Trump 2 em guerra contra a ciência
As perspectivas para o desenvolvimento da ciência nos EUA nos próximos anos são sombrias. A comunidade científica mundial terá que procurar alternativas para lidar com o desastre em curso, e denunciar os abusos e procurar apoiar pesquisadores atingidos por eles
Publicado 14/04/2025 às 19:33 - Atualizado 14/04/2025 às 19:34

Por Kenneth Rochel de Camargo Jr*, em editorial da Cadernos de Saúde Pública
A ascensão ao poder de Donald Trump pela segunda vez, amparado numa aliança de autoritarismo, fundamentalismo religioso, supremacismo branco e ultraneoliberalismo, foi vista com apreensão pela comunidade científica americana e internacional desde que os resultados da eleição foram anunciados. A memória recente do negacionismo climático, a política errática frente à pandemia de covid-19, a bizarra tentativa de alterar à mão um mapa de previsão de trajetória de um ciclone e outros atos semelhantes na primeira administração de Trump justificavam esse sentimento de alarme. E, como era de se esperar, o ataque à ciência, em dimensão até maior do que se esperava, é parte da verdadeira blitzkrieg (guerra relâmpago) que a “nova-velha” administração desencadeou contra instituições e o próprio arcabouço legal daquele país. Imediatamente, importantes revistas científicas, como o The Lancet e o British Medical Journal (BMJ), publicaram editoriais soando o alarme (1, 2).
O ataque à ciência ocorre em várias frentes. Em primeiro lugar, a determinação em reduzir a força de trabalho a serviço do governo americano, como parte de uma política de cortar gastos de qualquer modo e sem maior critério, atinge duramente vários órgãos ligados à pesquisa, como a Fundação Nacional de Ciência (NSF, acrônimo em inglês) (3, 4), forçada a reduzir seu quantitativo de pessoal em até 50% nos próximos meses, além de ter seu orçamento ameaçado de redução em dois terços do valor anterior (4). Ameaças semelhantes pesam sobre outras agências relevantes para a pesquisa, como a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA, acrônimo em inglês), órgão climatológico oficial do governo americano, e a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (NASA, acrônimo em inglês).
Do ponto de vista da área de saúde, o quadro é ainda mais preocupante. Além de ser também atingido pela fúria cega do corte de gastos a todo custo, a nomeação de Robert F. Kennedy Jr. como novo secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (DHSS, acrônimo em inglês), equivalente ao cargo de ministro da saúde, é, em si, alarmante. RFK, como é conhecido, já foi caracterizado repetidas vezes como negacionista da ciência, em especial antivacina, fazendo parte de um grupo de 12 indivíduos identificados como os maiores difusores de informações antivacina na internet 5. Um episódio em particular se destaca: depois de um erro crasso ter causado a morte de duas crianças após serem vacinadas, em Samoa (Polinésia), a interferência de RFK agravou ainda mais a crise de confiança nas vacinas, levando a uma queda ainda maior na cobertura vacinal, que levou à morte de dezenas de crianças na nação-arquipélago no Pacífico (6). A indicação de RFK para esse posto já havia sido amplamente denunciada, inclusive pela Associação Americana de Saúde Pública (APHA, acrônimo em inglês), em carta aberta publicada em seu site (7).
O DHSS abarca em seu âmbito diversas instituições essenciais para a pesquisa em saúde, como o Instituto Nacional de Saúde (NIH, acrônimo em inglês) e o Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, acrônimo em inglês). Uma das primeiras medidas de Trump foi congelar qualquer atividade desses órgãos, interrompendo comitês que indicariam propostas para financiamento, conferências essenciais para ações e pesquisa em saúde, a contratação de pessoal e mesmo a publicação científica (8) e a divulgação de dados (9), interrompendo, pela primeira vez em 60 anos, a publicação do Morbidity and Mortality Weekly Report (MMWR), importante informe epidemiológico (1). O MMWR foi restabelecido cerca de 15 dias depois, mas, aparentemente, com importantes lacunas no acompanhamento do surto de gripe aviária que se desenrola naquele país.
O indicado para a presidência do NIH, Jay Bhattacharya, destacou-se durante a pandemia de covid-19 por ser um dos signatários da Declaração de Great Barrington, documento negacionista que criticava as medidas de distanciamento social com base numa ótica economicista e que serviu de base a propostas absurdas de delegar o controle da epidemia a uma suposta imunidade de rebanho em um momento em que ainda não se dispunha de vacinas (10). O NIH é o maior financiador de pesquisas biomédicas nos Estados Unidos, um dos maiores, senão o maior do mundo, e a interferência já prometida da nova administração nos seus rumos turva as perspectivas futuras de desenvolvimento científico nessa área.
A determinação do corte de gastos no NIH, além de reduzir o total de fundos para o financiamento direto de pesquisas, compromete ainda mais o seu desenvolvimento ao determinar um teto de 15% para os chamados custos indiretos, usados por universidades e institutos de pesquisa para custear gastos com laboratórios, equipamentos e pessoal indispensáveis à infraestrutura de pesquisa, que estavam num patamar médio de 30%, podendo ser mais que o dobro disso no caso de grandes universidades (4, 11).
