Vietnã, 50: A coragem anticolonial das mulheres

Elas foram cruciais na resistência à invasão dos EUA. Traçaram táticas para proteger vilas. Forneceram ajuda médica aos feridos. E criaram seus próprios pelotões de guerrilha. Leia o quarto capítulo de nossa série sobre a grande vitória sobre o imperialismo

Foto: Bộ Quốc phòng, via Wikimedia Commons
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Este é o quarto de uma série de seis texto sobre a Guerra do Vietnã (ou Guerra Americana, como é chamada pelos vietnamitas) e a Queda de Saigon, que marcou a reunificação do Vietnã do Norte e do Sul. Contém imagens fortes de crimes de guerra. Leia os outros textos aqui

Capítulo 4 – Heroísmo, resiliência, honestidade e responsabilidade: o nevrálgico papel feminino nas guerras de independência [1]

A batalha pela reunificação do Vietnã (1945-1975) não pode ser compreendida sem o sacrifício silencioso de mulheres que perderam seus filhos e maridos nas guerras de resistência [2]. Após a fundação do Partido Comunista do Vietnã (PCV), em 1930, surgiram muitas organizações lideradas por mulheres, como a Associação das Mulheres pela Libertação, Associação das Mulheres pela Democracia, Associação das Mulheres Anti-imperialistas, Associação das Mulheres pela Segurança Nacional e União das Mulheres Vietnamitas, que acabou se tornando a principal delas. Desse modo, a presença feminina está intimamente ligada à Revolução Vietnamita e ao desenvolvimento da nação.

Com o intuito de representar e proteger os direitos legais e os interesses das mulheres, incluindo a promoção da igualdade de gênero, a União das Mulheres Vietnamitas, fundada em 20 de outubro de 1930, está organizada de acordo com os quatro níveis governamentais: nacional, provincial, distrital e local (ou comunal). De sua fundação até 1975, desempenhou papel fundamental para a unidade feminina na luta contra o domínio estrangeiro e pela independência nacional, sobretudo ao criar e difundir, no norte do país, o chamado “Movimento das Três Responsabilidades”, ancorado na produção, combate e família como suporte à luta no sul (foto 1). Durante essas décadas, seu desempenho focou na busca pela identidade nacional, baseada nos valores do heroísmo, resiliência, honestidade e responsabilidade – seja pegando em armas, zelando pela família ou empreendendo trabalhos voluntários na produção manufatureira/agrícola ou na reconstrução de estradas e pontes destruídas por bombardeios inimigos.

Foto 1 – Mulheres alistando-se no “Movimento das Três Responsabilidades”

Fonte: Museu da Mulher Vietnamita (16 jan. 2024)

Durante a guerra de independência, a força revolucionária feminina amadureceu ao nível de organização militar (fotos 2-6). Mulheres comunistas desempenharam papel fundamental na fundação de bases revolucionárias, incrementando a força militar feminina e a organização da União. Mulheres foram presas, encarceradas e mortas por desafiar o inimigo e lutar com as forças revolucionárias e o PCV. Na Revolução de Agosto de 1945, lideraram movimentos para derrubar autoridades locais. No ano seguinte, após nova invasão francesa, muitas mulheres decidiram atuar diretamente nas guerrilhas, auxiliando na distribuição do material de guerra, protegendo os revolucionários, mobilizando recursos ou atuando como agentes de ligação.

Fotos 2-6 – Participação feminina no campo de batalha

Fonte: Museu da Mulher Vietnamita (16 jan. 2024)

As guerrilhas podem ser entendidas como forças militares populares fundadas em vilas de todo o país para se juntar ao esforço de guerra. Cerca de 980 mil mulheres fizeram parte dessa categoria, sendo que Hoang Ngan registrou o maior contingente de mulheres (7.365). Este grupo lutou em 680 batalhas e conseguiu destruir 13 postos inimigos e 16 quilômetros de linhas telefônicas, além de matar e prender 383 soldados. Doze guerrilheiras foram agraciadas com o título de heroínas, incluindo Ho Thi Bi, Nguyen Thi Chien, Mac Thi Buoi e Vo Thi Sau.

As mulheres contribuíram na guerra de resistência com várias atividades, como assistência médica a soldados feridos, fornecimento de material às tropas e requisições financeiras e alimentícias. Nas zonas central e norte do país, por exemplo, entre 1951 e 1954 as mulheres mobilizaram a coleta de 1,57 milhão de toneladas de arroz e de 37,7 milhões de metros de tecido, um esforço extremamente valioso para a manutenção dos campos de batalha. Nesse mesmo período, à medida que as zonas iam sendo libertadas do inimigo, as mulheres entravam para transportar e distribuir armas e comida.

Após a recusa do Vietnã do Sul pela reunificação, descumprindo o Acordo de Genebra de 1954, as mulheres se sobressaíram, nas vilas e cidades sul vietnamitas, na liderança a favor dos interesses do norte. Além das atividades já desempenhadas na resistência contra o imperialismo francês, nessa nova etapa a força feminina também ajudou de forma decisiva como lideranças políticas e com táticas engenhosas para esconder e proteger soldados revolucionários. Além disso, muitas peças de propaganda eram alusivas à força feminina (fotos 6-9). Pela sua bravura, o Movimento Mulheres Sul Vietnamitas recebeu o título Ordem Nacional de Primeira Classe, representado diretamente por 200 mulheres e 56 unidades femininas nomeadas “heroínas das forças armadas populares”. E cerca de 30 mil sul vietnamitas foram honradas como “Mães heroicas do Vietnã”.

