Pasolini, o corsário anticapitalista
Em seus últimos anos de vida, o cineasta italiano foi implacável na crítica ao consumismo e à cultura de massas. Via-os como fascismo suave, mais perigoso do que o histórico, ao dominar as pessoas pelo prazer e desejo, ao invés da coerção física
Publicado 07/03/2025 às 18:08 - Atualizado 07/03/2025 às 18:09

Por Giovanni Alves, em A Terra é Redonda
Em 2 de novembro de 1975 faleceu um dos maiores escritores e cineastas italianos do século XX: Pier Paolo Pasolini. Ele foi assassinado em Óstia, perto de Roma, em circunstâncias que permanecem controversas e não totalmente esclarecidas. Pasolini foi uma figura multifacetada, conhecido como poeta, cineasta, escritor e intelectual público na Itália. Sua morte prematura representou uma grande perda para a cultura e a arte. Neste artigo faremos considerações sobre a última fase do escritor e cineasta italiano.
A “fase corsária” de Pier Paolo Pasolini refere-se ao período final de sua vida e obra, especialmente na década de 1970, durante o qual ele se tornou um crítico ainda mais contundente e polêmico da sociedade italiana, do capitalismo, do consumismo e da política contemporânea. O termo “corsário” é inspirado nos textos que ele publicou no jornal Corriere della Sera, que foram posteriormente reunidos no livro Escritos Corsários (Scritti Corsari, 1975).
Nessa fase, Pasolini assume a postura de um “corsário”, um pirata literário que ataca implacavelmente as instituições, a cultura e os valores de uma Itália em profunda transformação. Existem antecedentes fílmicos desta fase – Teorema e Pocilga, por exemplo, podem compor com Saló, o que podemos denominar a Trilogia da morte (em contraste com a Trilogia da vida).
Durante a “fase corsária”, Pasolini intensifica sua crítica ao consumismo e à sociedade de consumo que, na visão dele, estava destruindo a autenticidade cultural e humana da Itália. Ele via o consumismo como uma forma de “fascismo suave”, mais insidioso e perigoso do que o fascismo histórico, porque não usava a força bruta para se impor, mas sim a sedução, a manipulação midiática e a mercantilização de todos os aspectos da vida. Pasolini acreditava que o consumismo transformava as pessoas em meros consumidores, alienados e conformistas, incapazes de resistir a um sistema que moldava seus desejos e identidades. Ele argumentava que a nova cultura de massa estava uniformizando a sociedade italiana, apagando as diferenças regionais, populares e de classe que, para ele, eram fontes de autenticidade e riqueza cultural.
A “fase corsária” também é marcada pela denúncia da crescente presença do neofascismo na sociedade italiana, que ele via como um sintoma da crise do capitalismo. Para Pasolini, o neofascismo contemporâneo não era apenas uma expressão de movimentos políticos de extrema direita, mas uma manifestação de um sistema de poder que se expressava através da mídia, da publicidade e do consumismo. Ele via a transformação da sociedade italiana como uma forma de “homologação”, onde todos os aspectos da vida eram submetidos à lógica do mercado e à imposição de valores burgueses e consumistas.
Nessa perspectiva, Pasolini argumentava que a verdadeira violência do fascismo moderno não estava nas manifestações explícitas de poder ou repressão, mas na forma como a cultura de massa e o consumismo colonizavam a consciência das pessoas, levando-as a aceitar passivamente um sistema que as alienava e as transformava em objetos de consumo.
A postura “corsária” de Pasolini também é caracterizada por sua ousadia e disposição para confrontar tabus, hipocrisias e temas controversos. Ele atacava tanto a direita quanto a esquerda, criticando o Partido Comunista Italiano (PCI) por se render ao conformismo e ao aburguesamento, e acusava os intelectuais e políticos de não conseguirem perceber ou enfrentar a verdadeira natureza do fascismo moderno.
Sua postura polêmica também se manifestava na crítica à liberalização dos costumes e à revolução sexual dos anos 1960 e 1970, que ele via como uma extensão da lógica de consumo. Para Pasolini, a liberação sexual não representava verdadeira liberdade, mas sim uma forma de transformar o corpo e a sexualidade em mercadorias, reforçando a alienação e a desumanização que ele tanto criticava.
Os artigos que compõem os Escritos corsários[i] são exemplos claros dessa fase. Neles, Pasolini aborda temas como a destruição das tradições populares, a homogenização cultural, a repressão estatal, a corrupção política e a hipocrisia da sociedade italiana. Ele escrevia de forma direta, contundente e muitas vezes provocativa, desafiando o leitor a enfrentar as verdades desconfortáveis que ele expunha sobre a sociedade contemporânea. Essa postura levou Pasolini a ser visto como uma figura polêmica e muitas vezes marginalizada, mas também como um dos críticos mais lúcidos e visionários de sua época.
Sua análise da relação entre consumismo, cultura de massa e neofascismo antecipou muitas das questões que se tornariam centrais nas décadas seguintes, especialmente a crescente mercantilização da vida cotidiana e a influência insidiosa da mídia e da publicidade na formação da consciência e dos desejos individuais.
A “fase corsária” é, em muitos aspectos, o último ato de resistência de Pasolini contra um sistema que ele via como irreversivelmente corrompido e desumanizador. Sua recusa em se submeter ao conformismo e sua disposição em atacar o consumismo, o neofascismo e a hipocrisia da sociedade italiana tornaram-no um “corsário” – um intelectual que, como um pirata, ataca os navios do poder estabelecido e desafia as certezas e ilusões que sustentam o status quo. Sua trágica e violenta morte em 1975, em circunstâncias até hoje envoltas em mistério, deu a seus escritos e filmes dessa fase uma dimensão ainda mais profética e desesperada, confirmando seu papel como um dos críticos mais implacáveis e visionários da sociedade contemporânea.
