Nísia Trindade: “Fui ministra do SUS”
Em sua despedida, ela falou sobre seus 25 meses à frente do Ministério da Saúde, após anos de destruição. Enalteceu o trabalho conjunto e a participação social. E criticou aqueles que a atacaram sistematicamente. Leia o discurso completo
Publicado 11/03/2025 às 11:07 - Atualizado 11/03/2025 às 11:49

Ontem, 10 de março, em Brasília, aconteceu a posse do novo ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Na cerimônia, que também empossou Gleisi Hoffmann na pasta da Secretaria de Relações Institucionais, Nísia Trindade fez sua despedida. Outra Saúde publica, abaixo, seu discurso na íntegra. É possível assistir à cerimônia completa aqui.
A minha situação é diferente dos dois ministros. O ministro Alexandre Padilha permanecerá, a ministra Gleisi Hoffmann acaba de concluir esse período na presidência do Partido dos Trabalhadores e assumirá a Secretaria de Relações Institucionais.
Portanto, minha fala é de despedida dessa posição. Para evitar me perder e falar aquilo que eu considero importante nesse momento, eu preparei um texto e vou procurar lê-lo dentro de um tempo não muito longo.
Antes disso, eu não poderia deixar de falar da importância de ver esse salão com tantas pessoas, além das autoridades mencionadas, servidores de todos os ministérios, movimentos sociais, deputadas e deputados, senadores e senadoras. É de fato um momento especial da República, porque é uma posse muito importante em dois ministérios fundamentais para as relações interfederativas — a Saúde também o é, e para o avanço do projeto liderado pelo presidente Lula.
[…]
Eu busquei, como seria inevitável, após dois anos de trabalho tão intenso, que na verdade se sucederam a seis anos de trabalho intenso em prol da saúde do nosso país e da defesa da democracia, organizar as ideias. E me ocorreu um texto que eu escrevi e não publiquei. Para dar início a essa saudação e a essa fala, e é o que eu [lerei] agora.
Em agosto de 2019, Rosiska Darcy de Oliveira, uma querida amiga referência do feminismo brasileiro, me convidou a proferir conferência na Academia Brasileira de Letras com o tema “O que falta ao Brasil?”
Respondi a pergunta propondo uma inversão. Precisávamos, na verdade, pensar no Brasil que falta para a grande maioria da nossa sociedade. Estamos entre as dez maiores economias do mundo, mas somos um dos países mais desiguais, onde 1% mais rico da população concentra 28% da renda total.
A desigualdade se concretiza no acesso a serviços, a exemplo da espera para consultas e exames num SUS que precisa ser fortalecido. Também nas condições de alimentação, tema prioritário do governo do presidente Lula, como vimos no G-20 e como se coloca para o nosso país. No impacto das crises ambientais que afetam de forma diferente a população e todo o reflexo na saúde.
Em suma, pobreza e desigualdade fazem mal à saúde e a superação desse quadro requer efetivas políticas públicas. Por acreditar na urgência dessa tarefa e após presidir a Fiocruz e ter-me colocado na linha de frente na proteção da sociedade brasileira durante a pandemia de covid-19, aceitei com entusiasmo o convite do presidente Lula para integrar a equipe deste seu mandato.
As tarefas de reconstrução do SUS e de desenvolver políticas inclusivas são inadiáveis. Trata-se de um projeto para o Brasil, seu presente e seu futuro, um país desafiado por crises ambientais, conflitos armados no plano mundial e ameaças à democracia.
O mundo olha para o Brasil em busca de soluções e a saúde faz parte dessas respostas, como ficou evidente nas resoluções do G-20. Presidente Lula, como é de seu conhecimento, encontrei o Ministério da Saúde desmontado e desacreditado.
Ele perdeu a sua autoridade de coordenar o SUS após a terrível experiência das 700 mil mortes por covid-19 no governo passado. Durante o nosso trabalho de reconstrução, encontramos mais de 4.500 unidades básicas de saúde instaladas que aguardavam credenciamento havia quatro anos, mais de 4 mil obras paralisadas, inúmeros leitos de UTI não cadastrados, a Rede de Atenção Psicossocial, diante de uma saúde mental tão fragilizada, também desmontada. O Farmácia Popular com risco de paralisação, a crise por desassistência do povo Yanomami, entre tantas outras situações alarmantes. Enfrentamos esse grave quadro, contando com ampliação dos recursos financeiros para o Ministério da Saúde após a chamada Emenda Constitucional da Transição.
