Para ir ao coração da crise civilizatória

Nossos dramas são: cisão entre questões sociais e ecológicas e economia política fóssil, que empurra vidas humanas e não-humanas à extinção. Trump e Musk retratam essa ideologia. Derrotá-la exige disputar os sentidos da ideia de liberdade

Foto: Sebastião Salgado/Exposição “Kuwait, um deserto em chamas”
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Alana Moraes em entrevista para a Revista Opinião Filosófica

Título original: Uma transição para a vida terrestre: ciência, tecnologia e formas políticas da autonomia na era do colapso fóssil

Alana Moraes é doutora em antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ,  pesquisadora e professora do CAAF, centro de arqueologia e antropologia forense da UNIFESP, onde coordena o curso de especialização Direitos Humanos e Lutas sociais. É pesquisadora do Pimentalab-UNIFESP e também da LAVITS, Rede Latino-Americana de Estudo sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade. Recentemente concluiu um pós-doutorado no IBICT-UFRJ (instituto brasileiro de informação em ciência e tecnologia) em uma pesquisa sobre conflitos cosmopolíticos e regimes de conhecimento no Antropoceno.  Em sua trajetória de atuação e pesquisa, Alana se dedica a pensar uma antropologia contemporânea que seja capaz de se movimentar para além das fronteiras disciplinares e dos modos tradicionais de produção de conhecimento. Nesse sentido, as experimentações entre antropologia e filosofia parecem fecundar novas zonas de pesquisa e ação comprometidas com as urgências dos nossos tempos: os estudos sobre ciência e tecnologia; teoria política contemporânea, os estudos de gênero e os estudos anticoloniais, sobretudo, as cosmopráticas ameríndias que oferecem caminhos promissores para escapar das armadilhas do pensamento moderno e do seu arsenal racial ao mesmo tempo que encontram melhores perspectivas para  analisar e reconhecer os modos contemporâneos de exercício do poder e suas tecnologias.

Especialmente a partir da segunda década do século XXI, o tema do colapso socioambiental vem ganhando uma relevância inédita no debate público. Ao mesmo tempo, como sinalizaram Latour e Schultz, hoje, a “certeza da catástrofe parece mais paralisar a ação“. Para eles, tal paralisia é uma evidência importante de que “não há alinhamento instintivo entre as representações do mundo, as energias a serem desencadeadas, os valores a serem defendidos“. Ao que você atribui essa não correspondência entre as evidências cada vez mais incontestáveis das emergências climáticas e as ações políticas concretas capazes de alterar a velocidade da destruição ecológica? Você vem refletindo sobre o esgotamento das formas políticas produzidas na sociedade industrial e seus limites diante de tal cenário de múltiplas crises. Poderia desenvolver mais essa questão?

Eu parto de uma questão simples: as formas políticas de organização, mas também as referências teóricas e as imaginações sobre transformação que grande parte do campo das esquerdas socialistas possui hoje são herdeiras do mundo industrial. Isso implica, por exemplo, que uma certa ideia difundida de justiça social tenha se relacionado, historicamente, com a demanda pelo que seria a justa redistribuição da riqueza ou o justo acesso aos bens e ao modo de vida propiciado pelo “progresso” e pela modernização. A tradição da luta operária, na verdade, sempre foi cindida por duas forças, duas formas diferentes de confrontação e luta. A primeira tem a ver com essa demanda por redistribuição da riqueza, melhores salários, ampliação das formas de acesso a bens de consumo, incremento técnico incessante das capacidades produtivas. Mas uma outra se relacionava historicamente com as lutas contra o trabalho subordinado e, sobretudo, contra os modos de vida impostos pelo capitalismo e o que ele destruía em termos de autonomia das formas de trabalho e de relação diversa entre pessoas e com seus ecossistemas, com o tempo da vida multiespécie.

