50 anos: “O Vietnã não é uma guerra”

Na sexta e última parte de nossa série sobre a reunificação, uma radiografia do país. Como foi o processo de reconstrução? O que manteve o socialismo de pé? Por que a perestroika vietanamita? Quais as novas apostas do governo para o desenvolvimento?

Foto: European Pressphoto Agency
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Este é o sexto e último texto sobre a Guerra do Vietnã (ou Guerra Americana, como é chamada pelos vietnamitas) e a Queda de Saigon, que marcou a reunificação do Vietnã do Norte e do Sul. Contém imagens fortes de crimes de guerra. Leia todos os textos aqui

Capítulo 6 – O Vietnã reunificado: entre o ajuste de contas com o passado e os ajustes para o futuro (a partir de 1976)

“O Vietnã não é uma guerra, é um país” (Lê Mai, ex-vice-ministro das Relações Exteriores, no início dos anos 1990) [1].

Nada mais óbvio do que presumir que o caminho a ser trilhado pela República Socialista do Vietnã, oficializada na IV Assembleia Nacional, de 2 de julho de 1976, seria tortuoso e complicadíssimo. Mas, apesar de toda a ordem de entraves e dificuldades, foi de fato aberto o período de reconstrução do país. No plano político interno mais imediato, o governo implantou vários campos de reeducação para cerca de 200 mil oficiais militares, policiais e funcionários da antiga República do Vietnã (o Vietnã do Sul) com o objetivo de prevenir uma contrarrevolução, além de admitir vários empresários sul-vietnamitas na nova administração. Na prática, adotou-se a estratégia de não romper de forma abrupta com a burguesia instalada no sul, optando-se pela coação administrativa em paralelo com a reeducação política.

Na prática, o Governo Provisório da República do Vietnã do Sul e a Frente Nacional de Libertação do Vietnã do Sul (FNL) confundiam-se com o governo da antiga República Democrática do Vietnã (o Vietnã do Norte), mas, em dezembro de 1976, algumas organizações acabaram se fundindo ao Partido Comunista do Vietnã (PCV) – que, de fato, governava o país. A relação com as minorias étnicas (o Vietnã possui 54 grupos étnicos, dos quais o Viet, ou Kinh, corresponde a cerca de 85% da população total) e com os grupos religiosos, exceto com a cúpula católica e os comerciantes chineses, não se tornou um problema.

Mesmo com a decisão de fechar as fronteiras com os seus vizinhos Laos, Camboja e China e suspender o contato com o mundo ocidental, a República Socialista do Vietnã foi admitida como membro das Nações Unidas em 20 de setembro de 1977. No ano seguinte, assinou tratados fronteiriços com o Laos e restabeleceu relações com o governo, comandado pelo príncipe Suvanavong. Mas o mundo entraria em uma nova rodada de conservadorismo, reduzindo drasticamente um período fértil para grandes revoluções sociais e agravando gradativamente a própria existência da União Soviética. Desse modo, o ingresso do Vietnã no Conselho de Ajuda Mútua Econômica (o mercado comum dos países socialistas) e a assinatura do Tratado de Amizade e Cooperação com a União Soviética em pouco ajudou na resolução dos problemas econômicos pós-reunificação. Ademais, outros percalços até então impensáveis apareceram no caminho do Vietnã.

Um ‘socialismo cercado’ e a complicada reconstrução da economia

Logo de início, duas questões de enorme envergadura afligiam o governo e a população: a economia e, de modo contraditório, os impasses com os três vizinhos declaradamente comunistas. No plano econômico, uma angústia se abateu em todo o país. Com o fim da importação de arroz e da ajuda financeira dos Estados Unidos, a fome passou a fazer parte do cotidiano em várias zonas, causando subnutrição em parte da população. Ressalta-se, ainda, o convívio com uma infraestrutura colapsada, como visto no capítulo 3. O resíduo brutal da destruição dos tempos de guerra estava ali, a olho nu, diante de todos. A situação obrigou o governo a impor uma política de racionamento e o secretário-geral do PCV, Le Duan, ordenou uma coletivização dos meios de produção que se encontravam em operação. No sul, entretanto, a decisão de transferir mais de um milhão de pessoas de Ho Chi Minh para o campo gerou insatisfação, pois era preferível subsistir em favelas precárias do que pegar em ferramentas para cultivar arroz e outros gêneros alimentícios.

No sul, portanto, o quadro era mais grave – cerca de 3 milhões de desempregados, 4 milhões de analfabetos e mais de um milhão de ex-soldados, policiais e oficiais do Exército desmobilizados, dos quais 360 mil mutilados. Os números tornam-se mais desastrosos com a contabilidade de cerca de 800 mil crianças órfãs, um milhão de viúvas, 200 mil prostitutas, dezenas de milhares de mendigos, viciados e delinquentes [2]. Focos de cólera, tuberculosos e contaminados pelos bombardeios químicos eram encontrados em todas as partes. Os campos estavam semidesertos ou improdutivos. O rebanho de búfalos foi extinto. Na perspectiva da classe média da antiga Saigon, acostumada com o consumo conspícuo introduzido pelos EUA, houve um retrocesso generalizado.

A vida bucólica e frugal do norte, atravessada constantemente por valores confucionistas e pelo sentimento de resiliência adquirido e cultivado nos tempos de guerra, não interessava ao sul. O norte tinha a vantagem de regozijo com conquistas simples (como a obtenção de uma bicicleta, por exemplo) ou coletivas (o conserto de uma estrada, de um dique, do telhado de uma casa, ou o incremento da produção agrícola), diferentemente da falta de perspectivas que ditava o ritmo da vida da maioria pobre da população sul-vietnamita.

Para piorar ainda mais o contexto, os EUA decidiram impor um embargo econômico sobre o país, que ficou mais severo com a adesão dos países ocidentais (exceto a Suécia) em 1979. Mas o que está ruim pode piorar, e uma série de tufões e outros desastres naturais (inundações e secas) atingiu o Vietnã na segunda metade da década de 1970, comprometendo o crescimento da produção agropecuária.

No plano diplomático de seu entorno regional, a situação também era delicada. O Khmer Vermelho, após tomar o Camboja em 1975, inclinou-se por uma política radical de reconstrução do país com um modelo de socialismo retrógrado em todos os sentidos. A ideia seria destruir tudo para recomeçar do zero, em um princípio baseado na ruralização forçada para a consecução de uma nova sociedade – em certa medida inspirada pela Revolução Cultural maoísta –, renovada pela glorificação do passado de ouro do antigo Império Khmer. As cidades foram esvaziadas (a população da capital Phnom Penh decresceu de 2,5 milhões de habitantes para 700 mil em poucos meses) e a infraestrutura, destruída. Houve perseguições (e expurgos) em massa, destruição da vida social, militarização extrema, eliminação da moeda, e o país implantou uma política de isolamento em relação ao exterior, mantendo relações apenas com a China. E, por incrível que pareça, o Khmer ampliou a política de incursões militares no sul do Vietnã, pois reivindicava áreas que teriam pertencido à civilização khmer, simbolizada pelo esplendor da antiga cidade de Angkor, mil anos atrás.