A “fase corsária” de Pasolini é, portanto, o período em que ele se tornou um dos mais ferozes críticos da sociedade de consumo, do neofascismo e da alienação cultural. Sua postura provocativa, polêmica e muitas vezes solitária o tornou uma voz indispensável para compreender as transformações do capitalismo, da política e da cultura na Itália e no mundo. É um momento em que Pasolini abandona qualquer esperança de reconciliação com a sociedade e assume sua posição como um “corsário”, um crítico radical disposto a lutar até o fim contra as forças que ele via como destruidoras da humanidade e da autenticidade.
A última fase da filmografia de Pasolini é representada por seu filme final, Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), que marca uma mudança drástica de tom e conteúdo. Este filme é uma adaptação livre da obra do Marquês de Sade, situada na República de Salò durante a Segunda Guerra Mundial, e oferece uma crítica violenta e desesperançada à sociedade de consumo, ao fascismo e à corrupção do poder. Comparado com Accattone, Salò representa o estágio final do pessimismo de Pasolini em relação à sociedade capitalista. Enquanto Accattone ainda possuía uma dimensão de humanidade e busca por autenticidade, Salò retrata um mundo em que a brutalidade, a dominação e a desumanização são levadas ao extremo, sem qualquer possibilidade de redenção.
Salò – Pasolini crítico do sociometabolismo da barbárie
Salò ou Os 120 Dias de Sodoma é uma adaptação livre do romance do Marquês de Sade, ambientada na República de Salò, o último reduto fascista na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.[ii]. A trama segue quatro figuras de poder – um Duque, um Bispo, um Magistrado e um Presidente – que sequestram 18 jovens (nove moças e nove rapazes) e os levam para uma mansão isolada. Ali, eles submetem os jovens a um regime de tortura física, psicológica e sexual que se desenrola em três “círculos”: o Círculo das Manias, o Círculo da Merda e o Círculo do Sangue.
Ao longo de 120 dias, os jovens são brutalizados e tratados como objetos para o prazer sádico dos fascistas, que os reduzem a meras “mercadorias”. O filme culmina em uma série de torturas e execuções, retratando de forma explícita o horror, a desumanização e o exercício absoluto do poder sob o influxo do capital.
O Duque (Paolo Bonacelli) é uma das figuras do poder, simbolizando a nobreza fascista e a corrupção da classe dominante. O Presidente (Umberto Paolo Quintavalle) representa o poder político, exercendo sua autoridade de maneira tirânica e sádica. O Magistrado (Aldo Valletti) é uma figura do poder judiciário, que participa ativamente das torturas e demonstra a conivência da justiça com o poder opressor. O Bispo (Giorgio Cataldi) representa a Igreja e a hipocrisia religiosa, colaborando com os horrores cometidos na mansão. As Senhoras (Caterina Boratto, Hélène Surgère e Elsa De Giorgi) são as mulheres mais velhas que narram histórias eróticas para estimular os fascistas, revelando como a narrativa de opressão e prazer está intrinsecamente ligada.
A estética de Salò é deliberadamente fria, clínica e distanciada. Pasolini evita qualquer tentativa de romantização ou embelezamento, filmando as cenas de tortura e violência de forma direta e quase documental. As cores são neutras, e a câmera mantém uma distância impessoal, reforçando a sensação de estranhamento e desumanização. O uso da música de Ennio Morricone cria um contraste irônico com a brutalidade das cenas, intensificando o impacto da narrativa.
Salò é uma crítica feroz ao poder absoluto – o poder do capital na sua fase de expansão global – e à forma como ele corrompe e desumaniza. Os quatro senhores fascistas exercem seu poder sem limites sobre os jovens, transformando-os em objetos para sua satisfação e revelando a essência destrutiva e sádica da dominação. Não se trata do mero Poder absoluto, a força quase metafísica do Mal. Não podemos esquecer a natureza histórica do fascismo. O fascismo foi a resposta da burguesia à luta de classe e ascensão do bolchevismo nas condições históricas das crises sociais e da decadência do capitalismo liberal logo após a Primeira Guerra Mundial.
O fascismo surge quando as classes dominantes temem a revolução proletária, utilizando-o como um meio de reprimir movimentos sociais e manter o controle. O fascismo – de acordo com Leon Trostky – não era apenas uma ideologia, mas uma forma de governo que se alimenta da insatisfação da pequena-burguesia e do povo face à democracia liberal.[iii]
Pasolini acrescenta uma nova percepção do fascismo: o fascismo é o meio de manipulação da subjetividade – corpo e mente – em sua forma biopolítica ou forma de governamentalidade que se expande com o neocapitalismo, a fase superior do capitalismo total, o capitalismo manipulatório[iv] e – ao mesmo tempo – a fase histórica inicial da crise estrutural do capital[v] . O neoliberalismo exacerbaria as tendencias postas no alvorecer do neocapitalismo com a manipulação sendo aprofundada pela nova base tecnológica informacional. Assim, o neofascismo denunciado por Pasolini tornar-se-ia o novo metabolismo social: o sociometabolismo da barbárie.
O filme Saló explora a forma como o corpo humano sob o capital é reduzido a um objeto de consumo, uma mercadoria para ser usada, abusada e descartada. Essa mercantilização é uma metáfora do capitalismo tardio e do neocapitalismo, que Pasolini via como um sistema que transformava as pessoas em objetos de consumo. Salò denuncia a ligação entre o neofascismo e o consumismo moderno. Saló não é um filme histórico – embora se utilize de referência histórica à República fascista de Saló.
Pasolini enxergava o consumismo – a ideologia do neocapitalismo ascendente – como uma nova forma de fascismo, mais sutil e insidiosa, que impunha sua lógica de dominação através do prazer e do desejo, ao invés da coerção física. O filme apresenta um mundo em que toda a moralidade e os valores foram destruídos, refletindo a visão de Pasolini sobre a desintegração cultural e ética da sociedade do neocapitalismo. A total ausência de empatia e compaixão dos senhores fascistas é uma representação da alienação extrema e da perda de humanidade que Pasolini via no neocapitalismo.
Saló foi produzido em um momento inicial da crise estrutural do capital que se manifestava na crise da economia capitalista do início da década de 1970 e suas repercussões políticas na Itália e no mundo ocidental em geral. A década de 1970 foi marcada por recessão, desemprego, inflação e pela crise do petróleo de 1973, que abalaram as economias capitalistas.
Na Itália, esse período ficou conhecido como os “Anos de Chumbo” (Anni di Piombo), devido à crescente violência política, com conflitos entre grupos de extrema esquerda e extrema direita, atentados terroristas e repressão estatal. O neofascismo estava em ascensão, com grupos de extrema direita promovendo ataques e assassinatos políticos, enquanto o Estado italiano respondia com medidas repressivas que minavam as liberdades civis. Pasolini via esse contexto como uma manifestação da crise do capitalismo tardio e do colapso moral da sociedade de consumo.
Ele percebeu a convergência entre o consumismo, a alienação e a violência fascista, e Salò tornou-se seu manifesto final contra o que ele enxergava como a decadência total da civilização do capital em sua fase de crise estrutural. Seu lançamento, poucos meses antes do assassinato de Pasolini, apenas reforça o caráter profético e desesperado de sua mensagem final sobre a condição humana e os horrores da dominação e do consumo sob o capitalismo manipulatório.
Pasolini e o neocapitalismo
Em artigos de jornais da década de 1970 – principalmente no período de 1973-1975 – Pasolini manifestou o verdadeiro horror do neocapitalismo. Às vésperas de sua morte quando foi assassinado pelos fascistas, Pasolini atingiu o auge de sua criticidade contra a ordem burguesa italiana. Para ele, o neocapitalismo destruiu um dos maiores poderes da sociedade italiana: a Igreja Católica. Isto é, o novo poder do capital fez o que nem o fascismo de Mussolini conseguiu fazer: esvaziar o espírito religioso.
No jornal Corriere de la Sera de 17 de maio de 1973, Pasolini faz uma afirmação contundente – e visionária: “O fascismo enquanto momento regressivo do capitalismo, era objetivamente menos diabólico […] do que o regime democrático”[vi] . Pasolini está tratando do fato de que a Igreja, segundo ele, “[ter feito] um pacto com o diabo, isto é, com o Estado burguês”. Diz ele: “O fascismo era uma blasfêmia, mas não minava a Igreja por dentro, porque se tratava de uma falsa nova ideologia […] se o fascismo nem sequer arranhou a Igreja, o neocapitalismo hoje a destrói. A aceitação do fascismo foi um episódio atroz: a aceitação da civilização burguesa capitalista é um fato definitivo, cujo cinismo não é apenas uma mácula a mais entre as tantas da história da Igreja, mas um erro histórico que a Igreja pagará provavelmente com a sua decadência” [vii].
Portanto, para Pasolini a aceitação da civilização burguesa capitalista ou o regime democrático, foi pior do que o fascismo, pois fez o que nem o fascismo conseguiu fazer: esvaziar o espírito da religião – e no caso da Igreja: “A burguesia – diz ele – representava um novo espírito que não é, por certo, o espírito fascista: um espirito novo, que de início competiria com o espírito religioso (ressalvando dele apenas o clericalismo) e depois acabaria tomando-lhe o lugar para fornecer aos homens uma visão total e única da vida (sem precisar mais do clericalismo como instrumento do poder)”.[viii]
E ressaltou: “O futuro não pertence nem aos velhos cardeais, nem aos velhos políticos, nem aos velhos magistrados, nem aos velhos policiais. O futuro pertence à jovem burguesia, que não precisa mais dos instrumentos clássicos para deter o poder; que não sabe mais o que fazer com uma Igreja já exaurida pelo fato de pertencer àquele mundo humanista do passado, que constitui um obstáculo à nova revolução industrial. O novo poder burguês, de fato, requer dos consumidores um espírito totalmente pragmático e hedonista: só num universo tecnicista e puramente terreno o ciclo da produção e do consumo pode se realizar segundo sua própria natureza. Para a religião, e sobretudo para a Igreja, não há mais espaço”.[ix]
Em março de 1974, noutro artigo publicado na revista Dramma, intitulado “Os intelectuais em 68: maniqueísmo e ortodoxia da ‘Revolução do dia seguinte’”, Pasolini ressaltou o surgimento de “uma nova forma de civilização e um longo futuro de “desenvolvimento” programado pelo Capital”. Para ele o neocapitalismo “realizava sua própria revolução interna, a revolução da Ciência Aplicada” – isto é, Pasolini, inconscientemente, fez referência àquilo que Marx denominou “grande indústria” caracterizada pela dominância da mais-valia relativa e da subsunção real do trabalho ao capital.
Karl Marx considerava a grande indústria como sendo a “revolução completa (que se aprofunda e renova constantemente) no próprio modo de produção capitalista, na produtividade do trabalho e na relação de capitalista e trabalhador.”[x] Esta “revolução da Ciência Aplicada”[xi] para Pasolini era igualável em importância à “Primeira Semeadura, sobre a qual se fundou a milenária civilização camponesa”[xii]. O capital fundava assim, uma nova forma de civilização que para ele, estava perdendo “qualquer esperança de Revolução operária”.
Diz ele: “É por isso que se gritou tanto a palavra Revolução. Mais ainda, pois já era clara não só a impossibilidade de uma dialética, quanto até mesmo a impossibilidade de definir a comensurabilidade entre capitalismo tecnológico e marxismo humanista”.[xiii] Pasolini era deveras pessimista face o novo curso histórico do capitalismo e do seu “desenvolvimento” – isto é, o consumismo, o bem-estar e a ideologia hedonista do poder.
No artigo de 10 de junho de 1974 no Corriere de la Sera, intitulado “Estudo sobre a revolução antropológica na Itália”, Pasolini tratou do tema forte de seus escritos corsários: a mutação antropológica provocada pelo neocapitalismo na Itália. Ele observou que (i) “as ‘classes médias’ mudaram radicalmente, diria até, antropologicamente: seus valores positivos não são mais os valores reacionários e clericais, mas sim os valores (não ‘nomeados’ e ainda vividos só existencialmente) da ideologia hedonista do consumo e da consequente tolerância modernista de tipo americana. Foi o próprio Poder – através do ‘desenvolvimento’ da produção de bens supérfluos, da imposição do consumo frenético, da moda, da informação (e principalmente, de maneira imponente, da televisão) que criou tais valores, descartando cinicamente os valores tradicionais e a própria Igreja, que era o símbolo desses valores”[xiv] .
Depois, Pasolini observou (ii) “que a Itália camponesa e paleoindustrial desmoronou, se desfez, não existe mais, e que em seu lugar ficou um vazio que provável mente espera ser preenchido por um aburguesamento completo, do tipo mencionado acima (modernizante, falsamente tolerante, americanizante etc.)”[xv] .
O cineasta italiano refletiu sobre o cenário político na Itália em que o fascismo (ou a direita) tendo em vista a própria história da Itália é uma direita tosca, ridícula, e feroz, sendo que “o neofascismo parlamentar é a fiel continuação do fascismo tradicional”. Mas Pasolini reconhece que existe algo pior acontecendo na Itália. Diz ele: “Todas as formas de continuidade histórica se romperam. O ‘desenvolvimento’, pragmaticamente desejado pelo Poder, se instituiu historicamente numa espécie de epoché[xvi] que ‘transformou’ radicalmente, em poucos anos, o mundo italiano”.[xvii]
Esse salto “qualitativo” diz respeito então tanto aos fascistas quanto aos antifascistas: trata-se de fato da passagem de uma cultura, feita do analfabetismo (o povo) e do humanismo esfarrapado (as classes médias) de uma organização cultural arcaica, à organização moderna da “cultura de massa”. Para Pasolini, “a coisa, na realidade, é enorme” [xviii]. Ele insiste que ocorreu o fenômeno de “mutação” antropológica”. Pasolini – quase como um Gramsci de “Americanismo e fordismo” – salientou que o capital modificou as características necessárias do Poder, fazendo surgiu um novo homem burguês – o homem neofascista. Diz ele: “A “cultura de massa”, por exemplo, não pode ser uma cultura eclesiástica, mora lista e patriótica: de fato, ela está diretamente ligada ao consumo, que tem suas leis internas e autossuficiência ideológica capazes de criar automaticamente um Poder que não sabe mais o que fazer da Igreja, de Pátria, da Família e de outras crendices afins.”
Pasolini vai caracterizar a nova époche do mundo italiano – a era do aburguesamento total – que se caracteriza pela “padronização cultural” que diz respeito a todos: povo e burguesia, operários e subproletários. Pasolini esclarece o que ele entende como sendo a “padronização cultural” que caracteriza a mutação antropológica italiana: “O contexto social mudou, no sentido de que se tornou extremamente unificado. A matriz que gera todos os italianos passou a ser a mesma. Não existe mais, portanto, diferença considerável além da opção política, esquema morto a ser preenchido por gestos vazios entre um cidadão italiano fascista qualquer e um cidadão italiano antifascista qualquer. Eles são culturalmente, psicologicamente e, o que é mais impressionante, fisicamente intercambiáveis. No comportamento cotidiano, mimico, somático, não há mais nada que distinga exceto, repito, um comício ou uma ação política um fascista de um antifascista (de meia-idade ou jovem os velhos podem ser diferenciados nesse sentido), Isto no que diz respeito aos fascistas e antifascistas médios. No que diz respeito aos extremistas, a padronização é ainda mais radical”.[xix]
Pasolini chega à conclusão de que “o fascismo, portanto, não é mais o fascismo tradicional”. E esclarece: “Os jovens dos grupos fascistas, os jovens das SAM[xx], os jovens que sequestraram pessoas e colocam bombas nos trens, se chamam e são chamados de fascistas; mas trata-se de uma definição puramente nominalista. Na verdade, são em tudo e por tudo idênticos à enorme maioria dos jovens de sua idade. Culturalmente, psicologicamente, somaticamente repito, não há nada que os distinga. O que os distingue é só uma ‘decisão’ abstrata e apriorística que, para ser conhecida, deve ser dita. É possível conversar casualmente durante horas com um jovem extremista fascista sem perceber que é um fascista. Ao passo que dez anos atrás bastava, já nem digo uma palavra, mas apenas um olhar para distingui-lo e reconhecê-lo”.[xxi]
Neofascismo e o novo poder
Para Pasolini, o neofascismo é, portanto, “um fascismo nominal, sem uma ideologia própria (esvaziada pela qualidade de vida real vivida por esses fascistas) e, além disso, artificial”.[xxii] Esta situação é desejada pelo próprio Poder, que depois de ter liquidado – de maneira pragmática, como sempre – o fascismo tradicional e a Igreja (o fascismo clerical, que era efetivamente uma realidade cultural italiana), decidiu manter vivas certas forças que se poderiam opor – de acordo com uma estratégia mafiosa e policial – à eversão comunista”. Por trás dos “jovens monstros” neofascistas – esses jovens e a seu fascismo nominal e artificial – que colocaram as bombas, temos, de fato, o poder burguês, verdadeiramente “seus sinistros mandantes e financiadores” responsáveis pelas “condições intoleráveis de conformismo e de neurose, e, portanto, de extremismo”.