Para além de nomear pessoas claramente inadequadas para cargos de liderança, restringir fundos e cortar pessoal, a atual administração visa também exercer censura sobre cientistas, proibindo o financiamento de pesquisas e a publicação de artigos por funcionários do governo contendo alguma referência a palavras que foram incluídas num index prohibitorum digno da Inquisição. Tendo por base a cruzada ideológica voltada contra iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI), bem como qualquer referência à noção de gênero, em especial à própria existência de pessoas transgênero, páginas inteiras de sites do governo foram apagadas, autores de artigos já enviados para publicação demandaram a sua devolução às revistas para as quais haviam enviado e mesmo financiamentos já alocados têm futuro incerto (8, 12).
Ainda que reações contrárias tenham se multiplicado nos últimos dias, sobretudo na esfera judicial, na qual vários juízes emitiram sentenças barrando alguns dos desvarios mais egrégios desse momento inicial do novo governo, é fato que, ao menos nos próximos dois anos, até as próximas eleições legislativas de meio termo nos Estados Unidos, Trump conta com o controle da Câmara, do Senado e mesmo da Suprema Corte, limitando muito o poder de alcance dessa resistência.
As perspectivas para o desenvolvimento da ciência nos Estados Unidos nos próximos anos, em particular na área da saúde, são sombrias. Dado o papel relevante que esta nação representa no cenário internacional da ciência, os efeitos desses ataques serão certamente sentidos em todo o mundo. Somados a ações igualmente reprováveis, de retirada da Organização Mundial da Saúde (OMS) e desmantelamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, acrônimo em inglês) – ainda que pesem algumas ações dúbias desta última no passado – projetam um quadro de desesperança para a saúde pública global no futuro próximo. A ação conjunta de agências internacionais e do NIH foi fundamental para o enfrentamento da pandemia de covid-19, por exemplo, como foi ao longo dos anos frente ao HIV/aids. Nada indica que novos desafios à saúde em escala mundial não se apresentarão nos anos vindouros, ainda mais tendo em vista o agravamento da crise climática – outra área de pesquisa, aliás, na alça de mira das equipes de demolição do governo Trump 2.
A comunidade científica mundial terá que procurar alternativas para lidar com o desastre em curso nos Estados Unidos, assim como denunciar os abusos e procurar apoiar como possível os cientistas atingidos pelos mesmos. O Brasil, em particular, deve procurar diversificar e fortalecer múltiplas parcerias, para minimizar os inevitáveis impactos negativos de um governo em franco enfrentamento com a ciência.
*Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
REFERÊNCIAS:
1. The Lancet. American chaos: standing up for health and medicine. Lancet 2025; 405:439.
2. Choo E. Pulling resources and blocking access to key scientific data will cause untold long term harm. BMJ 2025; 388:r288.
3. Hiar C. Science funding agency threatened with mass layoffs. POLITICO 2025;
4 feb. https://www.politico.com/news/2025/02/04/science-funding-agency-layoffs-threat-00202426.4. Gwynne P. US science in chaos as impact of Trump’s executive orders sinks in. Physics-World 2025; 12 feb. https://physicsworld.com/us-science-in-chaos-as-impact-of-trumps-executive-orders-sinks-in/.
5. Nogara G, Vishnuprasad PS, Cardoso F, Ayoub O, Giordano S, Luceri L. The disinformation dozen: an exploratory analysis of covid-19 disinformation proliferation on twitter. In: Proceedings of the 14th ACM Web Science Conference 2022. Barcelona: Association for Computing Machinery; 2022. p. 348-58
.6. Experts saw Samoa’s plunging vaccination rates as a crisis. RFK Jr. saw an opportunity. NBC News 2025; 13 feb. https://www.nbcnews.com/news/us-news/rfk-jr-samoa-measles-vaccine-crisis-rcna187787.
7. Benjamin GC. America deserves better than RFK Jr. https://www.apha.org/news-and-media/news-releases/apha-news-releases/2024/rfk-jr-hhs-nomination (accessed on 13/Feb/2025).
8. Steenhuysen J, Lapid N. CDC orders pullback of new scientific papers involving its research-ers, source says. Reuters 2025; 3 feb. https://www.reuters.com/world/us/us-cdc-orders-pullback-new-scientific-papers-involving-its-researchers-source-2025-02-02/.
9. Wadman M, Kaiser J. Trump hits NIH with ‘devastating’ freezes on meetings, travel, com-munications, and hiring. https://www.science.org/content/article/trump-hits-nih-devastating-freezes-meetings-travel-communications-and-hiring (accessed on 13/Feb/2025).
10. Jarry J. Bhattacharya to decide the fate of med-ical research. https://www.mcgill.ca/oss/article/medical-critical-thinking-pseudoscience/bhattacharya-decide-fate-medical-research (accessed on 13/Feb/2025).
11. Choi J. Trump’s move to slash research fund-ing shakes medical community. The Hill 2025; 13 feb. https://thehill.com/policy/healthcare/5141905-trump-medical-research-cuts-threat/.
12. Wadman M, Jacobs P. Trump’s ban on funds to ‘promote gender ideology’ could threaten hundreds of NIH research projects. https://www.science.org/content/article/trump-s-ban-funds-promote-gender-ideology-could-threaten-hundreds-nih-research-project (ac-cessed on 13/Feb/2025).
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