Golpe de Estado à brasileira
Por que militares como o general Augusto Heleno assumiram papéis tão bizarros? Ao ler o inquérito sobre a tentativa de golpe de 2022, é impossível não lembrar uma comédia de Mauro Monicelli. Mas surge a oportunidade de um debate menos superficial sobre o papel das Forças Armadas
Publicado 17/03/2025 às 19:12 - Atualizado 17/03/2025 às 19:14

O título deste texto é uma alusão a um filme italiano de comédia de 1973, dirigido por Mario Monicelli, chamado Vogliamo i colonnelli, isto é, “queremos os coronéis”, mas lançado no Brasil com o título de Golpe de Estado à italiana. O protagonista é o deputado de direita Giuseppe Tritoni, que promove secretamente um atentado contra a Madonnina, uma imagem da Virgem Maria situada no topo da Catedral de Milão, com o objetivo de culpar os comunistas e manchar a imagem da esquerda. O atentado é um fracasso, por pouco a farsa não vem à tona, mas Tritoni já tem o pretexto que queria para romper com seu partido, por considerá-lo tolerante demais com o crescimento da esquerda e, no limite, com a própria consolidação democrática, a pouco mais de vinte anos da derrocada do regime fascista de Mussolini. O próximo passo do deputado é buscar uma lista secreta de oficiais militares dispostos a aderirem a uma operação de tomada do poder por meio de um golpe de Estado.
Não me arrisco a continuar narrando o enredo do filme porque não quero comprometer a experiência de quem o quiser assistir, e além disso, acabo de ler alguns trechos da denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República (PGR) contra Bolsonaro, Braga Netto, Augusto Heleno e outros, e por isso eu correria o risco de confundir ficção italiana com realidade brasileira. Cumpre dizer, no entanto, que o filme é livremente inspirado em um plano para um golpe de Estado que foi realmente concebido pelo então presidente da República Italiana, Antonio Segni, em 1964 (!), junto ao general Giovanni de Lorenzo, então comandante dos Carabinieri, uma das quatro forças armadas da Itália. Na vida real, portanto, ao contrário do filme, tratava-se de um “autogolpe”: a ideia não era tomar o poder, mas ampliá-lo e consolidá-lo por meio das armas, neutralizando opositores que, no caso, eram sobretudo comunistas e socialistas que participavam ativamente da vida pública do país, e que, caso o golpe fosse desencadeado, seriam enviados para um prisão na Sardenha.
Já se vão uns quatro anos desde que assisti Golpe de Estado à italiana, mas no último mês de dezembro, quando soubemos do plano de assassinato de autoridades formulado por oficiais do Exército Brasileiro, cujos alvos eram Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, foi impossível não lembrar – com gosto – da sátira de Monicelli, cujos alvos, por sua vez, foram militares de alto escalão que se ocupavam de sabotar a suscetível democracia italiana. Hoje, lendo sobre o filme aqui, descubro, aliás, que o personagem do deputado Tritoni foi inspirado em Sandro Saccucci, ex-tenente de uma brigada de paraquedistas do Exército Italiano, preso por envolvimento em uma outra tentativa de golpe, diferente daquela que já mencionei, e que após 11 meses de prisão provisória foi eleito deputado por um partido neofascista. Embora a Itália aparentemente também não seja para principiantes, como é o caso do Brasil, Saccucci pelo menos teve sua carreira política comprometida quando fugiu do país para escapar de uma condenação na justiça referente a um incidente num comício em 1976, ocasião em que, em meio a tumultos, um jovem comunista foi assassinado por um de seus apoiadores. No Brasil, o nosso deputado/terrorista local jamais abandonou as suas origens tumultuadas como figura relevante de direita. Ao contrário do seu congênere italiano (que acabou se autoexilando na Argentina e caindo no esquecimento), chegou ao posto mais alto da República elegendo-se presidente em 2018.
