Maria Antônia: A história que ainda queima
Confronto entre estudantes da USP e Mackenzie, em 1968, escancarou um país cindido. Em tempos de debate sobre ditadura, filme mostra a História em movimento, para além de slogans. A política não como certeza, mas processo – doloroso, contraditório e cheio de recuos
Publicado 23/04/2025 às 17:58

Há dias que duram para sempre. E há filmes que não apenas os recriam, mas os ressuscitam como feridas abertas que recusam a cicatrização. A Batalha da Rua Maria Antônia, dirigido por Vera Egito, não é uma simples reconstrução de um episódio histórico — é a encenação sensível, por vezes brutal, do instante em que a juventude brasileira viu o horizonte ruir diante de seus olhos.
A rua Maria Antônia, em 2 de outubro de 1968, não era apenas o ponto de encontro entre duas instituições vizinhas — a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e a Universidade Mackenzie — mas o palco tenso de um país cindido. Um país em estado de combustão, onde se chocavam, pedra a pedra, as promessas traídas da modernização e os projetos autoritários de um Estado militarizado. A rua, estreita, tornou-se símbolo de uma encruzilhada nacional: de um lado, estudantes que vislumbravam um outro mundo possível; de outro, o braço estudantil do autoritarismo, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que já operava como milícia repressiva, informal, mas afinada com os silêncios impostos pelo regime.
Mas para compreender verdadeiramente o peso dessa batalha, é preciso voltar ao pano de fundo que a antecede1. O golpe militar de 1964, apoiado por setores do empresariado e pelo governo dos Estados Unidos, foi, em grande medida, uma resposta ao avanço das lutas operárias e populares e à queda da taxa de mais-valor nos países periféricos. A crescente pressão por reformas — agrária, urbana, universitária — encontrou pela frente um Estado que se aliava ao capital transnacional e nacional numa tríplice aliança para sufocar qualquer sinal de transformação. A União Nacional dos Estudantes (UNE), maior entidade representativa da juventude universitária, foi uma das primeiras a serem atacadas: sua sede foi incendiada no dia do golpe, seus líderes perseguidos e sua existência institucional extinta pela Lei Suplicy de Lacerda (Lei 4.464/64). Mesmo assim, a entidade resistiu — na semiclandestinidade, nas ruas, nos violões.
É esse espírito que o filme de Vera Egito encarna. O longa se passa nas vinte e quatro horas que antecedem a invasão do prédio da Filosofia da USP pela polícia militar. Perto de seu desfecho, os estudantes sabiam que estavam cercados. Sabiam que seriam presos. Sabiam que a batalha estava perdida no plano físico. E, ainda assim, resistiram. Filmado em preto e branco, cada quadro parece um negativo fotográfico de uma memória que o país se recusa a revelar por completo. A ausência de cor não é um artifício estético vazio; é uma moldura para a atmosfera suspensa do medo, do engajamento hesitante, das escolhas que custam muito mais do que a própria juventude pode prever. O preto e branco, aqui, não é a ausência: é densidade.
A trilha sonora é esparsa, quase ausente, como se o som também aguardasse a respiração dos personagens para poder existir. Mas quando emerge — como na cena em que uma estudante canta Roda Viva, de Chico Buarque, dedilhando seu violão no compasso da angústia — ela explode como um grito íntimo, doloroso e coletivo. É nesse instante que o filme deixa de ser apenas histórico e se torna elegia. Aqueles jovens, cercados pela iminência da repressão, sabiam que o tempo se partia ali, naquela noite. Que o amanhã viria com o peso das botas e das grades. E, ainda assim, cantavam.
O ano de 1968, para o movimento estudantil, foi o auge da mobilização2. Da Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro ao Massacre da Praia Vermelha, passando pelos enfrentamentos na UnB, em Minas e em São Paulo, os estudantes transformaram o corpo em trincheira, a universidade em barricada, a canção em denúncia. Mas foi também o ano do recrudescimento final. Em dezembro, viria o AI-5, e com ele o mergulho nos anos de chumbo. O Congresso da UNE, realizado em Ibiúna, em outubro, marcaria o fim de uma era: todos os seus representantes foram presos, catalogados e fichados pelo DOPS.
