizado não enfeitou currículo, mas formou o que penso. Andar sem destino, se perder por ruas sem nome, conversar com gente que não tem cargo nem crachá. Tudo isso era parte do que me ensinava a viver em cidade. Não tinha método, mas tinha valor. O tempo urbano foi tomado por pressa, eficiência, produtividade e ausência. Se não serve pra render, não serve pra nada. A cidade passou a ser vista como obstáculo — e não como território de formação.

Tenho pensado que, talvez, estejamos perdendo algo essencial: a capacidade de contar o que vivemos. Não como grandes relatos ou teorias, mas como fragmentos que se tornam compartilháveis. Walter Benjamin dizia que narrar é uma arte que vem de longe, feita de pausas, escutas e vínculos. Não é algo automático — é uma forma de cuidado. Ele acreditava que contar histórias era uma forma de conservar a experiência no tempo, de proteger o vivido do esquecimento. E isso exige uma cidade disposta a escutar e pessoas dispostas a se demorar. Mas hoje, quase tudo se esvai antes de virar palavra. A cidade ainda oferece encontros, sim. Mas poucos se tornam memória. E, sem memória partilhada, a vida urbana vai se tornando muda.

A cidade foi ficando assim aos poucos. O excesso de estímulo, o barulho, a pressa, a violência — tudo isso foi levando as pessoas a se protegerem. Primeiro como defesa, depois como hábito, regra e ponto de fuga. A indiferença virou uma forma de viver. O corpo aprendeu a não se envolver, a não olhar, a evitar. E com isso foi perdendo a capacidade de aprender também. Porque quem não se mistura, não conhece. E quem não conhece, não narra. É como se a cidade tivesse deixado de ser espaço de formação e virado apenas cenário de deslocamento.

Não acho que a cidade vá voltar a ser cadente. E nem sei se deve. Mas acho que ainda dá para reaprender a andar, a olhar, a escutar. Não como um programa de salvação urbana, mas como um gesto simples de recusa. Recusar o automatismo, o medo, a indiferença. Recusar a ideia de que não há mais o que viver de verdade fora dos espaços protegidos. Talvez narrar seja isso: não salvar ninguém, mas lembrar que ainda há coisa viva na cidade para ser contada. E que vale a pena prestar atenção. É preciso que ganhemos a cidade, mesmo que ela resista em nos receber.

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Um comentario para "Para reaprender a caminhar nas cidades"

  1. Luciana Andrade disse:

    Belíssimo texto

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