A eleição de Bolsonaro viria a corresponder, no entanto, a uma “vitória de Pirro” para muitos militares, ou seja, uma conquista que logo se converteria em revés. Ao ocupar o governo com tamanha avidez, como fizeram durante o mandato de Bolsonaro, eles se igualaram a políticos do tipo mais rasteiro e oportunista, com os quais descobriu-se que tinham muito mais em comum do que se supunha. As forças armadas passaram, então, a conviver com o derretimento de uma consolidada popularidade, para o que certamente terá contribuído, ainda, o desempenho de um general como Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde em plena pandemia. Mas o momento mais icônico do apagamento das tão divulgadas diferenças entre militares e políticos “tradicionais” pode ter sido protagonizado pelo general Heleno, com sua graça habitual, ao cantar o refrão da música Reunião de Bacana para se referir ao Centrão parlamentar (“Se gritar pega ladrão/Não fica um, meu irmão”), e, pouco tempo depois, ao ajustar seu discurso diante de novos amigos: “Eu conhecia muito pouca gente do Centrão, e aquela era a sensação que eu tinha. Hoje, muitos deles são meus amigos. Praticamente todos”.
Qual o significado desta transformação radical no juízo do general Heleno sobre o Centrão? Ora, fica a suspeita de que ele tenha se dado conta de que a política pode ser um bom negócio, assim como o é para muitos parlamentares desta genérica maioria que convencionamos chamar de Centrão, e este interesse comum fez florescer as novas amizades. A busca do general Heleno por bons negócios a partir de 2019, aliás, faz ainda mais sentido se considerarmos que até cerca de um ano antes de integrar o governo Bolsonaro, ele recebia um salário de quase R$ 60.000,00 como Diretor de Comunicação e Educação Corporativa do Comitê Olímpico Brasileiro. É de se supor, portanto, que após deixar o cargo ele buscasse outras formas de complementar sua renda, para preservar o estilo de vida reconhecidamente austero dos altos oficiais militares brasileiros. E, para isso, nada como contar com algumas – ou, muitas – amizades no Centrão, que no governo Bolsonaro se especializou em arrebatar parcelas graúdas do orçamento.
A esta altura, já não surpreende a ninguém que o general Heleno e os seus comparsas do alto oficialato estivessem envolvidos em conspirações por um autogolpe preventivo contra a posse do presidente Lula: eles tinham muito a perder. Se o resultado da eleição presidencial de 2022 colocou parte das nossas direitas exaltadas em modo de redução de danos, o núcleo ativo do golpe, ao contrário, estava decidido a não recuar. A atual denúncia da PGR dá destaque a outra frase famosa do nosso engajado general Heleno, ao incitar seus companheiros à ação durante uma das últimas reuniões dos bacanas realizada em prédio público: “o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa, é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. Para a frustração de Augusto Heleno, no entanto, o soco na mesa não foi desferido, e pra piorar, os seus desejos mais íntimos estão sendo revelados publicamente, contribuindo, assim, para o agravamento da crise moral das forças armadas. A propósito, a PGR fala em “ato de insurreição em curso” para se referir ao complô da primavera de 2022, e em uma matéria melancólica do veículo de extrema-direita Gazeta do Povo se lê que “O que as fontes ouvidas pela reportagem também concordam é que as denúncias contra militares da reserva de alto escalão têm um potencial muito elevado para piorar a imagem pública do Exército. A instituição acaba sendo criticada tanto por parcela da população que era favorável a uma a uma intervenção militar na política quanto pelas pessoas que eram contrárias a essa possibilidade”.
O que começou, portanto, no governo Bolsonaro, como uma oportunidade para muitos militares voltarem a fazer o que se habituaram durante a ditadura, ou seja, ocuparem cargos públicos sem qualquer tipo de responsabilização em padrões republicanos, está terminando como uma comédia italiana dos anos 70. Cabe lembrar, ainda, que outro dos personagens principais desta trama, o general Braga Netto, embora tenha sido preso preventivamente em dezembro passado, está saindo ileso com relação ao período em que comandou a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, durante o governo Michel Temer. Ora, se hoje sabemos que Braga Netto foi escalado para a Casa Civil da Presidência para conter a crise de governança provocada por Bolsonaro durante a pandemia, e se ele é um dos denunciados pela PGR pelo crime, dentre outros, de “organização criminosa armada”, não há por que deixar de esperar uma justa investigação sobre o período em que o general comandou a Operação de Garantia da Lei e da Ordem e a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, em 2018.