O genocídio que estava ocorrendo no país vizinho, aliado às invasões militares, fizeram com que o PCV reorganizasse novamente o seu Exército para pegar em armas. Em 28 de dezembro de 1978, 200 mil homens das forças vietnamitas adentraram o Camboja com o intuito de derrubar o Khmer Vermelho (comandado pelos facínoras Pol Pot e Ieng Sary) em aliança com a Frente de Unidade Nacional do Kampuchea para a Salvação Nacional (foto 1). Em 7 de janeiro de 1979, Phnom Penh foi libertada, dando origem à República Popular do Kampuchea. As tropas do regime de Pol Pot fugiram para o interior, na fronteira com a Tailândia, e o novo governo abriu o país para a imprensa internacional e denunciou o genocídio cambojano [3].

Foto 1 – Monumento em Phnom Penh que homenageia o auxílio militar vietnamita na luta contra o Khmer Vermelho
Autor: Daniel M. Huertas (26 jan. 2020)

Mas a China, que demostrava desacordo com várias políticas que estavam sendo adotadas pelo governo vietnamita, sobretudo em relação ao Camboja, invadiu seis postos fronteiriços com o Vietnã, em 17 de fevereiro de 1979, com 600 mil soldados e artilharia pesada, como forma de intimidação. As relações Beijing-Hanói foram cortadas, mas a China ordenou o retorno de suas tropas com o anúncio soviético de que honraria o acordo assinado com o Vietnã caso a agressão fosse mantida. Cabe ressaltar que a China, já sob as reformas econômicas de Deng Xiaoping, havia adentrado um caminho de intensa reaproximação com o Ocidente, em especial com os EUA, reconhecendo, de forma altamente contraditória, a ditadura de Augusto Pinochet no Chile, além de apoiar regimes reacionários na África. A força autônoma da Revolução Vietnamita incomodava a China, que historicamente sempre considerou o Vietnã como sua periferia imediata.

Nem mesmo o Acordo de Cooperação Econômica, Cultural, Educacional e Técnica assinado em 22 de março de 1979 por Vietnã, Laos e Camboja melhorou a percepção internacional do Vietnã, que passou a ser visto pela onda conservadora direcionada pelos EUA e Grã-Bretanha, com apoio tácito chinês e tailandês na esfera do Sudeste Asiático, como inimigo, a despeito de ter realizado uma das mais sólidas revoluções no seio do Terceiro Mundo, em pleno auge da Guerra Fria. O governo vietnamita estatizou parte do comércio e cerca de 700 mil pessoas deixaram o país (muitos chineses), em uma atmosfera de risco de desabastecimento e de boatos sobre um possível refluxo da situação de guerra.

Para a imprensa internacional, era a imagem de vítimas fugindo de perseguições políticas, amplificando uma campanha negativa contra o país, que ficava cada vez mais isolado no cenário internacional. Como bem analisou Visentini, gerou-se um contexto de “socialismo cercado” (que teria perdurado até 1991, segundo a sua análise), em conjunto com a desidratação da “síndrome do Vietnã” nos EUA – que, após a ressaca dos traumas da guerra na Ásia, retornavam à arena internacional para reforçar a luta contra a União Soviética sob o mantra dos garantidores da justiça e do chamado mundo livre [4]. A Guerra Fria, assim, caminhava para o seu fim.

Em 1980, o V Congresso do PCV decidiu pela implantação de discretas reformas econômicas, liberando a venda da produção agrícola excedente (havia uma cota mínima fixada por hectare) e estimulando a pequena e média manufatura. Le Duan foi reeleito secretário-geral do partido, que manteve boa parte da equipe dirigente oriunda do período da guerra. Além de autocríticas internas, a cúpula vietnamita demonstrou preocupação com a escalada conservadora nos EUA, caracterizada pela ascensão de Ronald Reagan à Presidência.

O governo estadunidense, por intermédio da Agência Central de Inteligência (CIA), retornou as suas atividades no Sudeste Asiático, com apoio tácito a guerrilhas contra o governo do Laos e ao Khmer Vermelho, refugiado na fronteira com a Tailândia e sob nova direção, para tentar retomar o controle no Camboja. Em 1981, o terror de uma nova guerra reapareceu com a descoberta de um movimento contrarrevolucionário nascido na Califórnia (liderado por um ex-comandante da Marinha de Saigon), e que já havia cruzado a fronteira do Vietnã, mas totalmente desbaratado pela reação vietnamita. Em 1984, a China voltou a atacar as províncias fronteiriças do Vietnã, mas não ocorreu uma invasão de fato. Os combates cessaram no Laos e as forças militares vietnamitas, em conjunto com as do Kampuchea, contra-atacaram e aniquilaram qualquer tipo de resistência do Khmer (que se refugiou na Tailândia), dando início a um período de superação gradativa do trauma da experiência polpotiana e da lenta reconstrução da vida socioeconômica do Camboja.

No plano interno, registraram-se uma certa estabilização da produção agrícola, desempenho satisfatório nos campos da saúde e educação e avanços no setor industrial e na infraestrutura – conclusão da hidrelétrica de Hoa Binh e da termelétrica Pha Lai, e reconstrução do reator nuclear de Dalat, com auxílio soviético. Entretanto, cabe ressaltar que, com a economia abalada, a União Soviética começou a diminuir a ajuda ao Terceiro Mundo, comprometendo ainda mais o orçamento militar do Vietnã, esgotado com a manutenção de tropas no Camboja (Hanói não admitia, de modo algum, o retorno do Khmer Vermelho ao poder no país vizinho) e com a necessidade de garantir a própria segurança do país. A situação do Vietnã era muito complicada, repleta de problemas diplomáticos, econômicos e de gestão.

A política do Doi Moi – ou o ‘socialismo reformado’

O VI Congresso do PCV (já sem Le Duan, que havia falecido meses antes, sendo substituído por Nguyen Van Linh), em dezembro de 1986, representou um ponto de ruptura. Após críticas contundentes à administração vigente, centradas na ineficiência burocrática de grande parte das empresas estatais e da gestão administrativa do país, além do surgimento da corrupção em alguns quadros do partido (fenômeno até então inexistente desde a criação do Viet Minh, por Ho Chi Minh, no início da década de 1940), optou-se pela instituição de uma série de reformas econômicas e avanços no campo das relações exteriores. A questão demográfica também preocupava, com a previsão de 120 milhões de habitantes em 2020 (o que acabou não ocorrendo) se o país mantivesse o ritmo de crescimento populacional.

