Desmercantizar a moradia, luta pós-capitalista

Submetido às lógicas do lucro, o morar corrói salários, endivida e precariza. E se viver em casa digna fosse direito universal e gratuito, como devem ser Educação e Saúde? Miragem? Construir outra sociedade requer desafiar o senso comum

Projeto Habitacional Pruitt-Igoe (EUA), do arquiteto Minoru Yamasaki. Foto: “The Pruitt Igoe Myth”
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Por Luis Sanmartín, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues

Imaginemos por um momento que trabalhássemos para uma empresa que nos paga muito abaixo dos rendimentos que geramos para organizar nossa vida. Na verdade, não será tão difícil imaginar isso, porque o capitalismo se baseia precisamente nessa dinâmica: os trabalhadores geram riqueza com seu trabalho, da qual só recuperam uma pequena parte na forma de salário, enquanto todo o valor restante é apropriado pela classe capitalista. Os benefícios que nunca retornam aos trabalhadores, que nunca são objeto de administração democrática por parte da força de trabalho, constituem o que Marx chama de mais-valia. Em resumo, a acumulação de capital de alguns poucos se baseia no princípio de não remunerar integralmente os frutos dos esforços dos próprios trabalhadores.

Mas agora imaginemos que, além desse roubo sistemático, os trabalhadores tivessem que pagar pela luz, seguros ou créditos que os capitalistas adquirem. Nos pareceria absurdo. A tirania dentro da tirania. Afinal, o trabalhador já vende sua força de trabalho por um preço injusto; além disso, teria que arcar com os custos que envolvem a atividade econômica? Eis um aspecto crucial da acumulação de capital: o trabalhador recebe um salário que, na maioria das vezes, é o mínimo que o empregador está disposto ou obrigado a pagar. É tão miserável que obriga o trabalhador a gastá-lo quase inteiramente na luta pela sobrevivência. Ou seja, para comer, beber, abrigar-se e reproduzir-se. De fato, é curiosa a crítica de Marx de que, no sistema capitalista, só nos sentimos livres ao cobrir necessidades básicas, o que paradoxalmente reduz nossa vida à ditadura do ciclo de trabalho, consumo, descanso e reinício do ciclo; limitando o tempo para a participação política, a criatividade pessoal e a socialização com entes queridos.

A esse respeito, Federici vem realizando análises magistrais que apontam que a base sobre a qual todo o sistema capitalista se sustenta é a reprodução da força de trabalho. Ou seja, se os trabalhadores não se reproduzem, não são criados e não conseguem sobreviver, simplesmente o sistema de acumulação de capital não pode funcionar. Alguém tem que criar a riqueza que os capitalistas saqueiam e, por enquanto, esse sujeito tem um corpo biológico com necessidades materiais. O argumento é bastante simples, até mesmo óbvio, e no entanto está oculto por trás de falsos consensos. Em outras palavras, se não há atividade empresarial sem que o ser humano tenha acesso a bens como água, ar, alimentação ou cuidados, por que esses bens devem ser custeados pelos trabalhadores? O empresário não estaria externalizando custos que deveria assumir para os trabalhadores?

Essa externalização dos custos não só permite que a classe capitalista acumule mais riqueza, mas também gera um circuito fechado no qual o trabalhador não pode se emancipar, já que não tem possibilidade real de economizar, o que o leva a uma maior dependência e vulnerabilidade. O capitalismo tende a conceder, no máximo e a contragosto, um salário ajustado para consumir bens básicos; oferecidos muitas vezes a preços inflacionados. Um bom exemplo cinematográfico é o filme As Vinhas da Ira, baseado no romance de John Steinbeck e ambientado na crise de 1929. No filme, alguns trabalhadores migrantes são mal pagos pelos donos de uma fazenda agrícola em troca de colher frutas. E sua escassa remuneração se esvai no momento de comprar alimentos, que são fornecidos pelos próprios donos da fazenda. Mas no filme, além dos alimentos, há outro bem básico para a reprodução da vida que leva ao desaparecimento de todo o salário restante: a moradia, que também é monopolizada pelos latifundiários da fazenda.

A moradia privada, dispositivo de reprodução e extração

Que a moradia é um bem necessário para a reprodução da vida é praticamente uma obviedade. No entanto, no capitalismo, a moradia assume a forma de propriedade privada. Ou seja, torna-se propriedade de um indivíduo ou associação de indivíduos, que convertem um bem básico em um ativo financeiro. Isto é, um elemento que garante uma entrada estável e progressivamente crescente de lucros, para os quais os especuladores não precisam fazer quase nenhum esforço. São os trabalhadores que devem criar riqueza, para receber uma pequena parte na forma de salário, que depois é transferida para os especuladores; e, em troca, residem em propriedades que os próprios trabalhadores consertam, melhoram, limpam e mantêm. Dessa forma, a moradia se torna um dispositivo de extração que pode veicular diversas relações sociais de domínio.

