Cinco motivos para defender o SUS Quilombola
Ministério da Saúde abre consulta pública sobre a nova Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola. Aceita participações até dia 31. Quais os motivos para sua criação? Como se relaciona com a questão territorial e os saberes tradicionais?
Publicado 27/03/2025 às 17:56

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O Ministério da Saúde abriu uma consulta à sociedade civil sobre a Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (PNASQ). As contribuições da sociedade civil para o aperfeiçoamento do texto da PNASQ podem ser feitas pela plataforma Participa+Brasil através do questionário ‘Opine Aqui’ até o dia 31 de março.
A pandemia da covid-19 expôs as fragilidades da atenção à saúde ofertada para as comunidades quilombolas do Brasil. Naquele momento, a gestão federal se mostrou incapaz de prover a proteção necessária para os quilombolas, em meio a um período de intensificação de vulnerabilidades sociais nos territórios.
As primeiras ações de enfrentamento à pandemia nos quilombos começaram a ser realizadas tardiamente, o que resultou em uma taxa de mortalidade pela covid-19 de cerca de 5% a mais em quilombolas do que na população geral, segundo dados da CONAQ (2022).
Os processos de mobilização em torno da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n. 742), protocolada pela CONAQ junto a Suprema Corte, se desdobraram no aprofundamento dos debates acerca dos limites e desafios do Sistema Único de Saúde (SUS) nos territórios quilombolas, bem como a necessidade de se pensar em um modelo de atenção à saúde específico para os quilombos do Brasil.
A realização da primeira Conferência Nacional Livre de Saúde Quilombola, em 2023, organizada pela CONAQ em parceria com o Conselho Nacional de Saúde (CNS), resultou no estabelecimento de princípios e diretrizes acerca do modelo ideal de atenção à saúde para os quilombos. O documento final da conferência se âncora em pelo menos cinco argumentos, segundo os quais, se justifica a criação da primeira Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (PNASQ/SUS).
Abaixo, listamos os principais pontos, oriundos dos intensos debates que envolveram cerca de mil de duzentos quilombolas de todo o país, no bojo das discussões da Conferência de Saúde Quilombola, de 2023.
• Questão territorial e barreiras de acesso à saúde: segundo dados do Ministério da Saúde (2023), as distâncias entre um território quilombola e o serviço de saúde mais próximo chegam a uma média de 43 Km em estados do Norte do país. Para além disso, os territórios quilombolas vivenciam uma realidade crescente de violências: segundo dados do ISA e CONAQ (2024), cerca de 98% dos quilombos do país estão de alguma forma ameaçados por disputas fundiárias, requerimentos minerários e especulação imobiliária.
• Especificidades etnoculturais e saúde: ao longo dos mais de 500 anos de história dos quilombos no Brasil, na maior parte do tempo a única alternativa de cuidado em saúde se ancorou nos saberes e práticas das medicinas quilombolas, vistas no uso dos chás, infusões, garrafadas, raizadas, lambedores, dentre outras tecnologias ancestrais de cuidado. Os mestres e mestras das medicinas quilombolas são guardiões da memória e dos costumes desses territórios, representando um patrimônio cultural que deve ser valorizado pelo sistema de saúde.
• Reparação histórica: apesar de reconhecidos os direitos sociais quilombolas no âmbito da Constituição de 1988, o Estado brasileiro tem uma dívida para com os territórios quilombolas. Das cerca de 7 mil comunidades registradas pelo Censo do IBGE (2022), apenas cerca de 500 delas contam com algum tipo de regularização territorial. Se seguido o ritmo atual de titulação, o Brasil levará cerca de dois mil e setecentos anos para titular todos os quilombos do país.
• Insuficiência das políticas de saúde: até os dias atuais não se tem uma política de saúde específica, que leve em consideração a realidade das comunidades quilombolas do país. Ao invés disso, a população quilombola é citada de forma pulverizada e superficial em algumas políticas de equidade do SUS, no entanto, nenhuma delas foi capaz de produzir respostas efetivas às demandas de saúde nos territórios.
• Direito à memória: o racismo vivenciado por quilombolas nos serviços de saúde do SUS e a violência perpetrada pelo conflitos fundiários precisam ser reconhecidos como determinantes sociais da saúde, refletindo a história de exclusão e marginalização à qual os quilombos foram expostos ao longo dos séculos. As feridas da colonização e escravização se refletem em indicadores sociais e sanitários que dão conta de expressar a grave vulnerabilidade social vivenciada pelos quilombos, de ontem e de hoje.
A perspectiva tomada pelo movimento social quilombola no debate da saúde coloca a questão ambiental no centro do debate, compreendendo a saúde como o direito de viver o território ancestral em comunidade – o território ancestral como parte vital do quilombo e a comunidade como a junção dos mortos e vivos (Provérbio Bantu) – de modo que um novo modelo de saúde para o SUS nos quilombos não só é possível, como se faz urgente, sobretudo em épocas de mudança do clima, onde os territórios quilombolas pautam a manutenção da vida e a construção de territórios livres, autônomos, saudáveis e sustentáveis.
As reflexões presentes nesse artigo são o resultado da dissertação de mestrado intitulada “Aquilombar a saúde, contracolonizar as lutas: o projeto político do movimento quilombola para a saúde no Brasil”, Mateus Brito – Membro do Coletivo Nacional de Saúde Quilombola (CONAQ), Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva (ISC/UFBA), Quilombola da Lagoa de Maria Clemência/BA.
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