“Nos outros países socialistas, a renovação permitirá alcançar o nível dos países avançados. Mas, para nosso país, a renovação é uma questão de vida ou morte. Só há uma saída para o impasse atual: mudar nosso modo de pensar e trabalhar” (fala de Truong Chinh, dirigente do PCV, na abertura do VI Congresso) [5].

Uma nova geração da elite, chamada “geração da paz”, clamava por mudanças com o Novo Pensamento (interpretado por alguns analistas como a Perestroika vietnamita), e ascendeu a altos cargos na administração pública com o desafio de “vencer o subdesenvolvimento, em meio a um sistema internacional em crise e em rápida mutação” [6]. Denominada Doi Moi, a série de reformas de cunho liberalizante incluiu, em seu processo inicial, autorização para a formação de microempresas privadas nas cidades, privatização fundiária no meio rural (política que já vinha sendo adotada de forma tímida desde o começo da década pelos contratos de empreitada, ou khoan), oferta de crédito estatal para incentivar a produção, uso de políticas monetárias para controlar a inflação e autonomia para as empresas estatais na tomada de decisão quanto à produção, distribuição e financiamento. Oficialmente, o Doi Moi foi mostrado à população e ao mundo como uma “economia de mercado orientada para o socialismo”, algo próximo do modelo chinês do “socialismo de mercado”.

Em um segundo momento, adotou-se algo bem parecido com o que estava ocorrendo na China de Deng Xiaoping: a abertura de Zonas Econômicas Exclusivas para captação de investimentos estrangeiros industriais no país e, consequentemente, romper o isolamento diplomático e fomentar as relações comerciais do Vietnã em um mundo às portas da globalização com o iminente desmantelamento da União Soviética e do bloco comunista. Fim das restrições de viagem ao exterior e ampliação das liberdades individuais ainda fizeram parte desse pacote. Em tempo: o multipartidarismo político foi rejeitado, mas o aprofundamento do PCV nos movimentos sociais e o combate à corrupção (18 mil funcionários foram expulsos da gestão pública) buscavam recuperar a confiança popular.

Três anos depois, em 1989, três fatos extremamente relevantes precisam ser citados: a retirada total das tropas vietnamitas do Camboja, o incremento brutal da produção de arroz, com a exportação de excedentes (base alimentar de boa parte do continente asiático), e a inserção do país como exportador de petróleo, com a exploração de jazidas offshore por empresas transnacionais. Um verdadeiro período de paz estaria adiante da sociedade vietnamita, algo inédito na história do país ao longo do século XX. Por outro lado, absurdas taxas de inflação (1.000% em 1988, mas derrubadas no ano seguinte), aumento da fome causado pelas adversidades climáticas, imigrações ilegais para Hong Kong em frágeis embarcações (com maciço repatriamento em 1991) e dificuldades inerentes ao novo modelo econômico (crescimento do trabalho informal e do contrabando, por exemplo) causariam certo incômodo no início do processo de mudanças, com a eclosão de protestos populares.

No VII Congresso do PCV, realizado em 1991, Van Linh foi substituído por Do Muoi, um dos articuladores das reformas. No ano seguinte, uma nova constituição foi promulgada (substituída pela atual, vigente desde 1º de janeiro de 2014), reafirmando o caminho socialista e a “força motriz” do partido na condução do Estado e da sociedade em todos os campos (artigo 4º) e permitindo que candidatos independentes concorressem às eleições – no pleito de 1992, os comunistas conquistaram 384 das 450 cadeiras do Parlamento. O sistema organizacional do PCV é estruturado em consonância com o aparato do sistema administrativo de todos os níveis – ou seja, central, provincial, municipal, distrital e comunal – e de todas as instituições (escolas; empresas estatais; agências; organizações políticas, sociais e profissionais; Forças Armadas e forças policiais), com base em células espalhadas por todos os rincões do Vietnã.

Os membros da Assembleia Nacional, dos Conselhos Populares e das organizações político-sociais (Comitês Populares) de nível central, provincial (são 58 províncias divididas em oito macrorregiões) e das cinco cidades centralmente administradas (Ho Chi Minh, Hanói, Haiphong, Can Tho e Danang são classificadas como municipalidades e gozam de status provincial) são eleitos pelo voto popular. Dos 500 assentos da Assembleia Nacional eleitos em 2021, 486 ficaram com membros do PCV e os outros 14, com candidatos independentes (ou apartidários).

Interessante notar que, em toda a estrutura do governo, existe a chamada Frente Vietnamita da Pátria, uma coalização política voluntária de organizações políticas, sociais e individuais de todas as classes, extratos sociais, grupos étnicos e religiosos, além dos vietnamitas residentes em outros países. Seu objetivo é “juntar e construir um bloco popular único para fortalecer o consenso político e espiritual do povo e encorajá-lo a promover a sua maestria na implementação de diretrizes e políticas do PCV e a cumprir a Constituição e as leis” [7].

Para Visentini, a sobrevivência do socialismo vietnamita deve ser creditada a uma base camponesa “com maior dinamismo que o de perfil operário soviético”, cujas potencialidades ainda não estavam esgotadas – “ao contrário da urbanização e modernização massiva e forçada da União Soviética”. Agrega-se a isso, segundo ele, a modernização (e não a eliminação) de valores tradicionais asiáticos, “valiosos para a construção de nova legitimidade”. E continua, afirmando que o comunismo asiático “foi construído com forças próprias, na luta anticolonial e de libertação nacional”, cuja tomada de poder ocorreu de modo autônomo, “sem a ação do Exército Vermelho ou pelo desejo de Moscou” [8].

Entretanto, se algum grau de incerteza quanto ao futuro de curto e médio prazos ainda permeava as expectativas da sociedade vietnamita, várias conquistas alcançadas ao longo da década de 1990 e da primeira do século vindouro merecem ser destacadas, como o florescimento da atividade turística; abertura e formalização de canais de diálogo com Camboja (assinatura do Acordo de Paz em 1991), China (retomada das relações diplomáticas e estreitamento da cooperação econômica e partidária em 1992), Estados Unidos (que derrubou o embargo comercial em 1993), Rússia, Austrália e Japão (1993) e União Europeia (1995); entrada na Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), em 1995, na Coordenação Econômica Ásia-Pacífico, em 1998, e na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2007; membro com assento rotativo no Conselho de Segurança das Nações Unidas (2007-08); e sede de vários congressos internacionais, jogos asiáticos e encontros da Asean [9].