Fotos 7-10 – Propagandas estampadas com figuras femininas

Fonte: Museu da Mulher Vietnamita (16 jan. 2024)

“Heróica, indomável, honesta e responsável” (1972)

“Ser determinada para prevenir ataques aéreos americanos” (1972)

“Sempre vigilante” (1972)

“Mecanização da agricultura e cultivo intensivo incrementam a produção agrícola” (1973)

No Sul, cerca de 40% da força empregada nas guerrilhas era feminina, com mais de 50 esquadrões e pelotões exclusivamente compostos por mulheres. Os grupos de Binh Duc e My Tho, por exemplo, derrubaram 12 aviões, destruíram três equipamentos de artilharia pesada e um armazém de combustível e mataram 100 soldados estadunidenses em 8 de março de 1969. No ano anterior, uma milícia ofensiva feminina com 11 membros derrotou um batalhão de fuzileiros navais, matando mais de uma centena de soldados. Nas revoltas de 1960, cerca de um milhão de atos femininos resultaram na derrota de 20 mil soldados inimigos e na libertação de 895 comunas. Até 1965, cerca de 20 milhões de mulheres participaram de ações políticas e batalhas militares. Nas zonas rurais, lutaram contra o recrutamento nas chamadas “aldeias estratégicas” e o uso indiscriminado de morteiros e armas químicas. Também requisitaram indenizações. Nas áreas urbanas, mulheres estudantes, intelectuais, trabalhadoras, empresárias e freiras organizaram encontros pela paz, direitos civis, dignidade das mulheres e valores tradicionais.

O regime de Saigon estabeleceu 176 prisões distritais e 44 provinciais. Thu Duc serviu para presas políticas. Em Con Dao, as mulheres ficavam acorrentadas em “jaulas de tigre”, forçadas a comer, dormir e evacuar/urinar no mesmo lugar. Também eram agredidas, eletrocutadas e queimadas. Apesar de tudo, sempre reivindicavam melhores condições prisionais. Em 1969, pediram permissão para vivenciar o luto pela morte de Ho Chi Minh e, após o Acordo de Paris, de 1973, lutaram por sua liberação.

Nas frentes de batalha ou nas zonas liberadas, os hospitais militares contavam com muitas médicas e enfermeiras, cujo papel não se limitava apenas aos primeiros-socorros, remoção e enfermaria, mas incluía, frequentemente, a realização de cirurgias complexas. Ademais, muitas vezes compartilhavam a sua ração alimentar com os feridos em condições de extrema dificuldade – seja em tendas improvisadas, seja em trincheiras. Nas zonas ocupadas, trabalhavam no subsolo, levando instrumentos médicos e remédios às tropas revolucionárias.

Em reconhecimento ao relevante e fundamental papel feminino nas guerras de libertação nacional, em 24 de setembro de 1994 o Comitê Permanente da Assembleia Nacional instituiu o mérito de “Mães heroicas do Vietnã” às mulheres que perderam mais de dois filhos, ou seu filho único, ou seu marido, ou a sua própria vida (foto 11). Em dezembro de 2008, cerca de 50 mil vietnamitas receberam a honraria, muitas delas de forma póstuma, além da concessão de pensões às suas respectivas famílias.

Foto 11 – Mães dando adeus aos filhos que partiam para o campo de batalha (1966)

Fonte: Museu da Mulher Vietnamita (16 jan. 2024)

Após a reunificação do país, em 1975, a União das Mulheres Vietnamitas tem constantemente inovado e diversificado as suas atividades, seja pela elaboração de movimentos para promover as conquistas femininas, seja na formulação de políticas que possam auxiliar as mulheres e implementar programas nacionais com foco na equidade de gênero. A instituição, que conta com cerca de 18 mil membros (dado de 2020), está comprometida em incrementar a capacidade, qualificação e renda das mulheres de todos os níveis sociais, contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento do país.


Notas:

[1] Salvo informação em contrário, os dados quantitativos expostos neste capítulo foram extraídos do Museu da Mulher Vietnamita (16 jan. 2024).

[2] A tradição da participação feminina na defesa do Vietnã vem de longa data. No ano 40 D.C., as irmãs Trung lideraram a batalha contra os Han, da China. Trung Trac se autoproclamou rainha e tornou Me Linh a capital. No século III, a jovem Trieu Thi Trinh, com 23 anos, lutou contra a opressão dos Wu, também da China. No século X, a imperatriz Duong Van Nga sacrificou a sua linhagem no poder em prol do interesse nacional e entregou o poder ao general Le Hoan, que fundou a Dinastia Le e derrotou os Song em 981. Mais tarde, a rainha Y Lan projetou o desenvolvimento de plantações de amoreiras para a fabricação de seda e libertou as mulheres da prática de harém. Em 1593, Nguyen Thi Due participou dos exames reais utilizando uma falsa identidade masculina. Tornou-se a primeira mulher laureada com o título de doutora. Em 1789, a general Bui Ti Xuan, comandante-em-chefe e esposa do monarca Quang Trung, brecou a invasão Qing.

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