Rio: a casa de Rubens Paiva “não está aqui”
Turismo e especulação apagaram parte da paisagem histórica da cidade – incluindo a residência do ex-deputado. Agora, prefeitura “sacraliza” o cenário que restou – a locação do filme que ganhou o Oscar. Mais um capítulo das escolhas esdrúxulas sobre o que é (ou não é) patrimônio arquitetônico
Publicado 14/03/2025 às 19:34

A questão relativa à preservação do Patrimônio Cultural na cidade do Rio de Janeiro deve ser tratada com muita cautela, diante da complexidade envolvida.
Desde 1763, quando a capital lusa se estabeleceu no Rio, até a transferência para Brasília, a urbe assistiu a relevantes modificações políticas e abrigou um considerável patrimônio arquitetônico, refletindo diferentes momentos de sua trajetória.
A primeira listagem de bens tombados federais, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937, foi muito generosa com o acervo da então capital federal.
Algumas décadas após, o estado da Guanabara implantou seu próprio sistema de proteção do patrimônio estadual, ratificado pela criação do INEPAC, após a fusão Guanabara-Estado do Rio de Janeiro.
A cidade do Rio de Janeiro, município e capital estadual, em breve também implantaria seus mecanismos de proteção, recebendo sucessivas denominações até a criação do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, em 2012, após da cidade ser declarada Patrimônio Mundial como Paisagem Cultural Urbana pelo Comitê do Patrimônio Mundial da Organização das Nações.
Uma singular justificativa para uma cidade dotada de natureza exuberante, muito pouco respeitada desde os primórdios de sua ocupação. Considerando-se que o conceito de paisagem cultural está relacionado às transformações impostas pelo homem na paisagem natural, esta inter-relação poderia (ou deveria?) estabelecer um diálogo civilizado, com pleno respeito aos sítios objetos de intervenção.
Uma simples observação de mapas mais antigos da cidade demonstrará a destruição continuada da paisagem natural: lagos e brejos aterrados, morros devastados, praias recriadas, passarelas comprometendo as encostas, quase sempre justificado pelo progresso ou pelas necessidades de uma “cidade turística”.
A arquitetura, com exceção daquela eleita quase sempre unilateralmente por poucos responsáveis, era demolida sumariamente, diante de argumentos insustentáveis, incluindo notáveis exemplares de períodos distintos da história da cidade, como o Palácio Monroe, o Palacete Martinelli, o Elixir de Nogueira ou o Solar de Monjope.
Chegamos ao decreto Rio Nº 55729, da prefeitura do Rio de Janeiro, publicado no último dia 03 de março de 2025, declarando de utilidade pública, para fins de desapropriação, o imóvel localizado à rua Roquete Pinto, nº 07, Urca, aquele que foi utilizado como locação para o filme premiado com Oscar, “Ainda estou aqui”.

03 de março de 2025
O referido bem integra a Área de Proteção do Ambiente Cultural – APAC Urca, sujeito a restrições expressas no decreto nº 7.451/88, grupo III, tratando-se de um exemplar com repertório da arquitetura neocolonial, adotada com muita frequência em imóveis públicos e residenciais no Rio de Janeiro, principalmente ao longo da década de 1920.

Fonte: Google Street View
Muito representativo na capital carioca, as origens desse movimento estão associadas à iniciativa pioneira do engenheiro e arquiteto português Ricardo Severo, radicado em São Paulo, sócio de Ramos de Azevedo, notável engenheiro-arquiteto, proprietário de um escritório técnico dos mais importantes do país.
Severo ministrou palestras sobre as possibilidades da arquitetura tradicional luso-brasileira, projetou diversas obras, influenciou contemporâneos, como Victor Dubugras em seu Largo da Memória ou nos mirantes do Caminho do Mar.
No Rio de Janeiro, o movimento obteve ampla receptividade, inclusive por órgãos de classe, como o recém criado Instituto dos Arquitetos. Alguns mecenas, como o médico José Marianno Filho, foram responsáveis por sua adoção e expansão, até o final da década de 1940.
O imóvel, construído no final da década de 1930, objeto do decreto citado, está inserido nos princípios desse movimento, quase sempre menosprezado pela história oficial que, por vezes, associa-o equivocadamente ao ecletismo.
A escolha da residência neocolonial na Urca, inspirada em sua vertente mexicana, procurou uma desejável aproximação com o modelo original, citado no livro de Marcelo Rubens Paiva, localizada na praia do Leblon, demolida pela especulação imobiliária, após um curto período ocupada por um restaurante.

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Assim como tantos outros imóveis da orla carioca, aquela casa foi demolida, no início da década de 1980, substituída por um luxuoso edifício multifamiliar, sem qualquer manifestação contrária.

Google Street View
Repentinamente, por conta de uma premiação (efetivamente importante para os rumos do cinema nacional), a prefeitura decide supervalorizar um cenário, conforme divulgado pela própria municipalidade:
“Hoje sairá publicado em Diário Oficial Extra da Prefeitura do Rio que decidimos comprar/desapropriar e transformar o imóvel do filme “Ainda Estou Aqui” na Casa do Cinema Brasileiro. Vamos tornar público e abrir para visitação o espaço que trouxe o primeiro Oscar do Brasil em quase 100 anos da premiação”.
Acrescente-se que o referido imóvel estava à venda, por aproximadamente R$15 milhões, valor quase duplicado após a premiação do Oscar 2025.
Ainda segundo a prefeitura, “Faremos da casa onde foi gravado o filme um lugar de memória permanente da história de Eunice Paiva e sua família, da democracia e ainda uma homenagem às duas grandes mulheres que orgulham o Brasil e deram vida a ela – Fernanda Torres e Fernanda Montenegro”. Além disso, o lugar poderá abrigar exposições sobre a trajetória do Brasil no Oscar e servir de sede da Rio Film Comission.
As questões relativas ao Patrimônio Cultural devem ser tratadas com extrema clareza, evitando-se as possibilidades de sacralização do objeto, principalmente se este não for efetivamente revestido do valor que lhe é atribuído. Trata-se de um eficiente instrumento de lapidação da memória e cidadania, que se subverte ao contemplar simulacros ou simplesmente cenários que sugerem, mas não representam os fatos que justifiquem efetivamente sua valorização.
As questões aqui apresentadas não se referem, absolutamente, à importância do prêmio, ao trabalho das atrizes ou o que representa a figura de Eunice Paiva. Talvez até mesmo em respeito a tais valores, a exaltação de um cenário, ilusório ponto turístico, compromete a luta de personalidades como ela, buscando incessantemente a verdade dos fatos para continuar sua caminhada.