A primeira tradição teve maior sucesso em definir os horizontes programáticos que, por sua vez, informaram os projetos de poder de partidos socialistas e trabalhistas desde o século XIX tanto na Europa, mas também fora dela. A grande contradição é que, nessa equação, produção e destruição compõem a mesma engrenagem e os interesses de capital e do trabalho, por assim dizer, acabam se revezando na operação dessa máquina que ora produz Chernobyl, ora produz Cubatão, Bhopal, Brumadinho e assim vai. Como sagazmente afirmava o mestre Antonio Bispo dos Santos, esquerda e direita, ao longo do século XX, disputaram para pilotar a locomotiva do desastre. Evidentemente essas ideias de “justiça” se fundaram na divisão subordinada e moderna entre o que é imaginado como “natureza” e o que seriam as “questões sociais” e essa cisão é fundamental para compreender também a produção de duas categorias centrais para a acomodação do mundo industrial/metropolitano: por um lado a construção de uma ideia de “bem-estar” e, por outro, a categoria de “pobreza”. A categoria de “pobreza” foi fundamental para a gestão da modernização porque ela, de um lado, empurrou um conjunto de coletividades e seus modos de vida para uma zona de existência residual, ultrapassada, insuficiente, e,  portanto, destinadas às práticas de tutela e “inclusão”. Por outro lado, ela ocultou as formas de violência e despossessão que iam degradando permanentemente esses modos de vida e suas autonomias. A cisão entre “questões sociais” e “questões ecológicas” também explica o afastamento do movimento ecológico dos movimentos socialistas ao longo do século XX  e as escassas elaborações sobre a evidente relação entre degradação ecológica e as formas de despossessão das comunidades humanas – degradação necessária para a disponibilização de uma mão de obra de baixíssimo custo. 

O sociólogo Ulrich Beck dizia já no final da década de 1980 que o “problema ambiental” emergente não era evidentemente um problema ecológico, mas um colapso da sociedade industrial e suas instituições nas suas formas de se relacionar com a biosfera e com a vida como um todo. Ele sugeria pensar então em uma “globalidade da contaminação”, mas também poderíamos falar em uma geopolítica da contaminação porque os termos políticos que dão forma às democracias contemporâneas e as elites políticas que as conduzem estão intimamente implicados nos combustíveis fósseis, nos circuitos financeiros da terra e do agronegócio em suas zonas de toxicidade, no extrativismo que sustenta a crescente demanda por minérios, na alta demanda energética e também no controle dos fluxos informacionais.  Como sintetiza Machado Aráoz, é a ação de ordenar o espaço – como ato de poder – que produz o funcionamento de uma hierarquização do espaço geográfico moderno cujo pilar tem a ver com o estabelecimento de “zonas de sacrifício/aprovisionamento” e centros de destino/acumulação.

Esses processos se dão a partir de um repertório colonial e autoritário e por isso constitui um outro ponto importante para pensarmos o colapso ambiental em suas múltiplas dimensões: não existe processo de “crescimento econômico” sem um regime político autoritário que possa garantir que as forças de segurança (legais ou ilegais)  atuem na estabilização e pacificação das dinâmicas de resistência à espoliação permanente. Isso quer dizer que as ideias de “progresso” e de “bem-estar” fabricadas especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, com a chamada “Grande Aceleração”, atuam como forma de legitimar tomadas de decisão em todos os espectros ideológicos e que por sua vez opera, de forma continuada, a destruição e deterioração de formas de existência consideradas “lentas”, “pouco eficientes”, “pouco racionais”, ainda não “incorporadas” na sociedade de classes. Esse repertório também foi importante para dar suporte às democracias contemporâneas.