Não apenas o piso constitucional da saúde foi restabelecido, como houve aumento significativo dos recursos federais alocados. A tarefa de reconstrução envolveu avanços na retomada e ampliação de programas de grande impacto social, como o Mais Médicos, que dobrou o número de profissionais, o Farmácia Popular, agora com 100% da lista de 41 medicamentos e fraldas geriátricas de graça, a Estratégia da Saúde da Família fortalecida, o SAMU com a frota renovada e em breve em todo o país. Saúde mental, saúde indígena e Brasil Sorridente devidamente valorizados. Merecem destaque, a meu ver, as inovações do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, a missão 2 da Nova Indústria Brasil, ministro [do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo] Alckmin, que impulsionam os serviços prestados à população, ao mesmo tempo em que são cruciais para a autonomia do país nas áreas de produção de vacinas, medicamentos, equipamentos e de soluções de tecnologias de informação, integração de dados e telessaúde.
É preciso destacar a recuperação da cobertura vacinal após os anos de negacionismo. O Brasil saiu da vergonhosa lista dos 20 países com mais crianças não vacinadas no mundo. Em 2021, ocupava o sétimo lugar. Nesse período, também foi possível recuperar o certificado de país livre do sarampo, perdido em 2019. Ou seja, são nossas crianças, é nossa sociedade protegida de doenças evitáveis, preveníveis com a vacinação. E essa luta precisa continuar.
Gostaria de destacar também o retorno à normalidade da Comissão Intergestores Tripartite, que reúne representantes do Governo Federal de estados e municípios. Retomamos a prática das decisões com base em consensos, a cooperação e a corresponsabilização como método e como resultado.
Da mesma forma, vimos de perto a situação dos municípios brasileiros e atuamos para, de forma colaborativa, atender às suas necessidades de saúde. Em 2024, enfrentamos a maior epidemia de dengue da história. A dengue tornou-se um problema de saúde global, dado o aumento da temperatura, como sabemos, decorrente da mudança climática. Em um país onde convivemos com epidemias dessa doença há 40 anos, lidamos com um cenário diferente, mas sabemos que as respostas não cabem apenas ao setor saúde.
[Demandam] ações de saneamento ambientais, de mobilização de prefeituras e da sociedade, e também a utilização em escala nacional de tecnologias cientificamente comprovadas e ambientalmente sustentáveis, como vínhamos fazendo até então.
O Ministério da Saúde não se furtou a realizar nenhuma ação em apoio a estados e municípios. Na última terça-feira, dia 25, assinei ao lado o presidente Lula, a portaria que estabelece parceria entre o governo federal e o Instituto Butantan para a primeira vacina 100% nacional destinada à proteção frente a dengue.
Desafios históricos em quase 40 anos de criação do SUS foram enfrentados em ações efetivas em benefício da nossa população, a exemplo do programa de reestruturação dos hospitais federais do Rio de Janeiro.
Em todas as ações, os princípios da universalidade e integralidade do SUS estiveram presentes, e o de equidade, com a busca da reparação de injustiças históricas no nosso país — o que me levou a intensificar ações de saúde dirigidas a grupos sociais em situação de vulnerabilidade, povos indígenas, população negra, populações quilombolas e ribeirinhas, grupos com demandas específicas, como a população LGBTQIA+, mulheres, vítimas que somos também de injustiças históricas, pessoas com deficiências, população dos territórios de favelas e periferias, ao lado do combate intenso ao racismo estrutural, infelizmente, ainda presente na nossa sociedade.
Presidente Lula, obrigada por toda a sua atuação como líder do nosso país, e meu muito obrigada pela oportunidade de realizar um trabalho em que acredito. Reconstruímos no Ministério da Saúde — falo no plural porque foi um trabalho de equipe, ao lado também de todo o ministério que compõe o seu governo, por isso uso o plural agora –, reconstruímos programas que foram marcas fortes nas suas gestões anteriores e nas da presidenta Dilma.
Além disso, inovamos. Pela primeira vez na história do SUS foi aprovada a política para atenção de média e alta complexidade. Desde o início do governo, em 2023, realizamos o programa de redução de filas de cirurgia. No ano passado o Ministério da Saúde registrou o maior número de procedimentos cirúrgicos realizados na história do SUS, 14 milhões de procedimentos.