Durante os anos posteriores à crise financeira de 2008, destacou-se a relação social entre credores e devedores. Milhares de pessoas haviam perdido seus empregos por causa de uma crise gerada pela especulação bancária. Os governos priorizaram proteger os bancos, com legislações que permitiam despejos e dificultavam a eliminação de dívidas abusivas. Apenas segundo os dados do Conselho Geral do Poder Judiciário, de 2008 a 2019, foram executadas 765.000 execuções hipotecárias no Estado espanhol. Ou seja, uma massa de pessoas foi despejada de suas casas, ficando presas em dívidas hipotecárias impagáveis, apesar de terem sido despojadas de quase tudo. Dessa forma, testemunhamos uma geração massiva de devedores que, mesmo tendo perdido suas casas, precisavam encontrar uma maneira de gerar riqueza para cobrir uma dívida. O restante dos hipotecados que não foram executados recebeu um aviso claro: se não conseguissem renda para cobrir a hipoteca, aceitando qualquer trabalho em condições desumanas, seu destino poderia ser a falta de moradia.

No entanto, o capital se rearticulou especialmente a partir de 2013 em torno do aluguel. A incapacidade de acessar novos créditos hipotecários e a ausência de legislações eficazes para garantir arrendamentos longos e acessíveis atraíram uma onda de atores vampíricos. Fundos financeiros, bancos, imobiliárias e multiproprietários começaram a canalizar massivamente dinheiro na compra e acúmulo de imóveis em todo o mundo. Nomes como Blackstone, Cerberus, Solvia ou La Llave de Oro tornaram-se comuns. Sua lógica é simples: todo ser humano precisa de uma moradia para viver adequadamente, portanto, a margem para inflacionar os preços é muito alta. E acabou transferindo para os trabalhadores a pressão de gerar riqueza, da qual só lhes será devolvida uma ínfima parte na forma de salário que irá diretamente para os bolsos dos proprietários imobiliários.

O circuito é abissalmente perverso. A base do sistema é sustentada pelos trabalhadores, que é sua própria força de trabalho. Mas, para reproduzir essa força de trabalho, é necessária uma moradia. E a moradia, sob a forma de propriedade imobiliária, torna-se a correia de transmissão dos escassos rendimentos dos trabalhadores para os bolsos de proprietários que não trabalham, não se esforçam nem inovam. Este é o vínculo atual entre rentistas e inquilinos, que precarizou amplas camadas da população. Em resumo, os rentistas agem de forma parasitária e, junto com os patrões, extraem o valor gerado pelos trabalhadores, deixando-os presos em um circuito de reprodução da força de trabalho e produção de riqueza em torno da acumulação de capital.

Tornaram-se comuns manchetes sobre como o preço do aluguel aumentou mais de 50% nos últimos cinco anos, que a Geração Z precisaria dedicar mais de 90% de seus rendimentos para pagar um aluguel, que em Mallorca popularizou-se o aluguel de camas ou sobre as dificuldades de planejar a vida devido à efêmera duração dos aluguéis de temporada. Todos esses títulos mostram uma realidade subjacente: a moradia, quando é privada, torna-se um dispositivo de reprodução e extração da classe trabalhadora; de sobrevivência e roubo ao mesmo tempo.

A moradia gratuita, dispositivo de reprodução e emancipação

A moradia gratuita é uma medida que desperta simpatias e antipatias nos espaços militantes. No entanto, é um horizonte que não pode ser ignorado. Se nos opomos a que os trabalhadores sejam explorados no trabalho para depois serem parasitados por meio da moradia, isso deveria, consequentemente, nos inclinar a apoiar a moradia gratuita. Se nos opomos à conluio entre patrões e o setor imobiliário, isso nos orienta coerentemente a defender uma moradia universal. A moradia é um bem necessário como a água, os alimentos, o ar e os cuidados. Sem bens básicos, não existe sociedade, e sem sociedade, não existe economia alguma. Portanto, assim como os demais aspectos que sustentam a vida, a moradia deve ser garantida a todas as pessoas. O que obscurece uma conclusão ética e tática tão transparente é a ideologia imobiliária, que, desde as origens do capitalismo, transformou a propriedade em algo sagrado, relegando a vida digna a uma posição subsidiária.