O fato é que se configurou uma cadeia de investimentos sul-coreanos, japoneses, chineses, malaios, cingapurenses e de Taiwan que, aproveitando a abundância de mão de obra barata local e as vastas possibilidades abertas, investiram na infraestrutura energética e de transportes e na instalação de indústria leve, principalmente vestuário e componentes eletroeletrônicos. O sul do país foi o principal destino desse movimento, recebendo 75% do total de investimentos estrangeiros até a crise asiática de 1997, alavancando Ho Chi Minh como o principal centro econômico do país, com cerca de 8,99 milhões de habitantes (fotos 2-17), além de beneficiar Can Tho (190 km a sudoeste), espécie de capital do Delta do Mekong e quarta maior cidade do país, com 1,23 milhão de habitantes (fotos 18-23) e o balneário turístico de Nha Trang, 390 km a nordeste (fotos 24-29). Para tentar corrigir esse desequilíbrio e reforçar a integração interna, o governo desenhou políticas de desenvolvimento para a região central, colocando a cidade de Danang, quinta maior do Vietnã (1,13 milhão de habitantes) e relativamente equidistante entre Hanói (760 km ao norte) e Ho Chi Minh (925 km ao sul), como nodal regional estratégico do ponto de vista territorial (fotos 30-42).

Fotos 2-17 – Facetas da modernização em Ho Chi Minh (verticalização, shopping centers, especulação imobiliária, estação de metrô recém-inaugurada e bicicletas elétricas)
Autor: Daniel M. Huertas (2020 e 2024)

Fotos 18-23 – Facetas da modernização em Can Tho (mapa dos distritos industriais, infraestrutura, verticalização, motocicletas e propaganda)
Autor: Daniel M. Huertas (2020)

Fotos 24-29 – Facetas da modernização em Nha Trang (verticalização, especulação imobiliária e veículo elétrico 100% vietnamita da marca VinFast)
Autor: Daniel M. Huertas (2024)

Fotos 30-42 – Facetas da modernização em Danang (Plano Diretor, a famosa “Ponte do Dragão”, verticalização, especulação imobiliária, motocicletas e propaganda)
Autor: Daniel M. Huertas (2024)

A política do Doi Moi e suas contradições

As reformas instituídas pelo Doi Moi de fato têm grande responsabilidade pela reviravolta na situação econômica do Vietnã, cuja taxa de pobreza – indivíduos vivendo em famílias com consumo ou renda per capita inferior a USD 2,15 por dia, em valores de 2017, segundo metodologia do Banco Mundial – caiu drasticamente de 45,1% da população, em 1992, para 0,7%, em 2020 [10]. O Vietnã saiu do ranking das dez maiores taxas de pobreza do mundo em 1990, de acordo com o Brookings Institute, para entrar na lista das 11 economias emergentes que cresceram ao menos 5% de 1995 a 2016 [11].

Mas o fenômeno tem as suas contradições, como o aumento das desigualdades entre pobres e ricos. Huu Ngoc, um prestigiado intelectual vietnamita, apesar de reconhecer o desenvolvimento econômico proporcionado pelo movimento de renovação iniciado em meados dos anos 1980 (“graças ao Doi Moi, nosso padrão de vida melhorou”), não deixa de criticar a erosão de aspectos fundamentais da milenar cultura do país, implicando, na sua visão, na gradativa substituição da tradicional ênfase comunitária para uma orientação individualista a respeito da vida. Para ele, ainda está longe o enquadramento do Vietnã como mais um tigre asiático, pois o país não desfrutou das vantagens competitivas adquiridas por Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong (“tigres da primeira geração”) e Cingapura, Tailândia, Malásia e Indonésia (“tigres da segunda geração”) em contextos históricos pretéritos [12]. A questão central, em seu argumento, é que o Vietnã entrou em uma corrida pela industrialização tardiamente, impactada diretamente pelas tecnologias recentes (poupadoras de mão de obra) e com uma grande população (cerca de 100.987.686 habitantes em 2024, resultando em uma densidade demográfica de 328 habitantes/km2) na busca por emprego [13].

A ampliação do mercado doméstico com o aumento do poder aquisitivo da população seria a chave para um desenvolvimento de longo prazo, ao contrário dos modelos que procuram uma orientação preferencialmente exportadora. Para alcançá-lo, Ngoc sugere direcionar o desenvolvimento ao interior do país (sobretudo da classe camponesa) e à produção agrícola como maneira de fomentar a poupança interna.

A adoção do livre mercado e a abertura às culturas ocidentais, na visão de Ngoc, “encoraja a competição e, ao mesmo tempo, estimula um individualismo frenético, espalhando uma busca descontrolada por prazer material em contradição às nossas tradições comunitárias”. Segundo ele, o progresso econômico não poderia ferir a identidade cultural vietnamita, tornando-se um grande desafio remanescente nos tempos atuais: ajustar o balanço entre desenvolvimento econômico e cultural [14]. A questão, por enquanto, estaria desfavorável ao segundo ponto. Ngoc considera que a família tradicional vietnamita “está sob fogo”, cujos valores vêm sendo solapados, além dos efeitos negativos sobre a tradicional cultura vietnamita, baseada nos três níveis comunitários (família-vila-nação).

Ngoc lembra que, após a adoção do Doi Moi, regularmente têm vindo à tona inúmeros problemas sociais, como conflitos fraternais por dinheiro, adultérios e divórcios de forma desenfreada, crianças ingratas, pais indignados e crescimento das infrações juvenis. Segundo ele, um conjunto de efeitos negativos causados pela economia de mercado, “em particular a corrida febril pelo lucro para satisfação de prazeres materiais, resultando numa ênfase excessiva no indivíduo e no declínio da moral familiar” [15]. Além disso, faz questão de ressaltar uma questão geracional, entre aqueles que viveram ao longo do período de guerra e os que nasceram em outro contexto, adotando a metáfora da formiga e da cigarra:

“Doi Moi (…) trouxe relativa prosperidade, com bens de consumo estrangeiros como geladeiras, televisão, tablets, smartphones, motocicletas e comida ocidental, incluindo laticínios. Esta geração mais jovem não sabe nada sobre o sofrimento da guerra e nem sobre as privações por racionamento” [16].

Ngoc utiliza uma comparação com o Japão – que é o país de mais alto padrão de vida em todo a Ásia, uma espécie de régua de medição comparativa, sobretudo no Sudeste Asiático –, cuja sociedade também vem passando por problemas parecidos no aspecto social (falta de visão comunitária, pouco respeito pelas tradições e uma obsessão por eletrônicos, entre outros) por conta do crescimento econômico do pós-guerra. “Entretanto”, afirma Ngoc, “as cigarras vietnamitas vivem em um país de Terceiro Mundo, que ainda não pode suportar uma sociedade de consumo. Nossos jovens devem se preparar melhor para o futuro, o que não será fácil” [17].

Cabe destacar, ainda, que na festa pelos trinta anos do fim da guerra, em 2005, enquanto o então primeiro-ministro Phan Van Khai exaltava a vitória, que ficaria “escrita para sempre na história da nação”, o já aposentado general Vo Nguyen Giap, o principal artífice militar da campanha contra franceses e estadunidenses (como já visto nos capítulos anteriores), e então com 94 anos (ele viria a falecer em 2013, com 102 anos), desdenhava da ocidentalização proporcionada pelas reformas introduzidas pela política do Doi Moi.

