Contra internações involuntárias, desfronteirizar o mundo

Hoje, fronteiras não se impõem apenas em países, mas servem para separar e oprimir populações periféricas, por meio de técnicas neocoloniais de controle. Essa é uma chave possível para explicar restrições aos direitos de pessoas com transtornos mentais

Prefeitura e governo de São Paulo instalam grades na “Cracolândia” e delimitam espaço de usuários de drogas. Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil
.

No seu livro “Brutalismo”, n-1 edições (2023), o filósofo camaronês Achille Mbembe usa o termo “fronteirização do mundo” para se referir a um sistema de segregação, limites, interdição de direitos de ir e vir, impostos aos grupos periféricos, migrantes, indígena, negros, e todo grupamento divergente, ou que são considerados excedentes humanos, e portanto, descartáveis do sistema global de “capital humano”, e produção de riquezas. Trata-se, portanto, antes de tudo de técnicas neocoloniais de dominação e controle sobre pessoas e grupos sociais.

“A Fronteira não é mais apenas uma linha de demarcação que separa distintas entidades soberanas. Como um dispositivo ontológico, ela agora opera por si só e em si mesma, anônima e impessoal, com suas próprias leis. Ela é cada vez mais o nome próprio da violência organizada que sustenta o capitalismo contemporâneo e a ordem do nosso mundo em geral” (Mbembe, 2023, pág. 75), age contra migrantes, a ancestralidade indígena, pessoas em situação de rua, corpos divergentes da comunidade LGBTQIAP+, crianças abandonadas ou a população confinada em Gaza, como símbolo de todos os que vivem no extremo da sobrevivência.

O problema atual não é a mobilidade das pessoas, seu trânsito entre países, continentes, territórios. A questão é a fronteirização, criada pelos critérios atuais do neoliberalismo, que estabeleceu a mobilidade extensiva para alguns sob o discurso da liberdade extrema. Sob a narrativa da falsa segurança, estabeleceu limites e sistemas opressivos de controle das populações periféricas, não desejáveis, excedentes. Um modo de exclusão da diferença. Assim são construídas as barreiras de separação, interdição, apartheids contemporâneos que são construídos cotidianamente no espaço urbano.

É neste contexto que têm sido adotadas, por vários estados e municípios do país, políticas de internação involuntária e compulsória a usuários de drogas, com forte impacto sobre as pessoas em situação de rua. É o caso do estado do Rio de Janeiro e alguns municípios do estado, que estabeleceram regras para a internação involuntária (sem consentimento do paciente) e compulsória (determinada por ordem judicial) de pessoas com transtornos mentais, em uso de drogas, em situação de risco.

De acordo com o Ministério Público do estado do Rio de Janeiro, estas normas instituem políticas denominadas de “acolhimento” a pessoas com transtornos mentais e/ou em uso abusivo de álcool e outras drogas. Mas, na verdade, propõem um “acolhimento sem consentimento” como prática central, o que, na realidade, equivale à internação psiquiátrica compulsória. “Especial atenção é dada ao impacto da medida sobre a população em situação de rua, grupo social especialmente vulnerável e frequentemente alvo de políticas discriminatórias. As instituições alertam que, ao propor internações forçadas sob o pretexto de cuidado, a legislação ignora a autonomia dos sujeitos e reforça a estigmatização, tratando essas pessoas como problemas a serem removidos do espaço público” (Nota Técnica do MPF/RJ, 5.5.2025).

A internação compulsória é uma medida que tem tudo para se transformar em criminalização da pobreza, grupos e pessoas que organizam a sua vida fora do sistema de acumulação, legitimado pelo projeto neoliberal como “capital humano”. É nesta dinâmica que são produzidos os “corpos-fronteiras”, aqueles que andam na borda do mundo, e por isto são os que estão expostos aos limites. “O corpo-fronteira é, em sua essência, um corpo de raça, o corpo de uma classe racial sujeita a um cálculo intensivo de um novo tipo. Nele, externalização e internacionalização se unem” (Mbembe, 2023).

A fronteira é uma técnica de governo colonial, feita para dominar e controlar os corpos e grupos conflagrados contra os sistemas de controle, seja por repressão ou por processos de subjetivação nos termos do projeto neoliberal, que aposta no sujeito da concorrência. O colonialismo se instaura em corpos sedentários, territórios fixos, apartheids. Já o corpo-fronteira tensiona os limites no seu nomadismo e luta por um mundo libertário, que caiba todos os mundos, e os territórios sejam livres de barreiras. Ele é circulante, tensiona as fronteiras, e assim trava uma guerra antirracista, contracolonial e por isto, anticapitalista.

Lutar contra as medidas restritivas de direitos de pessoas que vivem nas ruas, e outros grupamentos dissidentes, é o mesmo que travar uma guerra anticolonial e antirracista. A “desfronteirização” do mundo servirá para romper os grilhões que perseveram no sistema de opressão das pessoas e grupos sociais, entre eles os que são alvo de normativas com as que estabelecem a internação involuntária ou compulsória.

Niterói, 06.05.2025


*Mbembe, Achille. Brutalismo. N-1 edições: São Paulo, 2013.

* Nota Técnica do MPF/RJ, 5.5.2025 – https://surl.li/oiexdc

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também: