Cirurgias, crise climática e desigualdades globais

Entre outros impactos à saúde, as mudanças no clima também exigem ampliar o acesso a operações, em especial no Sul Global. E mais: é preciso reduzir a pegada ambiental de centros cirúrgicos. G-20 deve buscar saídas para mitigar essas questões

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Por Siddhesh Zadey e Ayla Gerk Rangel, no Think Global Health | Tradução: Gabriela Leite

Durante as últimas cúpulas do G-20 no Brasil e na Índia, os delegados consideraram, por consenso, que a saúde é um ingrediente essencial para a estabilidade social e a vitalidade econômica dos países membros. As reuniões debateram de forma abrangente os impactos das mudanças climáticas na saúde, a resiliência dos sistemas e a cobertura universal de saúde [1].

No entanto, a questão das cirurgias, apesar de estar intrinsecamente conectada, permaneceu sub-representada nas discussões. Embora a Declaração Ministerial de Saúde do G-20 sobre Mudança Climática, Saúde e Equidade reconheça estruturas como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e esteja alinhada com a Estratégia Global da Organização Mundial da Saúde sobre Saúde, Meio Ambiente e Mudança Climática, ações concretas que integrem a cirurgia como parte da solução para as mudanças climáticas e a cobertura universal, dois dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), ainda precisam ser definidas.

Alcançar as metas globais para cuidados cirúrgicos acessíveis e enfrentar as disparidades nacionais e internacionais, sob a ameaça iminente da crise climática, é um desafio enorme que exige uma coalizão das nações mais prósperas. Portanto, os países membros do G-20 têm uma imensa responsabilidade de elaborar soluções antes da próxima cúpula do G20, na África do Sul.

Cirurgia e Mudança Climática

Os países do G-20, cujas populações combinadas somam mais de 4,9 bilhões de pessoas e a maioria da força de trabalho cirúrgica global, realizam milhões de operações todos os anos. Membros como Japão, Reino Unido e Estados Unidos fizeram contribuições financeiras notáveis para promover inovação, iniciativas de prestação de serviços e pesquisas em cuidados cirúrgicos em países ao redor do mundo. No entanto, as necessidades superam as conquistas.

As mudanças climáticas aumentam a demanda por cirurgias – e os cuidados cirúrgicos contribuem para a mudança climática. Primeiro, o aumento da frequência de eventos extremos, como inundações e secas, eleva o risco de danos à infraestrutura de cuidados cirúrgicos, especialmente em regiões vulneráveis. Segundo, a mudança climática aumenta a carga de doenças que podem exigir mais cirurgias. Por exemplo, o calor extremo aumenta o risco de incêndios florestais. Áreas com incêndios frequentes têm baixa visibilidade, o que contribui para mais acidentes de trânsito. As vítimas desses acidentes muitas vezes precisam de cuidados traumáticos. Vítimas de incêndios florestais também podem necessitar de cuidados cirúrgicos de emergência e trauma.

Os cuidados cirúrgicos, por outro lado, também podem contribuir para a crise climática. Nos países membros do G-20 de alta renda, as salas de operação consomem de três a seis vezes mais energia do que o hospital como um todo. Estimativas mostram que a pegada de carbono anual dos cuidados cirúrgicos no Canadá, Reino Unido e Estados Unidos pode chegar a 9,7 milhões de toneladas de equivalentes de dióxido de carbono (CO2).

A Índia – o país mais populoso do G20 –, por falta de recursos, deixou de fazer 49 milhões de operações em 2019. A situação é semelhante em outros países de baixa ou média renda. Além dos números agregados, as disparidades internas são gritantes em outros grandes países. Em 2014, o Brasil tinha 18 cirurgiões, anestesistas e obstetras ou ginecologistas por 100 mil pessoas na região Norte, em comparação com 46 por 100 mil no Sudeste – a recomendação da Comissão Lancet é de 20 por 100 mil. Tais disparidades muitas vezes refletem desigualdades sociais mais amplas. Por exemplo, comunidades indígenas no Brasil muitas vezes não conseguem acesso a cirurgias essenciais e de emergência quando necessário. Na Índia, áreas rurais, tribais e montanhosas sofrem mais com a falta de acesso a centros cirúrgicos.

Essas desigualdades e desafios são agravados pela crise climática, conflitos e surtos de doenças. A pandemia de covid-19 interrompeu significativamente os sistemas de cuidados cirúrgicos em todo o mundo, causando um acúmulo crescente de procedimentos. No Brasil, por exemplo, mais de 1 milhão de cirurgias foram adiadas ou canceladas entre março e dezembro de 2020. Esse acúmulo ilustra a interconexão entre os serviços de saúde e a necessidade de estratégias amplas para mitigar os impactos das crises de saúde pública. 

À frente da próxima cúpula do G20 na África do Sul, os estados membros têm a oportunidade de desenvolver políticas que reduzam o impacto climático da cirurgia global e construam resiliência climática.

Construindo Resiliência Climática por Meio da Cirurgia

O setor de saúde contribui com aproximadamente 5% de todas as emissões globais de gases de efeito estufa, e as salas de operação geram mais de 50% de todos os resíduos hospitalares. Um dos principais estudos que medem a pegada de carbono dessa atividade descobriu que uma única operação de catarata no Reino Unido tinha uma pegada de 181,1 quilos de equivalentes de CO2

O Sistema de Cuidados Oculares Aravind, no sul da Índia, observou que suas estratégias sustentáveis – como a reutilização de aventais cirúrgicos, cobertores e instrumentos, protocolos racionais de esterilização e monitoramento do uso de eletricidade – reduziram a pegada de carbono da cirurgia de catarata para 5% daquela do Reino Unido, sem comprometer a qualidade e a eficiência dos procedimentos. 