Fotos 43-66 – Cenas da “geração da paz”
Autor: Daniel M. Huertas (2020, 2023 e 2024)

Explosão do turismo, crescimento econômico “padrão chinês” e eficiência no combate ao coronavírus

Em meados da segunda década do século XXI, o Vietnã alavancou um processo para fincar o seu nome como um destino turístico internacional de alta magnitude, aproveitando a onda que já vinha se desenrolando há algum tempo em outros países do Sudeste Asiático, como Indonésia, Tailândia e Cingapura. Para as autoridades vietnamitas, chegara a hora de mostrar ao mundo uma outra faceta do país – com cicatrizes da guerra ainda abertas, é verdade, mas agora em uma situação de reconstrução econômica e estabilidade social. E isso ocorreu, como mostram os números divulgados pela Autoridade Nacional de Turismo: entre 2009 e 2024, o número de turistas estrangeiros pulou de 3.776.708 para 17.583.901, um espantoso crescimento de 465% [18].

Além do incremento das estratégias e ferramentas de divulgação, o governo incentivou empresas e atividades ligadas ao setor, além de investir na infraestrutura necessária para receber de modo eficiente esse influxo de turistas – cabe ressaltar que a maior parte do contingente é oriunda do continente asiático (13.987.051 em 2024, ou 79,5% do total), destacando-se os países do Sudeste Asiático, China, Japão, Coreia do Sul e Índia [19]. Os principais aeroportos do país (Hanói, Ho Chi Minh, Danang e Hue) foram modernizados e ampliados e um vasto sistema de ônibus cobre o país de ponta a ponta, cujo sistema rodoviário também tem recebido melhorias (fotos 67-68). Expansão significativa da rede hoteleira, reorganização dos parques nacionais, remodelação de templos, pagodes e igrejas e valorização da cultura vietnamita (festas populares, gastronomia, vestimenta tradicional, literatura, artes, crenças e estilo de vida) incluem-se em outros pontos trabalhados sistematicamente.

Foto 67 – Rodovia Hanói-Haiphong
Autor: Daniel M. Huertas (19 jan. 2024)

Foto 68 – Ônibus da empresa Futa na linha Can Tho-Ho Chi Minh
Autor: Daniel M. Huertas (29 jan. 2020)

A remodelação da Vietnam Airlines, principal empresa aérea do país, foi um elemento vital para o crescimento do turismo. Fundada em 1956 com apenas cinco aeronaves e poucos voos domésticos, expandiu as suas rotas para os países vizinhos entre 1976 e 1980. Em 1993, oficialmente se tornou uma empresa estatal, agregando outras 20 entidades de serviços aéreos. Já de olho no mundo globalizado, entre 2002 e 2015 a companhia alterou a sua identidade visual com a adoção do lótus dourado como símbolo; adquiriu o seu primeiro Boeing 777; tornou-se membro da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês); lançou um lote de ações na Bolsa de Ho Chi Minh e passou a operar um Airbus A350-900 de última geração. Nos últimos 10 anos, ampliou a sua frota com a aquisição do Boeing 787-10 Dreamliner, totalizando 96 aeronaves, ganhou alguns prêmios internacionais e passou a realizar voos diretos para os Estados Unidos (Ho Chi Minh-San Francisco). Atualmente, atende a 22 destinos domésticos e 37 internacionais (27 na Ásia, seis na Europa, três na Austrália e um nos Estados Unidos). Bamboo Airways, Vietnam Air Services (VASCO), Vietjet Air e Pacific Airlines (as duas últimas empresas de baixo-custo) também operam no país.

No quesito transportes, também é preciso mencionar as linhas ferroviárias de passageiros. Herança do período colonial francês (com posteriores melhoramentos e reconstruções por causa da guerra), está sob responsabilidade da estatal Vietnam Railways (VNR), que opera seis linhas: norte-sul (a popular Saigon-Hanói, com 1.727 km de extensão), Hanói-Dong Dang (com conexão para Nanning, na China) e outras quatro regionais no norte do país. Dotado com estações, carros e vagões antigos, o sistema, vital para a fluidez dos vietnamitas e também para o transporte de carga (além de atender várias cidades com apelo turístico), funciona relativamente bem, mas necessita ser reestruturado, com remodelagem das instalações e das vias e substituição do material rodante (fotos 69-71). O governo já anunciou a intenção de modernizá-lo (inclusive com a implantação do trem-bala) e de conectá-lo aos vizinhos Laos e Camboja.

Foto 69 – Estação ferroviária de Hue
Autor: Daniel M. Huertas (9 fev. 2020)

Foto 70 – Vagão da linha norte-sul, na estação de Dong Ha
Autor: Daniel M. Huertas (11 jan. 2024)

Foto 71 – Estação de Hanói
Autor: Daniel M. Huertas (14 jan. 2024)

O governo não se esqueceu de uma questão nevrálgica e fez questão de explicitar ao mundo os horrores e traumas dos trinta anos de guerra. Desse modo, estão espalhados por muitas cidades uma miríade de museus que retratam – de forma explícita e com o apoio de imagens, objetos e interpretações endógenas – as dinâmicas das guerras anti-imperialistas travadas em solo vietnamita. Esse aspecto, inclusive, atrai turistas de todos os matizes, mesmo aqueles que preferem deslumbrar as praias, paisagens e belezas naturais do país. Afinal, é impossível visitar o Vietnã é não se deparar com a realidade imposta por décadas de conflitos, ainda entranhada no inconsciente coletivo da sociedade (foto 72).

Foto 72 – Escultura com restos de aviões abatidos na entrada do Museu de História Militar
Autor: Daniel M. Huertas (21 jan. 2024)

No plano econômico, em 20 anos de Doi Moi a taxa anual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país pulou de 2,84% (1986) para 8,40% (2005), com taxa média anual, no período, de 6,89%. O PIB per capita saltou de USD 200 (1990) para USD 637,30 (2005) [20]. No plano quinquenal 2006-2010, houve uma profunda reestruturação das empresas estatais (das 4.722 então existentes, 1.931 deveriam continuar ativas; as demais 2.791 seriam dissolvidas, fundidas, vendidas, alugadas ou falidas) e nova rodada de incentivos ao setor privado [21]. O país estava prestes a ingressar na OMC e a integrar a Área de Livre Comércio Asiático. Visando implantar a Agenda 21 nas diretrizes do país, o PCV lançou, em 2004, o Plano Visão 2020, focando em aspectos relacionados ao desenvolvimento sustentável, com foco nos aspectos sociais: redução da pobreza e eliminação da fome; promoção da igualdade social e do progresso; redução adicional do crescimento populacional e geração de empregos; planejamento urbano; elevação da qualidade da educação e do nível de treinamento dos trabalhadores; aumento dos serviços de saúde; melhoria das condições de trabalho da população e da saúde ambiental do país.
No aspecto do desenvolvimento territorial, o plano dividiu o país em três macrorregiões (Norte, Central e Sul) para o desenvolvimento de Zonas Econômicas, buscando aproveitar as vantagens competitivas e a infraestrutura já existente. O norte alocaria indústrias e serviços de alta tecnologia (máquinas e equipamentos, software, informática, automação), novos materiais e indústrias naval e mecânica. Ao centro estavam reservadas atividades de comércio internacional e centros turísticos. Serviços de alta qualidade internacional (centros de treinamento, saúde, educação) faziam parte da agenda do sul, com a previsão de construção de um complexo urbano moderno a noroeste de Ho Chi Minh. Abaixo seguem alguns indicadores sociais (saúde e educação) e econômicos, com registro de avanços em todas as áreas (tabelas 1-4):