Portanto, vive-se não um regime verdadeiramente democrático, mas um regime fascista – “um fascismo ainda pior que o tradicional, mas já não seria exatamente fascismo. Seria algo que na realidade já estamos vivemos e que os fascistas vivem de modo exasperado e monstruoso, mas não sem razão”.[xxiii]
Num artigo de 24 de junho de 1974 para o Corriere de la Sera intitulado “O verdadeiro fascismo e, portanto, o verdadeiro antifascismo”, Pasolini observou que durante muitos séculos, na Itália, a cultura da classe dominante e a cultura da classe dominada – a cultura popular dos operários e dos camponeses permaneceram diferenciáveis, mesmo que historicamente unificadas na cultura da nação. E observou: “Hoje – quase de supetão, numa espécie de Advento, distinção e unificação histórica foram substituídas por uma padronização que realiza quase milagrosamente o sonho interclassista do velho Poder. A que se deve tal padronização? Evidentemente, a um novo Poder”.[xxiv]
Pasolini escreve esse “Poder” com maiúscula só porque – diz ele – “sinceramente, não sei em que consiste esse novo Poder e quem o representa. Sei simplesmente que existe. Não o reconheço mais nem no Vaticano, nem nos poderosos democratas-cristãos, nem nas Forças Armadas. Não o reconheço mais nem mesmo na grande indústria, porque ela não é mais formada por um certo número limitado de grandes industriais: a mim, pelo menos, ela aparece antes como um todo (industrialização total) e, além do mais, como um todo não italiano (transnacional). Conheço também porque as vejo e as vivo algumas características desse novo Poder ainda sem rosto: por exemplo, sua recusa do velho reacionarismo e do velho clericalismo, sua decisão de abandonar a Igreja, sua determinação (coroada de sucesso) em transformar camponeses e subproletários em pequenos burgueses, e sobretudo sua ânsia, por assim dizer cósmica, de ir até o fundo do ‘Desenvolvimento’: produzir e consumir”.[xxv]
Pasolini tenta descrever os traços do novo Poder que emerge com o neocapitalismo que se consolidou na década de 1960 na Itália. Ele diz que ele tem certos traços “modernos” devidos à tolerância e à ideologia hedonista “perfeitamente autossuficiente”, mas ele percebe, por outro lado, “certos traços ferozes, essencialmente repressivos”. Mas Pasolini desvela a falsidade do novo Poder burguês: “a tolerância é de fato falsa, porque na realidade nenhum homem jamais foi obrigado a ser tão normal e conformista quanto o consumidor; e quanto ao hedonismo, ele encobre evidentemente uma decisão de preordenar tudo com uma crueldade sem precedentes na história”[xxvi].
Esse novo Poder, diz ele – “não representado ainda por ninguém e resultante de uma ‘mutação’ da classe dominante, é na realidade se quisermos conservar a velha terminologia – uma forma “total” do fascismo”. Para Pasolini, fascismo é Poder que se impõe sobre os outros de forma repressiva. Tal como em Saló, os jovens são obrigados a servir às personalidades do Poder que comandam a cena do terror. Para Pasolini, a tolerância é repressiva pois impõe a “padronização” cultural. Esse Poder – diz ele – “padronizou” culturalmente a Itália: trata-se, portanto, de uma “padronização” repressiva, mesmo se obtida através da imposição do hedonismo e da joie de vivre. A estratégia da tensão é um indício, mesmo que essencialmente anacrônico, de tudo isso”[xxvii].
Como Pasolini descobriu o novo Poder do neofascismo que se impõe na Itália do neocapitalismo? Qual foi o método de Pasolini? Ele conhecia a semiologia – Pasolini observava as pessoas e o seu comportamento. Ele sabia que a cultura produz certos códigos, que os códigos produzem certo comportamento, que o comportamento é uma linguagem e que num momento histórico em que a linguagem verbal é inteiramente convencional e esterilizada (diz ele, tecnocratizada), a linguagem do comportamento assume uma importância decisiva.
Por isso, ele considerava que existia boas razões para sustentar que a cultura de uma nação (da Itália, no presente caso) se exprimia (em 1974) sobretudo através da linguagem do comportamento, ou linguagem física. Diz ele: “[…] uma certa quantidade – completamente convencionalizada e extremamente pobre de linguagem verbal”. Quer dizer, a expressão é pela linguagem do comportamento tendo em vista o esvaziamento do nível de comunicação linguística. É assim que Pasolini percebe a mutação antropológica dos italianos, isto é, sua completa identificação a um “modelo único”:
Portanto, resolver deixar crescer os cabelos até os ombros ou cortar os cabelos e deixar crescer o bigode (à moda de 1900); resolver amarrar uma faixa na testa ou enfiar um gorro até os olhos; decidir entre sonhar com uma Ferrari ou um Porsche; acompanhar atentamente os programas de televisão; conhecer os títulos de alguns best-sellers; vestir calças e camisas prepotentemente na moda; manter relações obsessivas com moças tratadas como meros enfeites, mas, ao mesmo tempo, pretensamente “livres” etc. etc. etc.: tudo isso são atos culturais.
Hoje todos os italianos jovens realizam esses mesmos idênticos atos, têm essa mesma linguagem física, são intercambiáveis: coisa velha como o mundo, caso fosse limitada a uma classe social, a uma só categoria; mas o fato é que esses atos culturais e essa linguagem somática são interclassistas. Numa praça cheia de jovens, ninguém consegue mais distinguir, pelo físico, um operário de um estudante, um fascista de um antifascista, coisa que era ainda possível em 1968.[xxviii]
Pasolini sente uma impotência diante do novo Poder. Ele nada pode fazer. Combater o Desenvolvimento, o mito do neocapitalismo, significaria provocar uma recessão. Entretanto pode-se tentar corrigir esse Desenvolvimento – é o tenta fazer o Partido Comunista Italiano – Pasolini passa do pessimismo para o realismo político: “Se os Partidos de Esquerda não apoiassem o Poder vigente, a Itália simplesmente desmoronaria, se, ao contrário, o Desenvolvimento se mantivesse ao ritmo em que começou, o chamado “compromisso histórico” seria indubitavelmente realista, porque seria a única maneira de tentar corrigir esse Desenvolvimento, no sentido indicado por Berlinguer no seu relatório para o comitê central do Partido Comunista (cf. Unità de 4/6/1974).[xxix]