Será lícito supor que a intervenção federal no Rio despertou em muitos oficiais o gosto pelos gabinetes, pelo trânsito livre e desimpedido em meio à administração “pública”, pouco depois desfrutado, de fato, durante o governo Bolsonaro. A CPI da Covid nos deu uma chance de imaginar, por exemplo, como terá sido o ambiente de trabalho nas repartições do Ministério da Saúde sob o comando de Pazuello, que até então “nem sabia o que era o SUS”. Há tempos que faz parte da mística militar brasileira uma diferenciação crucial entre o éthos militar e o civil: eles reuniriam, como que instintivamente, um conjunto de virtudes, enfeixadas pela disciplina, enquanto os civis estariam sempre propensos aos vícios e à devassidão. É o que se buscou representar, por exemplo, no deprimente vídeo institucional da Marinha que acabou sendo excluído algumas horas depois de publicado. O fato do vídeo ter gerado constrangimento generalizado, e não a exaltação que se esperava, demonstra o estado de esfacelamento em que se encontra esta crença que provém dos quarteis, e que é também um legado da ditadura. O brio dos nossos militares e sua arrogância com relação aos seus concidadãos não é outra coisa senão um disfarce, uma distração para o fato de que, durante a ditadura, eles se afastaram e distorceram a sua razão de ser, que é a preparação para a guerra.
O Brasil é um país pacífico, pelo menos das nossas fronteiras pra fora. À exceção das experiências pontuais, mas significativas, nas duas guerras mundiais, e da participação um tanto vergonhosa na invasão da República Dominicana pelos Estados Unidos em 1965, já faz bastante tempo que não nos envolvemos em conflitos armados, sobretudo no que se poderia considerar o nosso entorno estratégico imediato – a última ocorrência deste tipo foi a Revolução Acreana, na virada do século XIX para o XX, entre o Brasil e a Bolívia, e pouco antes disso, na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, quando houve envolvimento argentino e uruguaio. A extensão territorial brasileira foi sabiamente levada em consideração por gerações de diplomatas, cientes da importância de se evitar conflitos relacionados às nossas fronteiras, considerando o quão difícil seria empreender o necessário esforço defensivo. Estas diligências diplomáticas foram bem sucedidas, ao ponto de terem contribuído decisivamente para a atribuição que não raro se faz ao brasileiro como sendo um povo cordial. O horizonte das nossas forças armadas, portanto, deveria se entrever no duplo propósito de manutenção da paz externa e de dissuasão de potenciais agressores, mas, historicamente, elas se desvirtuaram e foram desvirtuadas deste ideal, como agentes ativos e passivos concomitantemente.
Não é objetivo deste texto rastrear as possíveis origens desta desvirtuação – que, aliás, não é um processo contínuo, tampouco coerente, mas, cabe a consideração sobre alguns momentos particularmente importantes da nossa evolução política, de modo a colocarmos em perspectiva problemas contemporâneos como este, cuja expressão mais recente é o papel controverso (se me permitem o eufemismo) exercido por militares no governo Bolsonaro. Refiro-me, de início, à conjuntura política que se seguiu à Guerra do Paraguai, nas décadas de 1870 e 1880, quando ocorreu uma série de embates públicos entre militares veteranos da guerra e políticos procedentes do regime imperial, que resultou na proibição aos integrantes do Exército de se manifestarem politicamente por meio da imprensa sem autorização prévia. A indignação provocada nos quartéis deu grande ensejo à solidariedade e ao corporativismo militar, e, no limite, jogou o Exército contra a própria monarquia. A formação intelectual de muitos oficiais mais jovens, que também os incitava à participação política, foi outro fator que contribuiu para posicionar a corporação junto às fileiras do republicanismo – daí, o 15 de novembro de 1889, protagonizado pelo marechal Deodoro da Fonseca, veterano do Paraguai e figura simbólica mais expressiva do Exército.
Contudo, a Proclamação da República não deve ser entendida como um ato de rebeldia dos militares. Para que tenha sido bem sucedida, a manobra precisou do envolvimento decisivo de grandes fazendeiros paulistas, oligarcas do café, que já não tinham por que se fazer de lastro do regime monárquico que tanto os havia beneficiado enquanto sustentou a escravidão. Como nos explica Rodrigo Goyena Soares, “A força paulista é a materialidade sobretudo econômica” na formação da República. Como era grande a diferença entre os interesses e visões de mundo destes dois grupos políticos organizados, eles entraram em conflito depois da derrubada da monarquia, mas o novo regime eventualmente foi hegemonizado pelos fazendeiros, e constituiu-se o que Joaquim Nabuco então já havia prefigurado como o “reinado do café”. A partir daí, parte importante do Exército não apenas se opôs como pegou em armas contra este “reinado”, sobretudo ao longo da década de 1920, e a corporação chegou a separar-se em lados opostos e conflitantes em tantos momentos a partir do tenentismo e, depois, na Coluna Prestes, na Revolução de 1930, na Revolução Constitucionalista de 1932, no levante comunista de 1935 e no levante integralista de 1938. O que quero salientar é que o Exército nunca agiu sozinho, como um bloco unificado e dotado de plena coerência e autossuficiência política, e que quase sempre esteve prioritariamente envolvido em problemas domésticos, em detrimento de questões de segurança externa.
