Ode à diversidade e poesia das sementes
Álbum recém-lançado reúne, em criativas imagens e textos, 300 espécies de sementes brasileiras. A cada uma, corresponde sua história, quase sempre associada à relação com povos indígenas. Obra é um manifesto em favor da agroecologia e contra os desertos verdes
Publicado 09/05/2025 às 18:10

Para a etnia indígena guarani, o cedro-rosa (cedrela fissilis) deu origem a todas as árvores após um cataclismo que destruiu o mundo: a vegetação renasceu a partir de uma semente salva por um pássaro. Nas áreas rurais do Brasil, conta-se que o abacate (persea americana) não gosta de ser plantado sozinho: isolada, a árvore fica triste e não dá frutos. Na realidade, o abacate produz flores masculinas e femininas que desabrocham em períodos diferentes do dia. Sua polinização depende da proximidade de pelo menos outro abacateiro.

A história das sementes de cedro-rosa e do abacate faz parte do projeto brasileiro Sementes & Histórias, um inventário sui generis de sementes tradicionais. Combinando fotografias artísticas e histórias associadas a cada semente, o Sementes & Histórias pretende promover “a soberania alimentar, a conservação genética de espécies ameaçadas e a recuperação de biomas”. O projeto inclui a impressão de fotografias em grande formato, a edição de um livro bilíngue (Editora Plataforma9, 2024), exposições (como a realizada na galeria G6 de Barcelona) e colaboração com projetos de plantio, incluindo uma horta na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. “Todas as sementes que coletamos e fotografamos foram plantadas. O projeto não trata apenas de patrimônio genético, mas de soberania alimentar”, afirma Matheus Pockstaller, 33 anos, um dos idealizadores do projeto.

O Sementes & Histórias nasceu de uma casualidade. Viajando de carro pelo Brasil, Matheus Pokstalles e sua parceira Carolina Latini foram acumulando sementes tradicionais. Cada parada trazia uma descoberta, uma conversa, uma troca. “Fizemos uma viagem de 8 mil quilômetros. O carro foi ficando cheio de sementes. Ao parar para descansar, conversávamos com muitas pessoas e a troca surgia espontaneamente”, conta Carolina Latini, criadora audiovisual de 34 anos e fundadora da produtora Trovão Tropical. Para registrar a biodiversidade que os maravilhava, o casal decidiu criar o coletivo Seeds. O projeto logo ganhou uma dimensão fotográfica e narrativa.
Cada semente, um planeta
Quando o coletivo estudava usar tecnologia NFT (que confere identidade digital intransferível a itens) e visualizar cada semente em 3D, o fotógrafo ítalo-brasileiro Riccardo Riccio entrou no projeto. “Propus fotografar cada semente como se fosse uma figura colecionável de álbum. Não tínhamos claro o que fazer, só que queríamos fotografar sementes nativas”, diz Riccio. O fotógrafo, radicado em Barcelona, começou a retratar as sementes usando “empilhamento de foco” – técnica que combina múltiplas imagens com diferentes planos de foco. “Tiro a foto focando apenas 5% da superfície. Depois, outra foto focando outra parte. Às vezes são 100 fotos. Depois, as sobreponho. O resultado é uma semente supernítida. Visual e artisticamente, cada semente é um planeta sobre fundo negro”, explica.

O impulso estético injetou entusiasmo no projeto. Matheus, Riccardo e Carolina continuaram coletando sementes em suas viagens. Estabeleceram amizade com guardiões de sementes detentores de milhares de exemplares. Visitaram uma aldeia Yawanawá no Acre, onde conheceram rituais ligados à semente do uni (componente da ayahuasca). Aos poucos, entenderam que preservar a biodiversidade ia além da mera conservação de espécies. As sementes carregam o início da vida e a história do mundo. Contêm o legado e a ancestralidade dos povos. “As sementes não só armazenam nutrientes, mas traços culturais e usos culinários das comunidades”, afirma Thiago Luiz Santos da Silva, 29 anos, um dos guardiões que colabora com o projeto.
O poder da narrativa
Numa visita de Matheus e Riccardo ao assentamento Mário Lago, do MST, no interior de São Paulo, o projeto ganhou sua dimensão narrativa. Mariano, um dos agricultores, mostrou-lhes sementes de gergelim (Sesamum indicum). À primeira vista, aquelas semente uniformes não se encaixavam no projeto. Porém, as palavras de Mariano foram tecendo uma história emocional sobre as sementes. “Ele falava das sementes com reverência impressionante. Descrevia etapas do ciclo de crescimento, suas preferências climáticas, traços de sua personalidade, como se falasse de um parente. Não estávamos ouvindo sobre uma simples variante do gergelim, mas sobre a planta de Mariano. Percebemos o propósito: tão importante quanto capturar a beleza era honrar a importância dessas sementes na vida de quem as cultiva”, escreveu Zurí Rosalino, ex-integrante do projeto, no artigo Quantas histórias cabem em uma semente?