           Tabela 1 – Sistema educacional vietnamita (2015-2021)

Nível escolar
2015
2021
Total de alunos (em milhões)
Pré-elementar
3.978,5
3.895,3
Elementar
7.790
9.212
Colegial
5.138,7
5.927,4
Total
16.907,2
19.034,7
Total de escolas
Fundamental
2.380
2.399
Médio
8.744
10.312
Secundário
15.254
15.254
Total
26.378
27.965

                              Fonte: Adaptado do Memorial Ho Chi Minh (17 jan. 2024).                                  



      Tabela 2 – Sistema educacional de nível superior (2013-2021)

Nível escolar
2013
2021
Total de alunos
Públicas
1.493.354
1.728.856
Privadas
176.669
416.570
Total
1.670.023
2.145.426
Total de universidades
Públicas
156
175
Privadas
58
67
Total
214
242

 Fonte: Adaptado do Memorial Ho Chi Minh (17 jan. 2024).



                      Tabela 3 – Sistema de saúde (2010-2016)

Graduação
2010
2016
Total de profissionais
Médicos
1.709
2.570
Obstetras
362
444
Enfermeiros
1.309
2.531
Farmacêuticos
356
720
Total
3.736
6.265

Fonte: Adaptado do Museu de Can Tho (30 jan. 2020).

                   Tabela 4 – Indicadores econômicos (2010-2016)

2010
2016
Área de cultivos alimentares (em hectares)
Arroz
209.382
237.950
Outras culturas
979
1.055
Total
210.361
239.005
Produção de gêneros alimentares (em toneladas)
Arroz
1.196.897
1.408.110
Outras culturas
4.992
5.548
Total
1.201.889
1.413.658
Valor da produção industrial por setor (em milhões de dong)
Privado
40.218.345
87.990.061
Investimento estrangeiro
9.195.154
10.794.825
Estatal
5.748.663
12.598.568
Total
55.162.162
111.383.454

                   Fonte: Adaptado do Museu de Can Tho (30 jan. 2020).

No final de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou estado de calamidade pública global por causa do surgimento e avanço do vírus SARS-CoV-2 (coronavírus ou covid-19), sugerindo medidas drásticas de isolamento social em todos os países, com consequente fechamento de boa parte das atividades presenciais. Em 1º de fevereiro, diante da chegada do vírus à Europa e aumento dos casos, o governo vietnamita decidiu fechar a fronteira com a China, já que o vírus fora propagado a partir do país vizinho. O governo desenhou a chamada política do “covid zero” (similar à da China), criou o Comitê Diretor Nacional para Prevenção e Controle do Covid-19 e suspendeu todas as viagens domésticas (aéreas, fluviais, ferroviárias e rodoviárias), além de efetuar rastreamentos em massa, quarentenas e bloqueios para impedir a disseminação do vírus. A partir de 22 de março de 2020, todos os cerca de 180 mil estrangeiros que estavam no país foram convidados a se retirar, e não foi registrado nenhum caso de transmissão local entre meados de abril e final de julho. Em maio, os voos domésticos já haviam sido liberados.

Em janeiro de 2021, foi instituída uma quarentona mais rigorosa e, após um pico no surto da doença em abril (com cerca de 700 mil casos registrados), cerca de ⅓ da população do país foi obrigada a se submeter a algum tipo de confinamento no final de julho. Cabe salientar que a vacinação havia começado em 8 de março. Em agosto, para melhorar a contenção da pandemia, o governo optou por acelerar a vacinação, pois admitiu que o país não poderia conviver com fechamentos e quarentenas indefinidos. Por causa da ampla e eficiente cobertura de vacinação – o país já tinha tido experiência com controle e tratamento da epidemia do vírus SARS, em 2003 –, o número de mortes em proporção ao número de casos confirmados foi baixo. O comitê foi dissolvido em 29 de outubro de 2023, sendo a situação classificada como de “gestão estável”, a cargo do Ministério da Saúde [22].

Apesar do impacto negativo geral sobre a economia global, o Vietnã registrou crescimento, respectivamente, de 2,91% e 2,58%, em 2020 e 2021 [23]. Entre os setores mais afetados estão o turismo e as indústrias multinacionais, diretamente atingidas pela desorganização das cadeias de abastecimento. Mesmo não isento de críticas, segundo muitos especialistas o Vietnã registrou um dos melhores resultados ao enfrentamento do coronavírus em todo o mundo, com ações coordenadas do ponto de vista técnico (saúde pública) e político. A última contagem divulgada pelo Coronavirus Tracker, em 13 de abril de 2024, indicou um total de 11.620.195 de infecções e 43.206 de mortes no Vietnã, ou 437 mortes por um milhão de pessoas – contra 38.743.918 casos e 711.380 mortes no Brasil, ou seja, 3.303 mortes por um milhão de pessoas [24]. A reabertura ao turismo internacional, mas repleto de restrições e medidas de segurança, ocorreu em 17 de novembro de 2021.

Epílogo: a República Socialista do Vietnã em primeira pessoa

Cinquenta anos. Não é pouca coisa – mas as emoções, memórias, sentimentos e consequências materiais dos conflitos ainda estão enraizados no país e na sociedade. Na carne e na alma. Na paisagem, de norte a sul, leste a oeste. E o Partido Comunista sabe disso e faz questão de enaltecer o fato de ter sido o principal artífice da vitória sobre o imperialismo. Andar pelas ruas das cidades vietnamitas, pequenas, médias ou grandes, é manter contato vivo e direto com a história recente. Placas, outdoors, monumentos, bustos, estátuas, memoriais. Por todo canto é possível avistar alguma propaganda (esteticamente muito semelhantes às da antiga União Soviética) ou algum símbolo que evidencia a fundação do partido (1930), a Revolução de Agosto (1945), a vitória em Dien Bien Phu (1954), a tomada de Saigon (1975) e a proclamação da República Socialista do Vietnã (1976), além de feitos recentes empreendidos pelo governo (fotos 73-87). Sem contar a figura de Ho Chi Minh, literalmente onipresente em todos os lugares (fotos 88-95).

