O corvo, a pomba e a impotência

A partir de uma cena marcante, porém esquecida, a lembrança de que batalha de Cristo se trava em nome da caridade e da partilha e do cuidado – não do dogma ou da certeza. E, também, um ponto de vista ateu sobre a lição filosófica de Francisco

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“Que miséria ser sábio
quando a Sabedoria
nada pode fazer por nós.”

Sófocles, Édipo Rei

Corvos e pombas

Em 26 de janeiro de 2014, Francisco havia acabado de subir ao trono de Pedro, depois de outro papa curvar a cabeça diante das ingovernáveis potências do caos e das invencíveis impotências da depressão — como já havia atencipado o gênio Nanni Moretti.

Naquele dia, o Papa apareceu com duas crianças na sacada de uma janela do Vaticano. As câmeras estavam voltadas para eles.

Enquanto Francisco acariciava a cabeça dos pequenos, eles soltaram ao ar duas pombas brancas. Mas eis que, de repente, um corvo irrompe pela esquerda, persegue por alguns instantes a pobre pomba que tenta fugir — até agarrá-la, arrastá-la e devorá-la.

Não sei se naquela noite de janeiro de 2014 o Papa reuniu seus adivinhos para decifrar o presságio. Talvez não, pois o santo não se arvora a interpretar enigmas. Aceita o veredito sem pretender compreendê-lo.

Aos poetas, porém, é permitido o que aos santos é vedado. Os poetas extraem sentido de sinais que não têm significado algum, como se a rede infinita do ser fosse sustentada por um projeto simbólico — que, no entanto, não existe.

O que o poeta pôde ler naquele evento é uma simbologia inquietante: o mal ressurge dos abismos do caos e tinge de sangue inocente o céu do século. A ferocidade irrompe mais uma vez na história do mundo.

A impotência de Deus

De Francisco vem uma lição política: a batalha de Cristo se trava em nome da caridade, da partilha — alegre e dolorosa — da experiência humana. Não em nome do dogma ou da certeza, mas da fragilidade e do cuidado.

Mas de suas palavras e gestos, extraio também uma lição filosófica sobre a impotência divina.

Na homilia de março de 2020, enquanto à sua volta a praça vazia era pura noite, Francisco disse que Deus não castiga seus filhos, que o vírus não é um punição divina. “Não é a vontade de Deus que se manifesta no mal”, afirmou. Portanto, a vontade divina não pode tudo.

O vírus que semeia morte é a complexidade do caos superando nossa capacidade de compreensão, governo e cura.

As potências do mal nada mais são que emanações do caos — sempre que ele ultrapassa nosso poder de afeto, sentido e razão. Elas brotam da tirania da vontade humana, incapaz de aceitar os limites de sua potência e obstinada em submeter o caos com ferocidade e dogma.

Em entrevista a Antonio Spadaro, publicada em Civiltà Cattolica em outubro de 2013, Bergoglio afirma que a Igreja é um “hospital de campanha”: a caridade é a partilha solidária da impotência.

Desde então, o Papa-profeta já havia entendido que a vontade de Deus não impediria a guerra de retornar ao mundo, substituindo a linguagem.

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