Por isso, entendo que a economia política fóssil é, no fundo, a gestão autoritária de um certo regime de eficiência e escala que organiza humanos e não humanos em uma forma de domínio de espoliação permanente que se apresenta como universal e inevitável. Ela opera a partir da ficção do “progresso”, um imperativo que exige deixar para trás práticas de conhecimento e formas de relação multiespécie que estão implicadas com o tempo da vida em toda a sua diversidade, abertura e imprevisibilidade. O repertório colonial de gestão de corpos e territórios funciona aí como a forma política oculta do Antropoceno, o que eu chamo de uma sexo-política racial – externalizando e distribuindo danos, deslocando forçadamente populações, aniquilando práticas não monetarizadas de cuidado, subtraindo o tempo da vida, colonizando as formas de prazer e tempo livre, racializando e criminalizando territórios e pessoas que são lidas como “inimigos” da marcha do progresso, do “desenvolvimento nacional”, da geopolítica fóssil etc.  Ainda no início do século, vanguardas futuristas, como a italiana, transformaram em valores estéticos “a máquina, a velocidade, a violência e a guerra” (Berardi, 2019:13). O futurismo e seus desdobramentos fascistas eram também uma guerra tecno-estética contra o “atraso” do sensual, da ambiguidade e fluidez, do que não pode ser fixado de uma vez por todas nos termos funcionais do regime produtivo moderno de sexo-gênero e sua política fóssil. 

Quando a campanha do Donald Trump tem como slogan propulsor a defesa da relação entre a “grande democracia americana” e o uso sem limites de combustíveis fósseis, ela não está sendo apenas “negacionista”, mas revelando a verdade do funcionamento de uma geopolítica fóssil, a infraestrutura política que vai dos sistemas de governança global até a mobilização mais molecular e libidinal dos desejos autoritários. Cara Daggett sugere pensar em uma “Petro-Masculinidade” enfatizando a relação técnica e afetiva entre combustíveis fósseis e  as ordens patriarcais brancas. A reivindicação de uma identidade coletiva baseada no petróleo e no crescimento permanente da demanda/produção energética atua em confrontação direta contra os modos de existência voltados à vida e esse é um dos corações dos conflitos contemporâneos no mundo. A petro-masculinidade e sua forma de habitar o mundo tornam-se a gestão da catástrofe permanente se entendemos que existe no bojo do que se reconhece como “mudança climática” processos lentos e continuados de contaminação, despossessão, deslocamento forçado e deterioração nas possibilidades de modos de vida autônomos aos circuitos do capital, a supressão permanente do prazer de viver nos entrelaçamentos interespécies.

E eu acredito que resida aí o principal impasse político dos nossos tempos porque grande parte da esquerda institucional aderiu completamente ao modo de gestão da catástrofe, ainda apostando que o projeto de sucesso eleitoral tem a ver com os índices da política fóssil: crescimento permanente, ampliação do acesso ao consumo, bem-estar como financeirização/endividamento da vida, simplificação ecológica. Essa equação parece mais justa quando justificada e feita em nome do “combate à pobreza” ou da “inclusão”, mas não existe nenhuma evidência histórica que consiga relacionar a ficção do crescimento com diminuição consistente da desigualdade social, basta  observar qualquer cidade onde exista atividade de exploração de petróleo, mineração, agronegócio ou que tenha sofrido o impacto de uma grande obra de infraestrutura energética. São cidades, na maioria das vezes, extremamente desiguais e violentas. Não é tão agradável essa afirmação, mas a verdade é que a maior parte da esquerda progressista é também negacionista quando recusa essas evidências históricas. E não é coincidência que, diante desse terrível impasse,  as experiências indígenas e territoriais, de um modo geral, parecem oferecer alternativas muito mais realistas diante do colapso em curso. O paradoxo é que a esquerda, os que agem em nome do “real” ou da “realpolitik”, parecem hoje estar totalmente alheios à realidade da terra e sua materialidade viva, estão ainda atrelados demais ao horizonte moderno de expansão perpétua, mas esse horizonte só pode levar à uma terra arrasada. 