Apoiamos a reestruturação do setor filantrópico, responsável por 70% das internações hospitalares no país. Ao lado do MEC [Ministério da Educação], fortalecemos os hospitais universitários e a Ebserh [Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares]. Mantivemos colaboração virtuosa com o setor privado, tanto na área da produção industrial como na área assistencial.
Essas experiências foram básicas para a iniciativa do programa Mais Acesso a Especialistas, uma prioridade sempre lembrada pelo senhor. Uma necessidade também muito identificada pela população e pelo campo da saúde coletiva, do qual faço parte, e agravada pelo impacto da pandemia de covid-19.
O programa visa a integração entre consultas e exames, visa às pessoas, evitando atrasos de diagnósticos e tratamento. Em poucas palavras, trata-se de menos tempo e mais qualidade. Esse conjunto de ações tem por princípio a organização em rede, marca do SUS. Somente por esse motivo e por esse caminho acredito ser possível aprimorar o sistema e garantir a saúde como direito, tal como estabelece nossa Constituição.
Creio que seja esse o legado que deixo: reconstruir o SUS e a capacidade de gestão do Ministério da Saúde. O SUS tornou-se, na percepção pública, uma grande marca durante a pandemia de covid-19. Tenho orgulho de afirmar que fui ministra do SUS. Um trabalho de tamanha envergadura só poderia ser realizado com sua liderança, presidente Lula, e o apoio do conjunto de seu gabinete ministerial e da sociedade organizada.
Não faltaram também diálogo e colaboração com o poder legislativo aqui representado pelos dois presidentes das Casas, com o poder judiciário, com a comunidade científica, com os gestores e trabalhadores do SUS, com os artistas e a imprensa, tão importantes em nossas campanhas e na divulgação junto à sociedade, com o setor privado e com os movimentos sociais a que faço uma referência especial.
Muito obrigada pelo trabalho conjunto. O Conselho Nacional de Saúde, Fernanda [Magano, presidenta do CNS], retomou seu histórico protagonismo no SUS. Lembro com muita emoção, ainda que não pude estar presente porque estava apoiando todas as ações do Governo Federal no Rio Grande do Sul, mas em 2024, liderei junto à Assembleia Mundial de Saúde a proposta de resolução que estabelece a participação social como necessidade e premissa de todos os sistemas de saúde do mundo.
Socióloga com muito orgulho e sanitarista também com muito orgulho, fui a primeira mulher a ocupar a presidência da Fiocruz e o cargo de ministra da Saúde do Brasil. O fiz com o apoio de uma equipe fantástica.
Aproveito este momento para, em nome do secretário Berger [Swedenberger do Nascimento Barbosa, secretário-executivo da gestão de Nísia] e da secretária [de Informação e Saúde Digital do Brasil] Ana Estela Haddad, agradecer a todas e todos que caminharam ao meu lado. Muito, muito obrigada.
Ainda que o sentimento predominante em mim seja a satisfação por ter feito parte da equipe do presidente Lula e ter servido ao meu país, não posso esquecer que durante os 25 meses em que fui ministra, ocorreu uma campanha sistemática e misógina de desvalorização do meu trabalho, da minha capacidade e da minha idoneidade. Não é possível e não aceito, acho que não devemos aceitar como natural o comportamento político dessa natureza.
Podemos e devemos construir uma nova política baseada efetivamente no respeito e destaco o respeito a nós mulheres e no diálogo em torno de propostas para melhorar a vida de nossa população.
Ministro Alexandre Padilha, neste momento lhe desejo sucesso na nova missão e lhe agradeço pela parceria neste tempo em que estive no governo. E ainda quero também desejar sucesso a todo o governo, isso é muito importante, com vistas à efetivação do programa eleito pela maioria da sociedade brasileira e pela construção da democracia em nosso país.
Como falei aos trabalhadores do Ministério da Saúde, temos que ter maturidade política e compreensão do que o país demanda de nós. No meu caso, é hora de seguir em frente atuando em outros espaços, seguindo comprometida com a defesa do projeto de um país mais justo e soberano. No meu ponto de vista, é isso que se faz necessário e é o que eu coloco para mim neste momento.
É este o caminho para efetivamente incluirmos o Brasil que falta.
Muito obrigada.