Um ousado passo na luta contra a aids
Fim de verbas dos EUA para resposta ao HIV também afetou ações no Brasil. Mas é possível agir em defesa do direito à vida e à saúde: se o país já tem importante programa na área, por que não absorver esses projetos no SUS?
Publicado 24/02/2025 às 06:00 - Atualizado 24/02/2025 às 10:30
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Por Susana van der Ploeg, Veriano Terto Jr. e Juan Carlos Raxach, para a coluna Saúde não é mercadoria
“À vida. Aos vivos, como eu. Aqui estarei conjugando o verbo viver em todos os tempos, constantemente. Porque não há outra maneira de encarar e ultrapassar a morte e a mesquinharia de seus mensageiros.” (Herbert Daniel, “A vida antes da Morte”)
No primeiro dia de seu mandato, Donald Trump emitiu uma avalanche de ordens executivas – de pronta execução – congelando todos os fundos de assistência estrangeira por 90 dias. Nesse contexto, a resposta ao HIV/AIDS pode sofrer impactos devastadores, aprofundando desigualdades e fragilizando avanços conquistados a duras penas. A ordem executiva afetou gravemente o Plano de Emergência da Presidência dos EUA para o Alívio da AIDS (PEPFAR).
Este programa de assistência contra o HIV, iniciado em 2003, é implementado principalmente pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). O PEPFAR é atualmente o maior financiador da resposta global ao HIV e foi interrompido bruscamente, incluindo a distribuição de antirretrovirais. A sua abrupta paralisação afeta por dia 220 mil pessoas, incluindo 7 mil crianças que ficaram impedidas de acessar tratamento vital.
No Brasil, que possui uma ferramenta como o Sistema Único de Saúde (SUS), o impacto é incomparavelmente menor do que em muitas nações na África. Mesmo assim, um importante projeto que atuava em 5 capitais oferecendo testagem de HIV, diagnóstico e outros serviços era financiado pelo PEPFAR – e teve seus fundos interrompidos.
Nesse contexto, se optasse por absorver o projeto no SUS, o país aproveitaria muito bem a oportunidade de dar apoio imediato aos afetados por sua suspensão e também de demonstrar a força de seu programa de assistência à HIV/aids, internacionalmente reconhecido. O Brasil reforçaria sua soberania, é claro, mas muito mais que isso: sinalizaria, com o gesto, seu compromisso com o direito à saúde e à vida.
Lutar pela vida em todo o mundo
As políticas de extermínio e a violência contra a diversidade revelam um ataque direto às populações historicamente marginalizadas. O revolucionário Herbert Daniel, que foi diretor da ABIA, já nos alertava que a luta contra a AIDS vai além do biológico, refletindo as fraturas sociais que, ao serem ignoradas, alimentam preconceitos e marginalização. Para ele, a verdadeira luta é pela democracia, pelo prazer da diversidade e pela liberdade, que devem garantir a vida antes da morte:
Em seu Vida antes da morte (1997), disponível no site da ABIA, Herbert escreveu: “Como toda epidemia, a Aids se desenvolve nas fraturas e desequilíbrios da sociedade. Não se pode enfrentá-la tentando obscurecer as contradições e conflitos que expõe. Pelo contrário, é revelando-os que melhor se entende (e se pode neutralizar) o avanço do vírus e do vírus ideológico do pânico e dos preconceitos. Portanto, há uma disputa envolvida nessa epidemia que não se reduz ao confronto biológico. Há uma construção a ser feita que envolve a democracia e o prazer da diversidade. Com muito prazer combato nessa luta. No corpo. E naquilo que, além do corpo, garante seu prazer: a liberdade. Ou, como queiram, a vida antes da morte.”
Afirmar que estamos a salvo, porque temos o SUS e não dependemos do governo dos EUA e do PEPFAR para a política de HIV/AIDS no Brasil seria moralmente questionável e nada solidário. Estaríamos olhamos para dentro e esquecendo o impacto em outros países. Não estamos a salvo quando há um ataque direto a toda a humanidade. Não estamos a salvo quando sabemos que os vírus não respeitam fronteiras, sejam eles biológicos ou ideológicos do pânico e dos preconceitos, como alertou Herbert.