Um dos maiores desafios do nosso tempo é pensar em formas de desarticular as democracias contemporâneas com a política fóssil. O Observatório do Clima divulgou um dado não tão surpreendente sobre a COP29, a  Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas de Baku, no Azerbaijão. Na conferência estiveram presentes 1.773 representantes do lobby fóssil, o que supera a delegação de países mais afetados hoje pelo colapso socioambiental. Esse número é revelador para compreendermos que, apesar da “agenda climática” estar cada vez mais presente nos espaços da chamada governança global, é a geopolítica fóssil que segue dando as cartas e sustentando os processos democráticos. O historiador indiano Chakrabarty produziu uma das mais afiadas reflexões sobre essa relação. Ele chama atenção para o fato de que durante o século XX a ideia de “liberdade”, no mundo euro-americano, esteve fortemente vinculada à possibilidade de produção sem limites, “a mansão das liberdades modernas repousa sobre uma base de uso de combustíveis fósseis em permanente expansão”  (Chakrabarty, 2013: 11). É em nome dessa “liberdade” que a coalizão Trump-Musk se fortalece.

Não penso que tenhamos que abrir mão da noção de “liberdade”, mas certamente a disputa pela sua definição – e, sobretudo, o que a materializa como forma de vida –  será central para a luta política do presente. Como eu disse no começo, existe uma tradição de luta dos trabalhadores que se faz contra a supressão do tempo da vida pelo capital – e que hoje retorna, por exemplo, com a aquecida circulação da reivindicação de uma “vida além do trabalho”.  Pensar a liberdade como uma forma de retomar o tempo para a vida, como fazem muitas coletividades indígenas, quilombolas, os chamados povos tradicionais, é uma forma de reivindicação que rompe com o horizonte da expansão permanente e produz outras formas de viver bem, outros modos de habitar a terra assim como outras infraestruturas técnicas. 

O tema da “transição energética” vem aparecendo como um campo emergente importante no qual confluem políticas governamentais, agendas de pesquisa e financiamentos. Parte importante deste campo está relacionado a novos discursos tecnológicos ligados às chamadas “energias limpas”, “verdes” ou mais “inteligentes”, tecnologias que prometem novos regimes de “eficiência” no que diz respeito ao uso de recursos. Você propõe uma reflexão sobre as afinidades de uma certa imaginação tecnológica com o repertório extrativista, poderia elaborar mais sobre essa questão? 

Nós estamos mapeando e refletindo sobre os modos pelos quais o discurso tecnológico vem dando forma aos projetos de renovação do tecnoextrativismo, agora através de uma plataforma organizada pelas ideias de “transição energética”, energias renováveis e que adquire, por isso, novos patamares de validação (Parra; Moraes 2024). A gramática do extrativismo constitui a economia tecnopolítica de um modelo civilizatório e faz convergir modos permanentes de espoliação e gestão autoritária para converter e administrar territórios em zonas de aprovisionamento. Mas ela também constitui modelos de desenvolvimento tecnológico, imaginações sobre futuro, sobre “liberdade”, regimes de eficiência e epistemológicos que governam a vida terrestre. As ditas “inovações  tecnocientíficas”  recentes ligadas  à  expansão  das  tecnologias  digitais  e  informacionais  como  os modelos de  “inteligência  artificial”, por exemplo, apresentam  um  novo  ciclo  de  demanda  crescente  por energia elétrica e extração dos chamados metais raros. Nos parece que em nome da “transição energética” se renova o espírito da ideologia tecnopolítica da Guerra Fria na qual a ideia de “avanço tecnológico”, escalabilidade, automação e “eficiência” passam a dar as cartas, de forma mais decisiva, na geopolítica global e na legitimidade das formas políticas coloniais de domínio – e então nos resta decidir se vamos aderir ao império tecnológico euro-americano ou ao chinês. 

