Criaturas da mente: Sobre a in(capacidade) de sonhar
Um cineasta com dificuldades de sonhar investiga sua relação com o inconsciente e o mundo onírico, com ajuda de Sidarta Ribeiro, Ailton Krenak e outros. Neste percurso, documentário mostra também a magia do cinema – mais “vitrine de sonhos” do que “fábrica”
Publicado 08/05/2025 às 16:24 - Atualizado 08/05/2025 às 16:58

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Ofuscado pelo brilho onipresente de Ney Matogrosso/Jesuíta Barbosa e exibido em poucos cinemas, um filme precioso corre o risco de receber menos atenção do que merece. Estou falando de Criaturas da mente, do pernambucano Marcelo Gomes, que entra em cartaz nesta quinta-feira.
É um “documentário poético em primeira pessoa”, esse gênero fecundo de que fazem parte filmes mais ou menos recentes de diretores tão díspares quanto Karim Aïnouz, Kleber Mendonça Filho e João Moreira Salles. No caso de Criaturas da mente, Marcelo Gomes partiu de sua dificuldade de sonhar, surgida na época da pandemia de covid, para refletir sobre a natureza dos sonhos e sua relação com o inconsciente.
Estados alterados de consciência
Durante uma hora e meia somos conduzidos por uma investigação coletiva e multidisciplinar sobre as interações entre o sonho, a mediunidade, o transe religioso, a possessão, a psicodelia – em suma, os estados alterados de consciência.
Conduzido pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, a quem o cineasta recorreu depois de ler seu longo artigo “Ciência em Krakatoa”, publicado em 2020 na revista Piauí, o filme se constrói com diálogos entre Sidarta e os mais diversos pensadores, do psicanalista junguiano Waldemar Magaldi ao escritor indígena Ailton Krenak, do jornalista de ciência Marcelo Leite à mãe de santo Beth de Oxum.
Da atividade onírica dos polvos à incorporação dos ancestrais num ritual indígena ou num terreiro de candomblé, dos efeitos psicodélicos da ayahuasca (ou da jurema) ao sonho propriamente dito, configura-se no filme a imensa riqueza pouco conhecida da produção de imagens na mente. “Tem gente dentro da gente”, diz Beth de Oxum a certa altura. Descobrir quem é essa gente, de onde ela vem, parece ser o norte dessa investigação, mesmo sabendo que ela não chegará a uma conclusão definitiva.
Abertura para o outro
Essas conversas todas são mediadas por Marcelo Gomes e marcadas por sua postura de curiosidade e abertura ao pensamento, ao saber e à sensibilidade do outro. O diálogo entre diferentes, a troca de experiências, a porosidade ao entorno, eis o motor do cinema do diretor desde sempre. Essa generosidade do olhar propiciou, por exemplo, seus filmes em parceria com cineastas bem diferentes dele próprio, como Karim Aïnouz (em Viajo porque preciso, volto porque te amo) e Cao Guimarães (em O homem das multidões).
Em todos os seus longas “solo” Marcelo Gomes retratou esses encontros entre realidades distantes, desde Cinema, aspirinas e urubus (2005) – um alemão e um sertanejo viajando de caminhão pelo interior do Nordeste – até Retrato de um certo Oriente (2024) – jovens irmãos libaneses tentando se adaptar à vida na região amazônica.
Em Criaturas da mente, o cineasta reflete sobre os mecanismos inconscientes da criação de imagens em seu próprio cinema, a começar do primeiro curta, Maracatu, maracatus (1995), que documenta a chegada à cidade e a performance de um grupo de maracatu rural, ritual afro-indígena que, segundo Sidarta Ribeiro, tem todas as características do sonho. O neurocientista diz que passou a entender e apreciar o carnaval numa visita a Olinda quando tinha catorze anos. “O carnaval de Olinda é uma experiência onírica”, diz ele.
Mas não se pense que se trata de um documentário feito de talking heads, pessoas falando para a câmera. O que vemos na maior parte do tempo são cenas de filmes, jogos de capoeira, experiências de laboratório, danças rituais, dunas, matas, ondas do mar, sem falar dos desenhos animados e grafismos que buscam reproduzir o que vemos quando estamos de olhos fechados, no terreno movediço entre o sono e a vigília.
Cinema como revelação
O que há de mais bonito em Criaturas da mente talvez seja o fato de perceber o cinema como meio privilegiado de pesquisar e expressar a produção inconsciente de imagens – e de criaturas. O filme como território em que ganham forma as pulsões mais profundas e desconhecidas do indivíduo e da coletividade. Menos uma “fábrica de sonhos” do que uma “vitrine de sonhos”.
Um dos momentos mais fortes do documentário é aquele que recupera – e repensa – as primeiras imagens do primeiro longa do diretor, Cinema, aspirinas e urubus: na tela embranquecida pela luz estourada do sertão, vão surgindo pouco a pouco os traços da paisagem esturricada e dos dois homens que a percorrem de caminhão. É como o mágico surgimento da imagem no papel fotográfico durante o processo de revelação, e é também uma analogia com a emergência das imagens no sonho.
O cinema como revelação, em suma. Do quê, não sabemos muito bem. Se há uma conclusão a que esse belo documentário nos conduz é a de que não haverá futuro para o conhecimento humano se a ciência ocidental, eurocêntrica, não se abrir para os saberes e experiências de outras culturas, de outras formas de encarar os mistérios da existência. E a atitude ao mesmo tempo modesta e ambiciosa de Marcelo Gomes parece expressar em cinema o que Paulinho da Viola disse em música: “As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”.
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