Entretanto, pessimista ou realista não lhe impediu de fazer a autocrítica: “não fizemos nada para que os fascistas não existissem”. Pasolini critica o modo como a esquerda tratou os jovens fascistas, agindo comportamentalmente como eles, isto é, sendo racistas, fetichizando-os como representações do mal: “Limitamo-nos a condená-los, gratificando nossa consciência com nossa indignação, e quanto mais forte e petulante era a indignação, mais tranquila ficava a consciência. Na realidade nos comportamos com os fascistas (refiro-me sobretudo aos jovens) de maneira racista: quer dizer, quisemos apressada e impiedosamente crer que estavam predestinados por sua raça a serem fascistas, e perante essa decisão do seu destino não havia nada a fazer. E não dissimulemos quanto a isso: todos sabíamos, em nossa sã consciência, que era por puro acaso que um daqueles jovens decidia ser fascista, que se tratava de um mero gesto imotivado e irracional; talvez uma só palavra tivesse bastado para que isso não acontecesse. Mas nenhum de nós jamais conversou com eles, nem sequer lhes dirigiu a palavra. Aceitamo-los rapidamente como inevitáveis representantes do mal. E talvez fossem meninos e meninas de dezoito anos, que não sabiam nada de nada, e que mergulharam de cabeça nessa horrenda aventura por simples desespero”.[xxx]
É assim que Pasolini identifica o neofascismo, diferente do velho fascismo: o novo fascismo é algo bem diferente – não é “humanistamente retórico, é americanamente pragmático. Seu propósito é a reorganização e a padronização brutalmente totalitária do mundo”. Mas a crítica contundente é considerar os jovens fascistas como “representantes fatais e predestinados do Mal”. Pasolini exclama: “[eles] não nasceram para ser fascistas. Quando se tornaram adolescentes e capazes de escolher, sabe-se lá por quais razões e necessidades, ninguém, de maneira racista, imprimiu neles a marca de fascistas. É uma forma atroz de desespero e de neurose que impele um jovem a semelhante escolha; e talvez tivesse bastado apenas uma pequena experiência diversa na sua vida, apenas um simples encontro, para que seu destino fosse outro”.[xxxi]
O desaparecimento do mundo camponês
Em artigo de 8 de julho de 1974 publicado no Paese Sera e intitulado “Exiguidade da história e imensidão do mundo camponês”, Pasolini diz que a monstruosidade do neocapitalismo significa – por outro lado – o desaparecimento do mundo camponês e por conseguinte do mundo subproletário e do mundo operário. Todos sucumbiram face ao aburguesamento do mundo. Ele aproveita para falar do seu ideal do universo camponês (ao qual pertencem as culturas subproletárias urbanas e, até poucos anos atrás, as das minorias operárias que eram – diz Pasolini – “puras e verdadeiras minorias, como na Rússia em 1917”).
Para ele, o universo camponês é um universo transnacional, que simplesmente não reconhece as nações. Diz ele: “É o resíduo de uma civilização precedente (ou de uma soma de civilizações precedentes, todas muito semelhantes entre si), e a classe dominante (nacionalista) modelava tal resíduo segundo seus próprios interesses e seus objetivos políticos. É desse ilimitado mundo camponês pré-nacional e pré-industrial, sobrevivente até poucos anos atrás, que tenho saudades (não é à toa que fico o máximo possível em países do Terceiro Mundo, onde ele ainda sobrevive, embora o Terceiro Mundo esteja também entrando na órbita do chamado “Desenvolvimento”)”.[xxxii]
Os homens do universo camponês não viviam uma idade de ouro, da abundância e do consumismo, mas sim a idade do pão. Quer dizer, diz Pasolini, “eram consumidores dos bens extremamente necessários. E era isso, talvez, que tornava extremamente necessária sua pobre e precária vida. Enquanto é claro que os bens supérfluos tornam supérflua a vida (para ser bem elementar e concluir com esse argumento)”.
Pasolini é crítico da modernização ocidental promovida pela aculturação do “Centro consumista” que destruiu várias culturas do Terceiro Mundo. Diz ele que o modelo cultural oferecido aos italianos (e a todos os homens do globo, é único. Pasolini, portanto, é crítico do americanismo e o modelo único do American way of life que eles impuseram ao mundo: “A conformação a esse modelo se apresenta antes de mais nada no vivido, no existencial e, consequentemente, no corpo e no comportamento. É aí que se vivem os valores, ainda não expressos, da nova cultura da civilização de consumo, ou seja, do novo e do mais repressivo totalitarismo que já se viu”.
Pasolini critica – mais uma vez – a padronização cultural, a redução comportamental e linguística promovida pelo novo Poder. É o que denuncia como sendo o empobrecimento da expressividade pois desaparecem os dialetos e a diversidade cultural regional (o penúltimo filme de Pasolini – Os contos das Mil e Uma noites (1974) – é um verdadeiro ode à diversidade humana que o novo Poder do capital destrói). Provavelmente, caso Pasolini vivesse hoje, ele seria um defensor do mundo multipolar contra a unipolaridade hegemônica do Ocidente ampliado – ou o Centro consumista: “Do ponto de vista da linguagem verbal, dá-se a redução de toda a língua à língua comunicativa, com um enorme empobrecimento da expressividade. Os dialetos (os idiomas maternos!) distanciaram-se no tempo e no espaço: os jovens são obrigados a não mais usá-los porque vivem em Turim, em Milão ou na Alemanha. Ali onde ainda são falados, eles perderam totalmente suas potencialidades inventivas. Nenhum rapaz da periferia romana conseguiria mais compreender o jargão dos meus romances de dez ou quinze anos atrás; e ironia do destino! – seria obrigado a consultar o glossário anexo como qualquer bom burguês do norte!”.[xxxiii]
O tema da padronização cultural é forte em Pasolini. Ele lamenta a padronização de todos os jovens, devido à qual não se pode mais distinguir, pelo seu corpo, pelo seu comportamento e por sua ideologia inconsciente e real (o hedonismo consumista) – não se pode distinguir um jovem fascista de todos os outros jovens. Na verdade, todos esses jovens infelizes têm uma só ideologia inconsciente e real: o hedonismo consumista. Ele distingue o conformismo de hoje com o conformismo do passado: no passado, os homens eram conformistas e no máximo possível iguais segundo sua classe social.
E, no interior dessa distinção de classe, segundo suas condições culturais particulares e concretas (regionais), Hoje, diz ele (em 1974) – “ao contrário (e aqui entra a “mutação antropológica”), os homens são conformistas e todos iguais uns aos outros segundo um código interclassista (estudante igual a operário, operário do norte igual a operário do sul) pelo menos potencialmente, na ansiosa vontade de se uniformizarem”.[xxxiv]
Numa entrevista concedida a Guido Vergani em 11 de julho de 1974 intitulada “Ampliação do ‘esboço’ sobre a revolução antropológica na Itália” e publicada no Il Mondo, Pasolini discute a questão das escolhas morais – ser marxista ou ser fascista. Discutir escolhas morais e a cultura é uma discussão política – de acordo, por exemplo, com Antonio Gramsci.