Este momento pode ser crucial para pesquisadores e clínicos de países de renda média e baixa demonstrarem que há caminhos para soluções de baixa pegada de carbono. As cúpulas do G-20 devem destacar tais soluções cirúrgicas para o compartilhamento de conhecimento centrado nesses países, onde os benefícios da cirurgia têm impactos sociais e ambientais mais amplos.

Países do G20 de Alta Renda Devem Contribuir Mais para o Financiamento de Cuidados Cirúrgicos

No entanto, os investimentos que já foram feitos não são suficientes para cobrir as necessidades não atendidas. A última década de pesquisa mostrou que investimentos em cirurgias essenciais e de emergência são custo-efetivos, que cirurgias acessíveis podem aliviar a pobreza e que o custo da inação na produtividade social é enorme.

Os líderes do G20 devem, portanto, captar recursos para investimentos estratégicos em cuidados cirúrgicos para os países mais necessitados. Yaneth Giha, diretora executiva da Federação Latino-Americana da Indústria Farmacêutica, destacou que a saúde deve ser vista como um investimento, e não como uma despesa – dado que impulsiona o crescimento social e econômico. Por exemplo, os gastos com saúde na América Latina aumentaram de 6,73% do PIB em 2005 para 7,96% em 2019, mas ainda ficam abaixo da média global de 10,34%. O gasto privado representa quase metade desse total, afetando desproporcionalmente populações de baixa renda.

Expandir os sistemas cirúrgicos não é apenas uma prioridade de saúde, mas também uma necessidade econômica. Estimativas sugerem que a ampliação dos cuidados cirúrgicos em países de renda média e baixa exigiria 350 bilhões de dólares. No entanto, o custo da inação é muito maior. A Comissão Lancet  sobre Cirurgia Global estima que esses países podem enfrentar uma perda econômica cumulativa de 12,3 trilhões de dólares até 2030, a menos que as necessidades cirúrgicas sejam atendidas. Essa perda ultrapassaria 1,5% do PIB na América Latina e no Caribe, sobrecarregando ainda mais os já limitados orçamentos de saúde.

Países do G20 Devem Implementar Melhores Ferramentas de Saúde Digital

Pesquisas colaborativas de intervenção, incluindo ensaios pragmáticos, podem melhorar a qualidade cirúrgica nos países de renda média e baixa e otimizar o uso de recursos em todo o mundo. Pesquisas de implementação envolvendo parceiros locais podem ajudar a reduzir ineficiências do sistema de saúde, superar lacunas de habilidades e garantir caminhos de cuidados suaves. Juntas, essas iniciativas de pesquisa e desenvolvimento formam a base para melhorias baseadas em evidências na medicina e na saúde pública em geral. 

[…] Se três países membros do G20 – Brasil, Índia e Indonésia – adotassem e implementassem planos nacionais de cirurgia [2], poderiam melhorar a vida de 1,9 bilhão de pessoas, incluindo aquelas sem acesso a cuidados e mais vulneráveis à mudança climática. Além disso, esses planos devem se concentrar no acesso equitativo aos cuidados cirúrgicos e na construção de sistemas cirúrgicos verdes em LMICs. As cúpulas do G-20 podem ajudar a construir a vontade política necessária para iniciar tais iniciativas de planejamento.

Apesar desses benefícios claros, a cirurgia ainda não é uma prioridade em muitas agendas de saúde. A Organização Pan-Americana da Saúde reconheceu recentemente os cuidados integrados de emergência, críticos e operatórios como fundamentais para as estratégias de atenção primária à saúde. Embora isso esteja refletido na agenda de resiliência em saúde do G-20 no Brasil, estratégias mais precisas ainda estão ausentes. 

Essa omissão é uma oportunidade perdida, especialmente porque as políticas de cobertura universal são centrais para o alcance dos ODS. Planos nacionais de cirurgia já implementados em 11 países demonstram como tais políticas podem abordar barreiras à cobertura universal de saúde, como escassez de força de trabalho, compromisso político e desafios de financiamento. Integrar a cirurgia em reformas de saúde mais amplas não é apenas prático – é essencial.

É hora de parar de marginalizar os cuidados cirúrgicos e torná-los um pilar dos sistemas globais de saúde. Os países membros do G-20 têm a oportunidade e a responsabilidade de garantir o acesso universal aos cuidados cirúrgicos, com foco na equidade em cada etapa do caminho. Como atual presidente do G-20, o Brasil focou em uma agenda de “sistemas de saúde resilientes” que inclui alcançar a cobertura universal de saúde, fortalecer os sistemas de saúde e melhorar a preparação e resposta a pandemias, mas ignorou em grande parte o papel central que a cirurgia desempenha no alcance desses objetivos. Além de estratégias direcionadas, grandes discussões sobre cirurgia estiveram ausentes.

Ao fortalecer a força de trabalho cirúrgica, implementar políticas nacionais de cirurgia e investir em cuidados operatórios, a comunidade global de saúde pode dar grandes passos em direção a sistemas de saúde equitativos e resilientes em todo o mundo.


[1] Há importantes críticas à promoção da chamada “cobertura universal da saúde”, iniciativa da OMS que acaba por incentivar a entrada sorrateira da saúde privada, por meio de seguros de saúde, em países de baixa renda – e que, além disso, está estagnada desde 2019. Você pode ler mais aqui e aqui. [N. da T.]

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