Ucrânia: Zelensky já contempla a derrota
Crescem as divisões internas em seu governo. Trump busca um acordo mais amplo com a Rússia – mesmo sem poder afastá-la de Pequim. A Europa devaneia com um poderio militar de fantasia. Restam poucas alternativas ao aventureiro de Kiev
Publicado 29/04/2025 às 19:18 - Atualizado 29/04/2025 às 19:24

Por Rafael Poch, no CTXT | Tradução: Antonio Martins
Na sexta-feira, 25 de abril, um atentado com carro-bomba matou, nos arredores de Moscou, outro general russo, Yaroslav Moskalik, vice-chefe da Diretoria Operacional Principal do Estado-Maior do exército. Os atentados ucranianos contra militares e civis na Rússia são frequentes. Em dezembro, caiu o general Igor Kirilov e, antes dele, dois jornalistas russos e um deputado ucraniano refugiado em Moscou, entre outros. Segundo o general Leonid Reshetnikov, aposentado do serviço de inteligência exterior, esses atentados são cometidos “sob assessoramento direto” dos serviços secretos britânicos. Seu objetivo atual é sabotar as negociações para um acordo de paz entre o Kremlin e Washington.
Poucas horas após o atentado contra Moskalik, aterrissava em Moscou o avião do enviado especial do presidente Trump, Steve Witkoff. Era a quarta visita cordial de Witkoff à capital russa. Desta vez, Putin concordou em manter negociações diretas com a Ucrânia e, no dia seguinte, anunciou que o exército russo havia terminado de expulsar as forças ucranianas da província russa de Kursk, onde haviam penetrado em agosto — em uma operação com mais sentido de imagem que militar, e que foi vítima de considerável fracasso e grande quantidade de morte nas melhores unidades militares ucranianas.
Essas duas notícias — o aparente avanço nas negociações e o desastre militar em Kursk — pintam um quadro angustiante para o governo de Kiev, cujas divisões, tensões e rivalidades internas aumentam manifestamente, como se depreende do simples acompanhamento da imprensa local.ação mais simbólica do que militar, que terminou em fracasso considerável e com alta mortalidade entre as melhores unidades ucranianas.
Essas duas notícias — o aparente avanço nas negociações e o desastre militar em Kursk — pintam um quadro angustiante para o governo de Kiev, cujas divisões, tensões e rivalidades internas aumentam manifestamente, como se depreende do simples acompanhamento da imprensa local.
O chefe da inteligência militar, Kiril Budanov, um homem da CIA, está em conflito com o chefe do gabinete presidencial e braço direito de Zelenski, Andri Yermak. Há rumores sobre a demissão de Budanov, que em janeiro declarou, numa reunião parlamentar fechada que, “se não houver negociações de paz em breve, o país irá para o abismo”. O líder da bancada presidencial no parlamento, David Arajamiya, também está em rota de colisão com a administração, que quer removê-lo do cargo. Foi Arajamiya quem confirmou que, nas negociações de março/abril de 2022 em Istambul, já havia um acordo de paz pronto, que não avançou devido à pressão ocidental. O ex-comandante do exército Valeri Zaluzhni, destituído por Zelenski e enviado como embaixador a Londres por ser mais popular que ele, nutre ambições políticas e mantém contato com o ex-presidente Petro Poroshenko, outro rival de Zelenski que sofreu represálias. A postura negativa de Trump em relação a Zelenski — e suas sugestões diretas de que o presidente ucraniano “não é capaz de negociar a paz” — só reavivam essas tensões e disputas pelo poder dentro do regime de Kiev. A situação piora quando a narrativa ocidental sobre a guerra — “uma agressão russa não provocada, liderada por uma espécie de novo Hitler, na qual a OTAN não tem qualquer envolvimento” — desmorona-se de forma evidente.
Por um lado, o chefe da OTAN (ou seja, o presidente dos EUA) reconhece grande parte do argumento russo; por outro, a imprensa norte-americana mais belicista (como os recentes relatos do New York Times) não pára de detalhar o envolvimento da aliança na Ucrânia desde 2014, muito antes da invasão. Ao fazê-lo desmente, com riqueza de detalhes, a afirmação canônica de 2022-2024 de que “a OTAN não está em guerra com a Rússia” (como já disseram o ex-secretário de Defesa Lloyd Austin e muitos outros).
Trump admite que a política externa norte-americana das últimas três décadas fracassou e está introduzindo mudanças significativas. Como observa o analista político russo Dmitri Trenin, os EUA passaram de “resistir à emergência de uma ordem multipolar” para “tentar dominá-la sob novas bases”.
Isso desorientou completamente os aliados europeus e o governo ucraniano, que sequer estão dispostos a admitir que a expansão da OTAN representa um problema para a Rússia. Em vez de aceitar que a única “garantia de segurança” para a Ucrânia seria restaurar sua neutralidade — com a qual a Rússia conviveu desde o colapso da URSS —, a União Europeia prefere ameaçar com um rearmamento e a mobilização de exércitos que não tem, contra uma ameaça fantasmagórica de invasão russa à Europa — sobre a qual não há o menor indício, vontade ou possibilidade militar em Moscou.