Em 2023, Marc Andreessen, um investidor do campo da tecnologia, lançou o “The Techno-Optimist Manifesto”. No texto, ele argumenta que devemos ser “tecno-otimistas” e apostar na inovação tecnológica para a produção de “energia limpa” ilimitada. O fundador da Amazon, Jeff Bezos, administra também o “Bezos Earth Fund” cujo princípio é, entre outras coisas, “competir por um novo caminho a seguir”, a Microsoft hoje concentra esforços em promover a  “aceleração da inovação na agricultura”. Em todos esses discursos, a terra aparece como um conjunto de sistemas que podem ser convertidos em dados para a melhor gestão dos projetos de extração permanente. O conceito de informação me parece central para entender o tecnoextrativismo. Riemes identifica essas práticas e enunciados como um “ecomodernismo” e mostra como tais enunciados apresentam um desejo de “desacoplamento” da Terra; de viver em plena imaterialidade. O sonho do tecnoextrativismo é o sonho de um mundo sem pertencimentos; essa é a plataforma de Trump quando ele atua para “liberar a energia de todas as amarras”; as amarras aqui são um outro nome para a vida e o que nos vincula à vida terrestre.  

O ritmo acelerado da corrida por  infraestruturas  e inovações tecnológicas  ligadas  à  IA  e,  consequentemente,  a corrida  pela  viabilidade  de  suas  infraestruturas  materiais,  do  chip  de  silício  até tudo que garante o funcionamento dos data centers,  fazem  desmoronar  a  ilusão  de  que  uma  economia  digital  permitiria  a dissociação  entre  o  paradigma  da expansão perpétua  e  a  exploração  de  recursos energéticos. Mark  P.  Mills, um engenheiro  diretor  do  National Center on Energy vai lembrar, por exemplo, que existe uma física do transporte de informação e que a energia para permitir uma hora de vídeo é maior do que o combustível  consumido  por  uma  única  pessoa  numa  viagem  de 15 quilômetros  de ônibus ou o que algumas  pesquisas estimam  que,  por  exemplo,que um  único  data  center  pode  consumir  o  equivalente  à eletricidade  de  cinquenta  mil  residências, alguns consomem  juntos  mais  energia  do  que  alguns  estados nação. O que estamos tentando mostrar é que por trás da excitação sobre inovação e avanço tecnocientífico prometidos pelas novas  tecnologias  informacionais  existe  uma  operação contínua de conversão da vida em excesso informacional, como sugere o amigo e pesquisador Silvio Rhatto – o que nos leva a pensar muito mais criticamente, por exemplo, os projetos de “inclusão digital”. 

Além disso, outras pesquisas recentes já vêm mostrando que muitas das chamadas “energias limpas”, como a eólica, estão sendo implementadas em modelos industriais (“usinas”) e causando tenebrosos impactos na saúde dessas populações assim como em todo o ecossistema local. Novas doenças estão sendo catalogadas nesse contexto relacionados a problemas auditivos, visuais, além de óbvios problemas de sofrimento psíquico. O tema de uma “transição energética justa e popular” ganha cada vez mais importância entre movimentos e coletividades de luta pela e com a terra. 

Sun-ha Hong (2022) descreve como a crescente aposta otimista no “avanço tecnológico” continua operando a partir de uma lógica do “progresso  como  destino”. O que desejamos mostrar é que, evidentemente, não existe uma solução técnica ou tecnológica para a catástrofe em curso, mas que o colapso climático é fruto da catástrofe ancestral do colonialismo e suas tecnologias de extração e controle – um projeto renovado agora pela plataforma vale do silício-supremacismo. Ao mesmo tempo, estou muito interessada em pensar sobre as dinâmicas técnicas que fazem persistir as autonomias territoriais, os circuitos de cuidado e prazer que fazem um habitar vivo, diverso e que resistem aos processos renovados de conversão da vida em recurso, em informação. Trata-se de “metabolismos cosmopolíticos”, como sugere Lucas Keese pensando com os Guarani-Mbya, que excedem os modos de simplificação, conversão, sobrecodificação do capital e seus dispositivos. 