Talvez o maior mérito do filme seja esse: nos fazer compreender a ditadura não apenas por suas estatísticas — os mortos, os desaparecidos, os encarcerados — mas por suas hesitações. Por seus silêncios. Por suas subjetividades rasgadas. Vera Egito nos apresenta personagens que não nascem prontos, que não marcham como slogans. Eles erram, duvidam, contradizem a si mesmos. Lilian, a protagonista, é um espelho do espectador: atravessa o filme assustada, vacilante, até que a realidade a empurre para o campo da decisão. Sua politização é um processo, e não uma certeza. Como toda tomada de consciência verdadeira, ela é dolorosa, gradual, cheia de recuos.
A batalha da Maria Antônia não é apenas o confronto físico entre estudantes da USP e do Mackenzie, ainda que a morte de José Carlos Guimarães — atingido por um tiro vindo do prédio do Mackenzie — seja a materialização mais crua da violência daquele dia. A verdadeira batalha se desenrola no plano simbólico, nos corpos em confronto, nos olhares que se desviam, nos professores que finalmente entendem o que está em jogo, nos estudantes que se dão conta de que a ditadura não será vencida com panfletos e frases de efeito. A batalha se desenrola no cotidiano sequestrado, na normalidade interrompida. E é isso que o filme captura com precisão sensível: o instante da ruptura.
Ao fim, a invasão da faculdade pela polícia militar é mostrada não como catarse, mas como desfecho inevitável. Os estudantes são presos, fichados, jogados na engrenagem que os vê como ameaças à ordem. Ali termina o sonho da “convivência” institucional. A partir dali, virão os anos de chumbo — de tortura, desaparecimentos, censura, silêncio.
Mas se o filme termina, a história não. Vera Egito nos lembra, com sua câmera sóbria e atenta, que a batalha da Maria Antônia não pertence ao passado. Que os fantasmas da ditadura, ainda vivos, rondam as esquinas da democracia brasileira, testando seus limites, sabotando suas bases que já nasceram fragilizadas e limitadas. Trata-se, afinal, de uma democracia burguesa — um regime político que, apesar de sua aparência formal de liberdade e direitos, se funda na manutenção da ordem do capital e na reprodução das desigualdades estruturais. Sob uma leitura marxista, os limites dessa democracia não são apenas históricos, mas intransponíveis: não se trata de uma democracia para todos, mas da forma política por excelência da dominação de classe. A anistia, como bem lembra a diretora3, produziu um pacto de silêncio onde deveria haver memória — um acordo que preservou os algozes e perpetuou a impunidade, em nome da estabilidade de um sistema que não podia se permitir ruir. E é por isso que o cinema importa: porque ele resgata aquilo que a história oficial tentou soterrar. Porque ele devolve voz a quem foi calado — e nome a quem foi reduzido a estatística.
A Batalha da Rua Maria Antônia é um filme necessário. Um soco contido. Um sussurro que se transforma em grito. Uma carta enviada do passado, escrita com sangue, coragem e silêncio. E nós, espectadores de hoje, só temos uma tarefa: ler essa carta com olhos abertos e coração atento. Pois como ensinou Walter Benjamin, a história é feita não do que aconteceu, mas do que ainda queima.
Notas:
1 Escrevi, de maneira sintética, sobre esse contexto no texto “Forjando 1964: acumulação capitalista e luta de classes”, publicado no Le Monde Diplomatique. Disponível em: < https://diplomatique.org.br/1964-acumulacao-capitalismo-e-luta-de-classes/>. Último acesso: 17/04/2025.
2 Escrevi sobre esse assunto em um artigo acadêmico, “Apuntes sobre conflictos políticos e intervención estatal en la une durante la dictadura militar (1964-1985)”, publicado na Revista Diversidad de Las Culturas. Disponível em:
<https://diversidadcultural.unju.edu.ar/sistema/art_originales/5.%20APUNTES%20SOBRE%20CONFLICTOS%20POL%C3%8DTICOS%20E%20INTERVENCI%C3%93N%20ESTATAL.pdf>. Último acesso: 17/04/2025
3 Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/podcast/bem-viver/2025/03/31/o-cinema-como-registro-vera-egito-fala-sobre-a-batalha-da-rua-maria-antonia/>. Último acesso: 17/04/2025.
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