Fotos 73-87 – Iconografia e propaganda comunista
Autor: Daniel M. Huertas (2020, 2023 e 2024)

Fotos 88-95 – Iconografia de Ho Chi Minh
Autor: Daniel M. Huertas (2020, 2023 e 2024)

Mas é preciso compreender esse fato, pois muito provavelmente essa seja a grande estratégia utilizada pela alta cúpula política para legitimar o unipartidarismo e garantir a permanência de uma coesão social fundada, antes de mais nada, no orgulho da história do país. A educação, já nos primeiros passos, catapulta as crianças para dentro dos conflitos que definiram a nação. Hordas de estudantes frequentemente visitam o esplendoroso Mausoléu de Ho Chi Minh na capital Hanói e os inúmeros museus espalhados pelo país. O sentimento de orgulho nacional é uma das questões mais valorizadas pela sociedade, e não é à toa. Afinal, torna-se um exercício nada fácil de resolver buscar os motivos pelos quais dois grandes impérios sucumbiram diante de um país pobre, atrasado e rural, desprovido de capacidade militar para enfrentar modernas tecnologias de morte.

No Museu de História Militar, por exemplo, existe um espaço muito bem configurado no qual os estudantes são recebidos por um oficial do governo impecavelmente uniformizado, que explana em detalhes as estratégias militares empreendidas para cercar e aniquilar os franceses em Dien Bien Phu. Ou a tomada de Saigon. Ao fundo, uma espécie de diorama gigante, com uma representação tridimensional do teatro de operações que joga luzes aqui e acolá para indicar os movimentos do inimigo e das forças revolucionárias, enquanto um telão mostra imagens reais dos conflitos (foto 96). Armas, documentos, mapas, fotos, uniformes e outros materiais expostos completam o quadro que busca trazer o passado ao presente.

Foto 96 – Diorama da vitória de Dien Bien Phu
Autor: Daniel M. Huertas (20 jan. 2024)

Mas como foi dito por um membro do governo no início dos anos 1990, o Vietnã não é uma guerra, é um país. E justamente aqui reside uma tarefa prazerosa: buscar entender e vivenciar ao máximo possível a riquíssima cultura vietnamita, num jogo sociológico que o tempo todo procura nos prender ao passado e às heranças da guerra. Em primeiro lugar, estamos falando de uma cultura milenar de um país asiático. Mas não se trata de qualquer país. Por isso mesmo é difícil separar essas duas dimensões.

De qualquer forma, o viajante mais atento e intrépido consegue notar algumas nuances do que estou tentando dizer. Uma cultura única – nesses tempos modernos composta pela combinação de quatro facetas (o substrato do Sudeste Asiático, a face confucionista-budista do leste asiático, a influência ocidental e a integração à comunidade mundial) engendradas por três fatores geográficos (Sudeste Asiático, Leste da Ásia e Oceano Pacífico), segundo o já citado Huu Ngoc –, e que neste primeiro quartel do século XXI resolveu apostar na globalização. Influenciado ou não pela vizinha China (não importa), o governo havia decidido, em meados da década de 1980, pela abertura econômica, embora mantendo câmbio, freio e acelerador sob direção do partido. Erros e acertos. Contradições. Avanços e percalços.

Os prédios modernos espelhados, condomínios e hotéis de luxo, restaurantes chiquérrimos, suntuosas pontes estaiadas, rodovias duplicadas, shopping centers e a profusão de veículos e motocicletas (um inferno…) evidenciam o latente e pujante crescimento econômico, mas não escondem a desigualdade social. E talvez esse seja o grande desafio do país: como equilibrar essa conta? Cabe lembrar que a maior parte dos países subdesenvolvidos (e o Brasil em particular) errou feio nesse cálculo. Não quero dizer que os países centrais acertaram em cheio – no capitalismo, a conta nunca fecha –, mas no subdesenvolvimento essa questão se torna dramática.

E, para complicar ainda mais, como gerar uma sociedade justa e equilibrada diante de uma nova geração apegada e desejosa em excesso pela tríade consumo conspícuo, hedonismo e ambição social? Bem, esse é um problema que todas as nações estão enfrentando atualmente, com grau de intensidade maior na periferia do planeta por motivos óbvios. Entretanto, no caso vietnamita ouso dizer que a conta pode ficar mais (na falta de uma palavra melhor) administrável.

É um apontamento ousado e complexo, claro. Mas algo de diferente cheira pelos ares vietnamitas. A alta liderança política conhece muito bem a sua população e as potencialidades e limitações do país. E aqui exatamente reside um elemento central: o planejamento. Aliando tempo e espaço a seu favor e ao seu modo, o Vietnã está em processo gradativo de urbanização – cabe ressaltar que 59,4% da população, ou cerca de 60 milhões de pessoas, vivem na zona rural [25]. E, pelo menos por enquanto, não se verifica um movimento caótico e destrambelhado ao estilo latino-americano, mesmo que largas áreas urbanas (sobretudo em Ho Chi Minh, Nha Trang e Danang) estejam cedendo espaço para uma classe média e/ou média alta ascendente temperadas pela especulação imobiliária e pelas vitrines reluzentes de lojas e concessionárias de veículos. Ademais, importante destacar, esse processo ocorre de forma paralela à construção de um robusto Estado de bem-estar social.

Outra chave é a educação. Não apenas a formal, escolar, mas também os valores e crenças ligados diretamente aos preceitos budistas e confucionistas, (ainda) largamente difundidos e praticados no plano moral e espiritual da população. Talvez Huu Ngoc tenha se excedido ao analisar as contradições do Doi Moi quanto ao aspecto da erosão da identidade cultural vietnamita. E sua posição é compreensível. Afinal, fez parte das lutas de resistência, vivenciando de dentro o que foram as décadas de guerra.

Ou talvez o meu olhar seja ingênuo demais para traçar uma análise, mesmo que superficial, da sociedade vietnamita. Olhando de fora, o sentimento comunitário parece algo (ainda) onipresente no estilo de vida do país. Obviamente que não conheço como se dá a participação da sociedade nos comitês e conselhos populares, e até reconheço que os conflitos geracionais devem fazer parte do cotidiano familiar em âmbito geral. Mas resiliência, estilo de vida simples, respeito e paciência são preceitos visivelmente perceptíveis por onde quer que se ande. A globalização capitalista e suas fantasias estão lá, estimulando os desejos de todos, mas, pelo menos por enquanto, ouso dizer que naquele país algum grau de filosofia, poesia e espiritualidade (ainda) se sobrepõe aos prazeres carnais e mundanos.