Como comunista, Pasolini quer entender as escolhas políticas dos italianos. Ele nunca deixou de ser um militante da cultura dos subalternos. Pasolini observa que tais escolhas, como sempre acontece, são enxertadas em uma cultura como a cultura dos italianos que, diz ele, nesse meio-tempo, mudou completamente. Diz ele: “A cultura italiana mudou na vivência, no existencial, no concreto. A mudança consiste no fato de que a velha cultura de classe (com suas nítidas divisões: cultura da classe dominada, ou popular; cultura da classe dominante, ou burguesa, cultura das elites) foi substituída por uma nova cultura interclassista: que se exprime através do modo de ser dos italianos, através de sua nova qualidade de vida. As escolhas políticas, enxerta- das no velho humus cultural, eram uma coisa; enxertadas neste novo humus cultural, são outra. O operário ou o camponês marxista dos anos quarenta ou cinquenta, na hipótese de uma vitória revolucionária, teria mudado o mundo de um modo; hoje, na mesma hipótese, o mudaria de outro”[xxxv].
Pasolini não esconde que é “desesperadamente pessimista” face a um novo poder que – diz ele – “manipulou e mudou radicalmente (antropologicamente) as grandes massas camponesas e operárias italianas”. Ele tem dificuldade de definir o novo poder. Ele sabe que ele existe e que é “o mais violento e totalitário que já existiu: ele muda a natureza das pessoas, alcança o mais profundo das consciências”.
Ele consegue discernir os meios do totalitarismo neocapitalista: a propaganda televisiva, “perfeitamente pragmática”, como ele diz, representa o momento indiferentista da nova ideologia hedonista do consumo: e é, portanto, enormemente eficaz. Ela não está a serviço da Democracia Cristã ou do Vaticano, “no nível involuntário e inconsciente ela esteve a serviço do novo poder, que não coincide mais ideologicamente com a Democracia Cristã e não sabe mais o que fazer com o Vaticano”. Pasolini percebe que a propaganda televisiva contribui para a uniformidade da massa – ressalta: “[…] não se percebe nenhuma diferença substancial entre os transeuntes (sobretudo jovens) no modo de vestir, no modo de andar no modo de serem sérios, no mede de sorrir, no modo de gesticular em suma, no modo de se comportar. E se pode, portanto, dizer […] que o sistema de signos da linguagem fisíco-mimica não tem mais variantes, que é perfeitamente idêntico em todos”.
E conclui: “O Poder decidiu que somos todos iguais”[xxxvi] Pasolini identifica a raiz da uniformidade cultural no fetichismo da mercadoria, isto é, na ânsia do consumo – “uma ânsia de obediência a uma ordem não enunciada. Cada um […] sente a ânsia, degradante, de ser igual aos outros no consumir, no ser feliz, no ser livre: porque esta é a ordem que inconscientemente recebeu, e à qual “deve” obedecer, sob pena de se sentir diferente, nunca a diferença foi um delito tão pavoroso quanto neste período de tolerância: A igualdade não foi de fato conquistada, mas é uma “falsa” igualdade recebida de presente.”[xxxvii]
Depois de expor – com mais nitidez – a raiz da revolução antropológica na Itália, Pasolini prossegue descrevendo suas manifestações vitais tais como por exemplo, a “fossilização da linguagem verbal” – diz ele, “os estudantes falam como livros impressos, os rapazes do povo perderam a habilidade de inventar gírias”; a alegria é sempre exagerada, ostentada, agressiva, ofensiva. A tristeza fisica é profundamente neurótica pois resulta de uma frustração social. Enfim, os jovens são infelizes.
Diz ele: “Não é a felicidade que conta? Não é pela felicidade que se faz a revolução? A condição camponesa ou sub-proletária sabia expressar, nas pessoas que a viviam, uma certa felicidade “real”. Hoje, essa felicidade com o Desenvolvimento foi perdida. Isso significa que o Desenvolvimento não é de modo algum revolucionário, nem mesmo quando é reformista. Ele provoca apenas angústia. […] os rapazes do povo são tristes porque tomaram consciência de sua própria inferioridade social, visto que seus valores e modelos culturais foram destruídos”.
A ideologia do neofascismo segundo Pasolini
Pasolini via o consumismo não apenas como um estilo de vida ou uma tendência econômica, mas como um sistema totalizante de controle social, capaz de moldar subjetividades e transformar indivíduos em objetos. Para ele, o consumismo moderno não era apenas um conjunto de práticas de compra e venda de bens, mas uma ideologia que permeava todas as esferas da vida, eliminando a autonomia do indivíduo e reduzindo-o a um ser alienado, guiado por desejos induzidos e manipulados pelo mercado.
Em Salò, essa lógica é representada de forma extrema e literal. Os quatro fascistas que governam a República de Salò submetem suas vítimas a uma série de rituais de consumo do corpo humano, onde o prazer sádico e a dominação total substituem qualquer forma de relação humana autêntica. Os jovens são despojados de sua dignidade e tratados como meros objetos de consumo, manipulados e destruídos à vontade dos poderosos. Essa dinâmica de consumo do corpo e da vida é uma metáfora direta para a forma como o capitalismo tardio trata os indivíduos, reduzindo-os a mercadorias e instrumentos de lucro.
Pasolini acreditava que o consumismo havia se tornado uma forma de fascismo mais eficaz e insidiosa do que o próprio fascismo histórico, pois operava de maneira invisível, penetrando nas mentes e corações das pessoas sem a necessidade de coerção física. Enquanto o fascismo clássico usava a força bruta para impor sua vontade, o neofascismo do consumismo seduz e persuade, fazendo com que os indivíduos voluntariamente aceitem e até mesmo celebrem sua própria submissão e alienação.