Pensemos que um fator determinante nas crises imobiliárias do século XXI tem sido a ausência de uma moradia pública forte. De fato, o município referência pelo direito à moradia é Viena, uma cidade que combina um parque habitacional composto por aproximadamente um terço público, outro terço cooperativo e o último terço privado, mas com preços regulados. E, no entanto, essa cidade também tem sido vítima de aumentos de preços nos últimos anos devido à pressão dos atores imobiliários. Até mesmo a Holanda, que possui 30% de parque público, precisou legislar em 2019 que os compradores de uma moradia em Amsterdã deveriam residir no imóvel adquirido por 4 anos, para evitar a entrada de fundos financeiros que vinham comprando quantidades significativas de moradias para depois inflacionar os preços.

Se essas ilhas habitacionais também sofrem com a inflação de preços, já podem imaginar o resto dos países. Os países da União Europeia apresentam uma média de 15% de parque público, e no estado espanhol não se chega nem ao exíguo 2%, o que impossibilitou uma alternativa efetiva ao crédito hipotecário e ao aluguel privado. No entanto, existe um caso paradigmático que nos serve de referência: o município sevilhano de Marinaleda. Uma localidade governada por uma força comunista, que cede terrenos aos habitantes para a autoconstrução de moradias. Esses processos de construção contam com o apoio técnico da administração local e possibilitam que os habitantes economizem tantos custos que acabam pagando no máximo 20 euros por mês por moradias de mais de cem metros quadrados.

Possíveis caminhos para uma moradia gratuita

A utilização de poderes públicos e espaços autogeridos será fundamental nas próximas décadas para construir um parque habitacional gratuito, público, universal, de qualidade e popular. As condições materiais atuais claramente dificultam que a moradia cumpra plenamente todas essas características por meio de uma única ação política. Mas é possível construir um novo consenso apoiado por experimentos habitacionais e práticas políticas inovadoras. De fato, tais estratégias poderiam ser classificadas em torno da provisão de dois tipos de moradia pública.

Por um lado, a moradia público-administrativa, desde que seja de titularidade e administração institucional. E temos bons exemplos históricos de proteção e provisão gratuita de bens básicos por meio do compromisso institucional: a saúde que nos cuida, a educação que nos forma, os bombeiros que nos protegem, os guardas florestais que protegem nosso patrimônio natural e os bibliotecários que nos legam conhecimentos acumulados. Essa é uma forma de socialismo que já existe entre nós e que é fundamental para superar a fase privatizadora do capitalismo atual. E que não deve servir apenas para recuperar os serviços públicos que outrora formaram o Estado de bem-estar, mas também se expandir para todos os bens básicos e a sociedade como um todo. Nessas coordenadas de transformação, a moradia é central para garantir uma vida humana digna. E, como os demais serviços públicos, deveria ser mantida com altos impostos sobre grandes patrimônios até que consigamos construir uma economia diferente onde a riqueza seja socializada.

Por outro lado, a moradia público-comunitária, desde que as instituições facilitem o desenvolvimento de projetos autogeridos. E também contamos com o modelo cooperativo como um caso-chave na construção desse modelo híbrido. Definindo as cooperativas de moradia como projetos conduzidos por organizações assembleárias, que de forma igualitária buscam recursos e dirigem os projetos de construção e reabilitação de moradias que depois habitam. Tais cooperativas encontrariam um maior impulso se tivessem acesso geral a terrenos públicos gratuitos e se recursos econômicos e técnicos fossem cedidos às camadas mais populares da população para participar dessas iniciativas.

Não pretendo aqui fazer uma lista exaustiva de práticas e tipologias de caminhos para acessar uma moradia pública que tenda à gratuidade. A imaginação política que pode e deve ser desenvolvida a partir dos âmbitos políticos será fundamental para mudar de uma forma privada para uma forma pública em torno da moradia. Mas é importante ressaltar que tais caminhos são possíveis, desejáveis e até necessários. Toda melhoria na condição da classe trabalhadora, por menor que seja, é uma batalha valiosa. Ao mesmo tempo, não caiamos na armadilha de limitar nossos esforços a suavizar os aspectos mais terríveis do capitalismo habitacional. É necessário romper o consenso de que a moradia deve ser privada, e a forma lógica é reivindicar uma moradia pública, gratuita, universal, de qualidade e popular. Começar a pensar em discursos, reivindicações, práticas, políticas, canções e símbolos que consolidem uma hegemonia sobre a moradia como um bem acessível a todo ser humano. Caminhar para que a moradia deixe de ser um dispositivo de extração e passe a ser uma ferramenta de emancipação. O mundo que conhecemos foi construído pela força dos trabalhadores, e é por isso que os trabalhadores devem reivindicá-lo legitimamente em sua totalidade.

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