Assim como em Golpe de Estado à italiana, onde o deputado Giuseppe Tritoni poder ser visto como representando o poder civil que instiga o poder militar ao envolvimento ativo na vida política nacional, há muitas ocorrências na história do Brasil de políticos que buscaram a mão militar, tanto para lhes amparar, como para fustigar seus adversários. Seria, por óbvio, de uma ingenuidade desmedida imaginar que com a mão não viesse o corpo inteiro. Não é estranho, portanto, que eles se vejam como agentes ora da ordem, ora do progresso. Podemos não concordar, e procurar fazer com que haja uma mudança nos costumes e nas instituições para que deixe de ser assim, mas não é estranho. Quem se dedica ao estudo da história política do Brasil tende a concluir que, se do ponto de vista democrático não há fundamento para que os militares se vejam como protagonistas da nossa vida pública, do ponto de vista histórico, essa noção tem respaldo. Se eles nunca se ocuparam exclusivamente de questões de defesa e segurança externa, é porque as relações civis-militares têm sido promíscuas, e este é um traço que deve ser atribuído reciprocamente.
Ao contrário do que se pode observar em países como Estados Unidos e China, a comunidade política brasileira demonstra enorme dificuldade em formar consenso sobre temas de interesse nacional. O Exército Brasileiro (mais do que as outras duas forças) já foi explicitamente dividido, por exemplo, com relação à questão do desenvolvimento e da industrialização do país. Foi, em parte, contra este estado de coisas que um grupo de generais bem articulado arquitetou o regime ditatorial de 1964, e decidiu arbitrar autonomamente sobre o que consistiria interesse nacional prioritário, dirigindo, então, o país conforme as suas intuições. A experiência foi trágica para o Brasil como um todo, inclusive para as forças armadas, em meio às quais passou a ser cultivado o mais sórdido ressentimento. Este reconhecimento é tão importante para encararmos propriamente o imperativo de inovação nas nossas relações civis-militares quanto as punições aos generais que há décadas têm ficado tão à vontade para planejar novos golpes de Estado à brasileira. O “ato de insurreição” sobre o qual fala a denúncia da PGR está em curso há décadas, mas nunca esteve tão explícito. Agora, cabe aos militares demonstrarem concretamente a disposição para despoluir o ambiente político brasileiro, assim como cabe a nós, civis, demonstrarmos disposição para o entendimento, sem ingenuidade.
Enquanto se comportarem como viúvos da ditadura, e acreditarem cegamente que “ideológicos” são sempre os outros, os oficiais das forças armadas estarão condenando as corporações militares do país à obsolescência. Assuntos relativos à guerra e à paz, em um mundo cada vez mais abertamente conturbado, demandam ser tratados com a devida importância, e é sobretudo por isso que tem sido profundamente lamentável saber como é generalizado entre os próprios generais brasileiros o tratamento das nossas forças armadas como uma milícia política reacionária. Mas esta é também uma oportunidade para o enquadramento das instituições de Estado às nossas melhores aspirações democráticas e desenvolvimentistas, cientes de que para a profissionalização do aparato militar brasileiro, o envolvimento ativo e aberto do elemento civil é crucial. Não há por que, por exemplo, manter a formação do oficialato como uma atribuição quase exclusiva dos próprios militares, sendo que temos uma comunidade acadêmica de alto nível dedicada aos estudos de defesa e segurança global.
No filme de Monicelli, certa altura o protagonista, Tritoni, conclama os seus comparsas para o golpe com as seguintes palavras: “Chegou a hora de agir: um punhado de homens determinados e todos nos seguirão. Alguns por fé, alguns por interesse, alguns por medo”. É uma frase que poderia perfeitamente ter sido dita por um dos nossos personagens fardados do governo Bolsonaro que conspiravam ativamente em 2022. Agora, temos a ocasião para afirmar, enquanto cidadãos brasileiros, que com relação aos militares, nossos concidadãos, não nos cabe ter fé – porque não se trata disso, nem interesses privados, e muito menos medo. Temos um destino comum pela frente, que convém ser levado mais a sério.