Pasolini estava consciente de que o capitalismo havia evoluído para um estágio em que a alienação e a desumanização se tornaram parte integrante da vida cotidiana, mesmo em democracias liberais. O filme retrata um futuro distópico, mas que já estava se desenhando na época, no qual o consumo, o hedonismo e a violência são inseparáveis, e onde a diferença entre liberdade e opressão se torna indistinguível. A radicalidade pessimista de Pasolini nos permitiu perceber a verdade do exagero de Saló: o mundo da barbárie social.
A década de 1970 nos projetou para a nova temporalidade do capital global. Salò se revela profético ao antecipar tendências que hoje são evidentes. A ascensão de movimentos neofascistas em diversos países, muitas vezes alimentados pelo descontentamento com o neoliberalismo e a globalização, demonstra como o neofascismo pode se camuflar dentro de sistemas democráticos e econômicos que promovem o consumismo desenfreado. O uso da propaganda, do marketing e da manipulação midiática por esses movimentos reflete exatamente o que Pasolini viu como a nova face do fascismo: um poder que não precisa de ditaduras para se impor, mas que se infiltra na cultura e nos desejos das pessoas, explorando suas inseguranças e medos.
Além disso, a cultura de massa e a sociedade do espetáculo, que transformam tudo em mercadoria – incluindo corpos, identidades e até a própria política – refletem a visão de Pasolini de um mundo onde o consumo se torna a forma dominante de controle e opressão. O culto ao prazer instantâneo, à satisfação pessoal e à mercantilização de todas as relações humanas que vemos hoje em redes sociais, reality shows e na própria economia digital é a concretização do que Pasolini sugeriu em “Salò”: a total transformação do indivíduo em objeto de consumo.[xxxviii]
*Giovanni Alves é professor aposentado de sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Autor, entre outros livros, de Trabalho e valor: o novo (e precário) mundo do trabalho no século XXI (Projeto editorial Praxis). [https://amzn.to/3RxyWJh]
Notas
[i] PASOLINI, Pier Paolo. Escritos Corsários. Editora 34: São Paulo, 2020. No Brasil, foi publicado uma primeira antologia de ensaios corsários organizado por Michel Lahud em 1990 intitulada “Os jovens infelizes” (Editora brasiliense, 1990). A primeira edição de Escritos Corsários (Scritti Corsari), de Pier Paolo Pasolini, foi publicada em 1975, pouco depois de sua morte. Esse livro reúne artigos e ensaios críticos em que Pasolini aborda temas como política, cultura de massa e os efeitos do desenvolvimento econômico na Itália.
[ii] A República de Salò, oficialmente chamada de República Social Italiana, foi um estado-fantoche nazista criado em 1943, após a queda do regime fascista de Mussolini. Com sede em Salò, no Lago de Garda, esse governo se estabeleceu sob forte influência alemã e buscou manter o controle sobre o norte da Itália até a rendição das tropas alemãs em 1945. Embora proclamasse soberania, era amplamente dependente da Alemanha e carecia de reconhecimento internacional, exceto por alguns aliados do Eixo. O regime enfrentou resistência significativa e culminou na execução de Mussolini em 1945.
[iii] MANDEL, Ernest (1974). Introdução: A Teoria do Fascismo Segundo Leão Trotski. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/mandel/1974/mes/fascismo.htm. Acesso em 01/11/2024.
[iv] ALVES, Giovanni. O triunfo da manipulação: Lukács e o século XXI. Projeto editorial Praxis: Marília, 2022.
[v] ALVES, Giovanni. O conceito de crise estrutural do capital. Projeto editorial Praxis: Marília, 2025 (no prelo).
[vi] PASOLINI, Pier Paolo. “Análise linguística de um slogan”. Escritos corsários. Editora 34: São Paulo, 2020, p. 44.
[vii] Ibid., p. 44
[viii] Ibid., p. 45
[ix] Ibid., p. 45
[x] MARX, Karl. Capítulo VI (inédito). Boitempo editorial: São Paulo, 2022, p.104.
[xi] PASOLINI, Pier Paolo. “Um estudo sobre a revolução antropológica na Itália”. Escritos corsários. Editora 34: São Paulo, 2020, p. 58
[xii] Op.cit, PASOLINI, p. 58
[xiii] Ibid., p.58
[xiv] PASOLINI, Pier Paolo. “Estudo sobre a revolução antropológica na Itália”. Escritos corsários. Editora 34: São Paulo, 2020, p. 73
[xv] op.cit., PASOLINI, p. 73
[xvi] Termo grego da filosofia cética traduzível por “suspensão radical do julgamento”.
[xvii] Ibid., p.74
[xviii] op.cit. p.76.
[xix], p. 81 Ibid., p.75
[xx] Equivalente italiano das SS nazistas, que passou a atuar como policia parale la na República de Salò, a partir de 1943 durante o fascismo. (N. da T.)
[xxi] Ibid., p.76
[xxii] Ibid., p.77
[xxiii] Ibid., p.77
[xxiv] PASOLINI, Pier Paolo. “O verdadeiro fascismo e portanto o verdadeiro antifascismo”. Escritos corsários. Editora 34: São Paulo, 2020, p. 78
[xxv] Ibid., p.79
[xxvi] Ibid, p.79-80
[xxvii] Ibid, p.80
[xxviii] Ibid., p.81
[xxix] Ibid., p.82
[xxx] Ibid. p.83
[xxxi] PASOLINI, Pier Paolo. “Exiguidade da história e imensidão do mundo camponês”. Escritos corsários. Editora 34: São Paulo, 2020, p. 89
[xxxii] Ibid., p. 86
[xxxiii] Ibid., p.87
[xxxiv] Ibid., p. 91-92
[xxxv] PASOLINI, Pier Paolo. “Ampliação do ‘esboço’ sobre a revolução antropológica na Itália”. Escritos corsários. Editora 34: São Paulo, 2020, p. 92
[xxxvi] Ibid. p.93-94
[xxxvii] Ibid., p.95
[xxxviii] Extrato do capítulo intitulado “Accattone e Saló: O Alfa e o Ômega de Pasolini”, de Giovanni Alves publicado no livro Os prismas de Pasolini, organizado por Giovanni Alves e Ana Celeste Casulo (Projeto editoral Praxis, 2024).