Como valorizar o trabalho invisível de cuidadores

Ex-coordenador do Dieese reflete sobre o alcance da Política Nacional de Cuidados. A quem se aplica? Quais seus objetivos? Conseguirá redistribuir uma função que hoje é tão concentrada em mulheres negras – e garantir direitos a todos que o exercem?

Créditos: dglimages/Adobe Stock
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O Brasil instituiu recentemente a “Política Nacional de Cuidados” (PNC) através da Lei 15.069/2024, que tem por objetivo garantir o direito ao cuidado e promover a corresponsabilização social entre Estado, família, setor privado e sociedade civil. Trata-se de um marco significativo na valorização e reconhecimento das atividades de cuidados no país, buscando equilibrar responsabilidades e assegurar direitos, fundados nos princípios de trabalho decente conforme define a OIT – Organização Internacional do Trabalho, tanto para cuidadores remunerados quanto para não remunerados.

Quem são as cuidadoras/es?

Cerca de 47,5 milhões de pessoas estão envolvidas em atividades de cuidados no país, remuneradas e, a maioria, não remunerada, sendo que 78% são mulheres e 70% mulheres negras, com baixa escolaridade e maior frequência de idade entre 45 e 59 anos, segundo revelou a “Pesquisa Nacional sobre Trabalho Doméstico e de Cuidados Remunerados”, lançada em 2025 pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA) e o Ministério da Igualdade Racial.

A informalidade atinge metade dos ocupados cujos vínculos são estabelecidos por meio de acordos verbais e trabalho autônomo, muitos sem proteção. A outra metade tem registro em carteira de trabalho, o que garante o direito à proteção trabalhista e previdenciária. A maioria das/os trabalhadoras/es recebe entre 1 e 1,5 salário mínimo por mês e as ocupações remuneradas estão concentradas em categorias como cuidadoras/es de pessoas idosas e com deficiência. Quem exerce essa função são, em sua maioria, trabalhadoras domésticas, professoras da educação infantil e profissionais da enfermagem.

O trabalho de cuidados é predominantemente realizado por mulheres que dedicam em média 21,4 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado. Os homens dedicam 11 horas semanais (IBGE, PNAD Contínua).

Os objetivos da PNC

A Política Nacional de Cuidados está estruturada a partir dos seguintes objetivos permanentes:

  • Reconhecer o cuidado como um direito universal, de quem cuida e de quem precisa ser cuidado.
  • Promover a corresponsabilidade entre Estado, famílias, setor privado e sociedade civil.
  • Valorizar o trabalho de cuidado, remunerado ou não, com foco na superação das desigualdades de gênero, raça, classe, etnia e geração.
  • Ampliar e qualificar a oferta de serviços de cuidado, especialmente para crianças, idosos, pessoas com deficiência e pessoas dependentes.
  • Estimular a autonomia e a inclusão social das pessoas que necessitam de cuidados.

A Política Nacional de Cuidados orienta-se pelo princípio1 da universalidade do cuidado, portanto, como direito de todos. A sua implementação e execução busca a articulação das políticas de educação, saúde, assistência social, trabalho, entre outras, com equidade no acesso, bem como visa garantir a proteção social aos/às cuidadores/as, especialmente mulheres, que hoje realizam majoritariamente esse trabalho de forma não remunerada.

O PNC indica que a estratégia de implementação se desenvolverá com:

  • A criação do “Sistema Nacional de Cuidados”, para articular as ações dos entes federativos (União, Estados e Municípios) e diferentes áreas governamentais.
  • A ampliação da oferta de serviços públicos de cuidado, como creches, centros de convivência de idosos e serviços de atenção domiciliar.
  • O reconhecimento e formalização do trabalho de cuidado, com direitos trabalhistas e previdenciários para quem cuida.
  • Capacitação e valorização dos profissionais do cuidado.
  • Produção de dados e indicadores sobre a organização social do cuidado, a divisão sexual do trabalho e os impactos nas desigualdades sociais.
  • A realização de campanhas educativas para conscientizar sobre a importância e a valorização do cuidado, incentivando a divisão igualitária das tarefas de cuidado entre homens e mulheres.

Essas diretrizes serão operacionalizadas por meio do Plano Nacional de Cuidados, o principal instrumento de planejamento e execução das ações da política, com metas, prazos e avaliação. Serão criados mecanismos de monitoramento e participação social, como conselhos e conferências.

A visão da Organização Internacional do Trabalho sobre cuidados

A OIT enfatiza a importância das políticas de cuidados como fundamentais para promover a igualdade de gênero, assegurar direitos trabalhistas e impulsionar o desenvolvimento econômico sustentável. Em seus relatórios e iniciativas, a OIT destaca a necessidade de investimentos significativos em sistemas de cuidados para enfrentar desafios globais relacionados ao trabalho e ao bem-estar social.

Destaca ainda a necessidade de os países investirem em serviços de cuidados e em licenças remuneradas, como maternidade, paternidade e parentais. Um serviço muito interessante que a OIT lançou é o “Portal Mundial de Políticas de Cuidados”, através do qual é possível analisar e comparar políticas e serviços nacionais relacionados a licenças de cuidado em mais de 180 países.

Outro serviço muito interessante, também disponibilizado gratuitamente pela OIT, é o “Simulador de Investimento em Política Pública de Assistência” instrumento que ajuda a calcular os requisitos de investimento, benefícios de emprego e impacto na igualdade de gênero de diferentes políticas de assistência. Segundo a OIT, o Simulador é a maior ferramenta de modelagem de política de atendimento on-line disponível, reunindo dados de mais de 80 países e construído sobre mais de 180 indicadores estatísticos.

O Simulador pode ajudar a criar pacotes de investimento sob medida relacionados a quatro políticas de assistência: licença remunerada relacionada à assistência à infância (maternidade, paternidade e parental), pausas para amamentação, serviços de cuidados e educação na primeira infância e serviços de cuidados a longo prazo.

O desafio

Reafirma-se com a Política Nacional de Cuidados uma agenda que destaca a necessidade de redistribuir o trabalho de cuidado, que hoje recai de forma desproporcional sobre as mulheres, sobretudo negras e pobres. Um dos desafios é o de qualificar esse trabalho, com boa remuneração e protegido com os direitos trabalhistas, previdenciários e sindicais. Outro desafio é o de estruturar políticas que promovam serviços públicos de cuidado como creches, centros de dia, serviços domiciliares, criando assim milhares de empregos de interesse social.

Abre-se um campo para a atuação sindical avançar naquilo que já vem sendo construído em termos de organização, pauta e formas de luta. A inovação sindical deverá construir respostas organizativas que agreguem essas trabalhadoras, muitas ocupadas e dispersas em unidades familiares; deverá elaborar propostas para a implementação de políticas públicas vocacionadas para a geração de empregos de interesse social e público; terá que aprimorar a pauta trabalhista para responder aos problemas e anseios específicos dessas trabalhadoras e, por fim, colocar na agenda dos sindicatos a reflexão sobre a partilha de responsabilidades e tarefas de cuidados.


1 Para acessar o marco conceitual do PNC: https://www.gov.br/participamaisbrasil/marco-conceitual-da-politica-nacional-de-cuidados-do-brasil

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