O Brasil não pode ser cúmplice, a brutalidade não pode ser naturalizada, a crueldade não pode ser institucionalizada. Devemos rechaçar toda e qualquer forma de ataque à humanidade do outro. O governo brasileiro e as instituições democráticas do nosso país devem se manifestar.
Também fomos afetados
É verdade que temos o SUS, esse sistema, que como bem colocou Deisy Ventura, é o nosso grande trunfo democrático: um dos poucos sistemas de justiça redistributiva do Brasil, que garante democracia material por meio do acesso à saúde, mesmo com suas limitações. “O SUS funciona como um amortecedor do capitalismo selvagem brutal que se implantou no Brasil”, afirma Deisy. O SUS garante a toda a pessoa vivendo com HIV/AIDS acesso ao tratamento e à prevenção.
Temos o SUS! Mas não produzimos nossos medicamentos. Corporações farmacêuticas transnacionais o estão extorquindo e colocando em risco a viabilidade e manutenção do direito aos medicamentos. A dependência das grandes farmacêuticas e a falta de transparência e controle sobre os preços não podem continuar ditando o destino de milhares de pessoas no Brasil. O acesso aos medicamentos é um direito humano, não podemos permitir o abuso do sistema de patentes para privilegiar o interesse de lucro ao invés da vida.
Entretanto, mesmo com o SUS, é importante comunicar que a interrupção do financiamento do PEPFAR também nos afetou, ainda que em menor proporção. O projeto “A Hora é Agora”, financiado desde 2015 pelo PEPFAR, e que tem como objetivo fortalecer e ampliar o acesso à testagem e ao tratamento para o HIV, também está em risco.
O projeto A Hora é Agora (AHA) oferece testagem, diagnóstico, vinculação ao tratamento, disponibilização de PrEP e PEP e estratégias de adesão ao tratamento antirretroviral (TARV). O programa começou em Curitiba e se expandiu para Porto Alegre, Florianópolis, Campo Grande e Fortaleza. Em um país com mais de 45 mil novas infecções anuais por HIV, 1 milhão de pessoas vivendo com HIV/AIDS e 20% delas sem acesso ao tratamento, iniciativas como essa são fundamentais.
Uma possível resposta
Uma nota conjunta da ANAIDS, ABIA e GTPI, encaminhada ao Ministério da Saúde em 13 de fevereiro com um pedido de pronunciamento, alerta para a grave situação gerada pela suspensão do PEPFAR e pelo seu futuro incerto:
“Com a suspensão do PEPFAR, 21 Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA), 16 serviços especializados e ações de apoio à atenção primária correm o risco de serem descontinuados, comprometendo metas de eliminação do HIV/AIDS como problema de saúde pública. Já há reflexos diretos: em Porto Alegre, os serviços financiados pelo projeto foram suspensos por tempo indeterminado. Em Fortaleza, a prefeitura tenta absorver os serviços na rede municipal, mas a situação nas demais capitais ainda é incerta”, diz a nota.
Decisão judicial provisória nos EUA suspendeu o congelamento de Trump, o projeto está funcionando parcialmente, com testagem e diagnóstico, mas há incertezas sobre o financiamento do CDC/PEPFAR e a manutenção da equipe. O silêncio é uma declaração de morte. O estado brasileiro deve se pronunciar, o SUS pode e deve absorver e ampliar iniciativas como estas.
A luta é pela vida! A luta por um sistema de saúde justo e inclusivo deve ser coletiva e intransigente. Não estamos a salvo enquanto houver violações aos direitos humanos e à dignidade das populações mais vulneráveis. É preciso reivindicar por melhores condições de vida e defender a dignidade humana. É urgente resistir à política de morte e lutar por um modelo que priorize a vida acima dos interesses privados e do lucro. Vida digna, saúde e acesso a medicamentos são direitos inegociáveis.