A escritora Mirna Wabi Sabi, da editora de livros bilíngues Plataforma9, juntou-se ao projeto para contar as histórias das sementes fotografadas. Mirna começou a interessar-se pelo banco de dados, uma planilha com os nomes científicos de cada sementes e os lugares onde havia sido coletada. “Fiz uma revisão, investiguei e comecei a escrever com arte na cabeça. Quando vi as fotos e textos, consegui imaginar o livro bilíngue – que não é exatamente uma enciclopédia de sementes”, garante Mirna. Os critérios para incluir uma semente ao livro começaram a transbordar a biologia. “Há um legado de coletores de sementes, que é oral, folclórico. Existe um legado da biologia e um legado cultural. Decidimos unir ciência e arte.”
O livro Sementes & Histórias, que inclui 100 das 358 sementes catalogadas pelo coletivo, reúne, entre muitas outras, a história do café (que os árabes do Iêmen torravam para que ninguém pudesse cultivar em outro lugar), do capim-nagô (trazido pelos escravos africanos ao Brasil, com poderosas propriedades curativas), e do pente-de-macaco (peine-de-mono, que a criatura mitológica mexicana La Xtabay usa para pentear-se). Mirna Wabi Sabi confia plenamente no poder da narrativa: “Não precisamos de mais dinheiro nem de mais tecnologia para salvar o mundo. Apenas mudar nossa perspectiva. As fotografias e a narrativa têm impacto. A obra de arte faz com que concentremos o olhar. O livro nos diz: preste atenção. Sem telas, sem distrações de consumo. Olhe para as sementes, concentre-se”.
Raiz indígena
O livro tem um capítulo chamado “nome indígena” para destacar a ligação ancestral dos povos originários com determinadas sementes. O Yvyrá Pytã, que em guarani significa “madeira vermelha”, é considerado no Paraguai um “símbolo da resiliência da floresta”.

Mirna denuncia o “pesado legado colonial” da biologia. “Na botânica, atribui-se a primeira descrição de diversas espécies a europeus. O Platypodium elegans, por exemplo, nativo do Brasil, está associado a um botânico alemão do século XIX chamado Vogel. No entanto, o povo Xavante já se referia a essa planta como wede itsaipro ou “árvore com espuma”, escreveu Mirna em um artigo.
As histórias do Sementes & Histórias revelam como os povos originários possuem tecnologias para criar consórcios equilibrados de plantas que coexistem. As “terras negras” indígenas são fruto de práticas agrícolas ancestrais que transformaram solos pobres em ambientes férteis. A banana, a mandioca, algumas castanheiras ou o cacau são cultivados juntos, imitando a resiliência das florestas. Um caso similar é o cultivo conjunto das “Três Irmãs” ou milpa – o milho, o feijão e a abóbora, retratados no livro: “O milho proporciona estrutura para que o feijão lance ramas e encontre luz. O feijão garante maior fertilidade do solo. A abóbora protege a terra do sol com suas folhas, impedindo a perda de umidade”. Matheus Pockstaller afirma que o projeto Sementes & Histórias é um grito poético contra a monocultura associada aos transgênicos: “A monocultura satura o solo com os mesmos nutrientes e o deixa cada vez mais pobre. O capitalismo selvagem está ampliando os latifúndios e fazendo muitos povos perderem sua identidade. A perda genética de espécies faz parte do pacote de genocídio”.

O livro Sementes & Histórias é, nas palavras de Carolina Latini, o “primeiro bebê de um projeto multimídia”. O coletivo planeja criar ambientes expositivos interativos e formatos audiovisuais. Enquanto isso, uma sâmara, uma das duas sementes não identificadas do livro, interpela o leitor desdobrando narrativa poética: “dispersa-se ao vento e incorpora um simbolismo espiritual amplamente utilizado em técnicas de meditação”.
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