A elite europeia está dividida quanto ao grau de adesão a essa narrativa. Os “austro-húngaros” (Hungria, Eslováquia e, em breve, talvez a República Checa) rejeitam a retórica belicista. A Europa mediterrânea não acredita nela, mas aceita o rearmamento por pura impotência e disciplina. A França, onde não se sabe se o próximo presidente será uma Le Pen ou um Villepin, navega numa posição intermediária. Já os bálticos, poloneses e escandinavos parecem decididos a enfrentar a Rússia militarmente numa “guerra do Norte” que abra uma segunda frente contra Moscou — com a primeira-ministra dinamarquesa Mette Frederiksen, diretamente ameaçada por Trump na Groenlândia, declarando que “a paz na Ucrânia é mais perigosa que a guerra atual”…
À Europa custa entender que já não é dona do mundo, que perdeu sua antiga preponderância. Por razões industriais e políticas, o rearmamento europeu não passa de um blefe. A ideia de criar uma economia de guerra na Europa — esse “continente da paz” que gerou as maiores tragédias dos últimos séculos, do holocausto colonial às duas guerras mundiais — é uma quimera sem remédio. O economista Michael Hudson tem razão ao dizer que “os economistas e cientistas políticos europeus deveriam ser substituídos por psicoterapeutas“. E em nenhum lugar isso é mais verdadeiro do que na Alemanha.
Por mais que o esquecimento tenha camuflado a irracionalidade europeia, uma questão em breve irá se impor. Como países como França, Holanda, Dinamarca ou Itália reagirão quando as Forças Armadas da Alemanha (o Bundeswehr) se tornarem, em alguns anos, o maior exército da Europa (talvez sob um futuro governo de coalizão entre a ultradireita da Alternativa para a Alemanha (AfD) e a CDU, de direita)?
A classe política alemã soltou os freios e bate recordes de irracionalidade. Não tem mais complexos. A nova geração transferiu a culpa histórica para Putin, transformado em novo Hitler, enquanto o país gira à direita, reabilita o militarismo e restringe liberdades — criminalizando a solidariedade com Gaza ou o pacifismo. Com uma economia em recessão, a Alemanha mergulha numa nova patologia macartista que apaga qualquer confronto crítico com o passado (Vergangenheitsbewältigung) e a substitui pela russofobia, canalizando para esta sua energia agressiva. Essa quinta Alemanha, aborto da reunificação, caminha direto para o colapso.
As confusas tentativas de Trump para influir nos rumos da globalização, têm foco na contenção da China e incluem certa aproximação com a Rússia. Claro, a relação Moscou-Pequim não será rompida (esta tentativa chega com 10 ou 20 anos de atraso…). Mas o desequilíbrio econômico e comercial entre Rússia e China abre algum espaço de manobra. O mercado chinês representa 36% das importações russas e 30% das exportações, mas a Rússia corresponde a apenas 4% do comércio exterior chinês (dados de 2023). A Rússia tem interesse em diversificar, e os EUA são um grande mercado alternativo. Para Washington, a Rússia também é relevante no Oriente Médio. Trump importa-se mais com o Irã — com quem negocia um acordo de desnuclearização — do que com a Ucrânia…
Quando as delegações russa e americana se reúnem, não falam apenas (ou talvez nem principalmente) da Ucrânia. Moscou não vai descartar seus acordos com Irã e China, mas, em troca do reconhecimento norte-americano de que a Rússia tem interesses na Europa — principalmente o de que a Ucrânia não se torne uma ameaça à sua segurança após a guerra —, pode flexibilizar sua postura em questões que interessam aos Estados Unidos.
Tudo está contra Zelenski. Quanto antes ele o admitir, menores serão os danos e o banho de sangue. Mas o presidente ucraniano enfrenta um dilema: qualquer decisão realista será vista como “traição” por sua poderosa extrema-direita militar. Se, ao contrário, mantiver-se inflexível, incentivado por seus aliados europeus iludidos, arrisca-se a um abandono militar americano. E sem os satélites, informações e comunicações fornecidos pelos EUA — que os europeus não podem substituir —, a frente ucraniana provavelmente entraria em colapso em pouco quase de imediato.
Em março, numa reunião fechada com a principal organização de empresários e industriais russos, Putin afirmou que a Rússia não pretende tomar “Odessa e outros territórios ucranianos”, desde que as negociações de paz reconheçam a Crimeia, o Donetsk, Lugansk e outras regiões (Kherson e Zaporíjia) como parte da Rússia. Claro, em um ou dois anos, a guinada de Trump pode fracassar e causar um caos econômico interno nos EUA com sua política de tarifas contra todos. Mas, até lá, o exército russo pode já ter chegado a Odessa, transformando o que restar da Ucrânia num país irrelevante e sem saída para o mar.
A guerra na Ucrânia pode terminar se se chegar a um acordo, mas também pode se transformar num conflito mais europeu e menos euroatlântico. Vivemos tempos incertos para todos, mas alguns estão em situação pior que outros.
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