No plano econômico, o país tem alcançado bons resultados. Vejamos os dados de 2024, levando-se em conta os efeitos adversos do tufão Yagi: registro de PIB de USD 476,3 bilhões (49,46% no setor de serviços, 45,17% na indústria e construção e 5,37% no agropecuário e pesca), indicando um crescimento de 7,09% e de USD 377 no PIB per capita, que chegou a USD 4.700. A corrente de comércio alcançou USD 786,29 bilhões (USD 380,76 bi em importações e USD 405,53 bi em exportações, um superávit de USD 24,77 bi), um acréscimo de USD 24,77 bilhões em relação ao ano anterior [26].

A princípio, (ainda) é possível enquadrá-lo como uma espécie de plataforma de mão de obra barata para produção e exportação de bens de consumo para empresas multinacionais. Ou como mais um mero produtor e exportador de commodities no mundo globalizado – com destaque para o setor cafeeiro, arroz, frutas e vegetais. Ocorre que de forma lenta e silenciosa o país tem trabalhado na geração de tecnologia e na qualificação da mão de obra, ao ponto de já ostentar um veículo 100% vietnamita [27]. E não é possível saber onde essa dinâmica pode chegar (vide o exemplo chinês).

Quanto aos aspectos geopolíticos, o futuro do Vietnã depende em grande instância da estabilidade de seus vizinhos China, Laos e Camboja, do Japão e da Coreia do Sul (grandes investidores e importadores) e da plena integração econômica e territorial no Sudeste Asiático. Essa questão, pelo menos até o momento, (ainda) está razoavelmente equacionada. Se tem algum país que não desejaria de modo algum entrar em estado de guerra, direta ou indiretamente, é o Vietnã. E as razões são conhecidas. Afinal das contas, o Vietnã é um país, e não uma guerra. E um país que conseguiu se tornar uma referência para a ascensão do Sudeste Asiático e para o avanço da humanidade, com uma cultura única que resistiu a uma história recente traumática e bastante dolorida.


Notas:
[1] FUCS, José. Crescimento faz Vietnã superar pobreza extrema, jornal O Estado de S. Paulo, Internacional/A12, 18 fev. 2024.
[2] VISENTINI, Paulo Fagundes. A Revolução Vietnamita. São Paulo: Editora Unesp, 2007 (Série “Revoluções do Século 20”), p.93.
[3] O Museu do Genocídio de Tuol Sleng foi o centro de detenção de segurança máxima de uma rede de quase 200 cárceres (distribuídos em quatro edifícios anteriormente ocupados por uma escola), onde o regime do Khmer Vermelho praticava interrogatórios e torturas. Estima-se que entre 12 mil e 20 mil de pessoas ficaram encarceradas no complexo, também conhecido por S-21. Só houve 12 sobreviventes confirmados. Em seguida, os prisioneiros eram levados aos “campos de morte” de Choeung Ek, a 15 km da capital cambojana, para serem enterrados em valas comuns.
[4] VISENTINI, op. cit., p.91.
[5] [6] Idem, p.104.
[7] Vide https://vietnam.gov.vn/political-system-68959 Acesso em: 10 mar. 2025.
[8] VISENTINI, op. cit., p.110-111.
[9] Criada em 1967 e atualmente com 10 membros, a Asean, guardadas certas particularidades, equivale ao Mercosul do Sudeste Asiático. Em 1995, EUA e Vietnã reativaram as suas embaixadas nas respectivas capitais. Em 2000, o presidente estadunidense Bill Clinton visitou o país, resultando no incrementando do comércio bilateral e num plano de ajuda financeira e tecnológica para retirar explosivos não detonados do tempo da guerra. Com o tratado sobre fronteiras assinado em 1998, China e Vietnã adentraram numa era de cooperação entre os dois partidos comunistas, com apoio mútuo em várias áreas, como exploração de petróleo, por exemplo.
[10] [11] Trata-se de um fenômeno bastante acentuado no continente asiático, mesmo que com disparidade entre os países, puxado pelos “tigres asiáticos da primeira geração”, a partir dos anos 1970, e pelo robusto desenvolvimento econômico chinês, desde o advento das reformas de Deng Xiaoping. Os dados citados estão em FUCS, José. Crescimento faz Vietnã superar pobreza extrema, jornal O Estado de S. Paulo, Internacional/A13, 18 fev. 2024.
[12] Huu Ngoc nasceu em Hanói, em 1918. Durante a guerra de resistência contra o colonialismo francês, ensinou inglês nas zonas liberadas e tornou-se dirigente do Comitê Cultural da Província de Nam Dinh, onde também editou jornais de agitação e propaganda para as forças revolucionárias. Convocado a ingressar no Exército em 1950, supervisionou o Setor de Reeducação de Prisioneiros de Guerra. Casou-se com uma ex-aluna que reencontrou em uma trilha, na frente de batalha. Em 1954, voltou a viver na capital norte-vietnamita com a sua família. Durante a guerra contra os EUA, foi diretor da Editora Vietnamita de Línguas Estrangeiras, editando e traduzindo poemas do país para compor a obra Literatura Vietnamita. Aposentou-se em 1989 e ingressou na Editora The Gioi. Em 1994 publicou o Dicionário da Cultura Tradicional Vietnamita, editado em inglês em 2012. Seu livro seguinte, Vagando pela cultura vietnamita, é outro clássico: Está com 106 anos de idade.
[13] Vide https://www.worldometers.info/world-population/vietnam-population/ Acesso em: 20 mar. 2025.
[14] NGOC, Huu. Viet Nam: tradition and change. 3. ed. Hanói: The Gioi Publishers, 2022, p.260.
[15] Idem, p.263.
[16] Ibidem, p.270.
[17] Ibidem, p.271.
[18] [19] Vide https://vietnamtourism.gov.vn/en/statistic/international Acesso em: 10 mar. 2025.
[20] [21] Vide https://vietnam.gov.vn/economy-68968 Acesso em: 12 mar. 2025.
[22] [23] Vide https://en.wikipedia.org/wiki/COVID-19_pandemic_in_Vietnam Acesso em: 20 mar. 2025.
[24] Vide https://www.worldometers.info/coronavirus/ Acesso em: 20 mar. 2025.
[25] Vide https://www.worldometers.info/world-population/vietnam-population/ Acesso em: 20 mar. 2025.
[26] Vide
https://www.vietnam-briefing.com/news/vietnam-economy-2024-gdp-trade-fdi.html/ Acesso em: 18 mar. 2025.
[27] Fundada em 2017, com planta industrial em Haiphong, a marca VinFast Auto Ltd. possui vários modelos de carros e motocicletas elétricas. Além do mercado doméstico, tem ampliado as exportações para países asiáticos e europeus, EUA, Canadá e Austrália. VinFast pertence ao Vingroup JSC, um dos maiores conglomerados privados do Vietnã. Com sede em Hanói, atua no mercado imobiliário; setores de saúde, educação, turismo e entretenimento; tecnologia (inteligência artificial, cibersegurança e marketing digital) e produção de baterias elétricas.

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