Se o pensamento tecnológico dominante insiste em operar um mundo passivo e dado, nas coletividades ameríndias, por exemplo, a tecnicidade pensa um mundo vivo e constante transformação – assim, toda a circulação implica muitos sujeitos, muitas mediações, vínculos, regimes de sensibilidade, muitas forças agentivas que exigem cuidados específicos, mas que confluem no desejo de adensamento e multiplicação das diferenças ao invés de controle. É sempre ruim pensar em termos de “povos indígenas” de uma forma homogeneizante. Só no Brasil temos uma diversidade enorme de contextos socioterritoriais que, por sua vez, produzem diversas formas de conflito, resistência, modos de existência – mas a luta pela autonomia política e territorial, em muitos sentidos, parece ser algo comum entre esses coletivos, como aponta a tese defendida recentemente do colega Fábio Alkmin (2024).

Os chamados negacionismos climáticos e científicos encontram evidentes afinidades com discursos conservadores ligados à extrema direita no mundo hoje. As redes tradicionais ligando ciência, expertise e autoridades governamentais no âmbito da tomada de decisões são hoje mais intensamente confrontadas. Você sugere, no entanto, que apenas a afirmação ou defesa de um regime de verdade científico parece enfraquecer as possibilidades mais insurgentes ligadas às práticas de conhecimento. Como você visualiza as novas relações entre lutas sociais, justiça climática e práticas de conhecimento? Como os conflitos ontoepistemológicos podem apontar para outras possibilidades de confrontação social que não a defesa da ciência como regime de autoridade?

    O que o mundo euroamericano hoje reconhece como “Novo Regime Climático” é também e, sobretudo, uma crise do regime epistemológico moderno que, de certa forma, implicou o projeto moderno de ciência com a tarefa de “aprimorar”, cada vez mais, as capacidades de conversão do mundo em recurso. Ao invés de uma “crise climática”, seria mais apropriado falar em um colapso da política fóssil e seus modos de habitar, classificar, ordenar e conhecer o mundo. Como gosta de lembrar o Laymert Garcia dos Santos, a virada cibernética acelerada pela Segunda Guerra Mundial avançou no sentido de conferir à tecnociência o papel dinâmico da acumulação  que  vai  tomar  todo o  mundo  existente  como  matéria-prima inerte  à  disposição da ciência e da tecnologia. 

    Podemos pensar no caso da agricultura e nos sistemas agroalimentares. A chamada “Revolução Verde” foi um processo importante que, durante o século XX, mobilizou recursos, pesquisas e governos para o desenvolvimento de uma série de técnicas que prometiam maior eficiência e produtividade dos sistemas agroalimentares: “melhoramento” de sementes; produzindo novos e potentes agrotóxicos capazes de “controlar” a indeterminação da vida multiespécie. No Brasil, não é possível pensar a expansão do agronegócio sem as redes de financiamento público de pesquisas, assim como uma série de outros subsídios públicos. A história da Embrapa está ligada à história da soja no país – ambas, aliás, emergem como projetos estratégicos da ditadura empresarial militar na década de 1970.

    Hoje, como já apontam muitas pesquisas recentes, o sistema alimentar global é um dos principais impulsionadores do declínio e perda da biodiversidade do planeta. Em muitas ocasiões, a diversidade agrícola existente é tratada como algo “dado” que precisa ser coletada, registrada e classificada para sua “conservação”, o que oblitera o conjunto de práticas ancestrais das comunidades indígenas na produção ativa de ecossistemas e paisagens vegetais que envolvem criação, experimentação, circulação, trocas e transmissão de conhecimento multiespécies que integram um regime de implicação radical entre natureza e cultura. ​​O “problema da escala” foi historicamente construído desde a chamada Revolução Verde e produziu, a partir de uma gramática técnica, a ideia de uma “agricultura moderna” e “racional” capaz de resolver o problema da fome no mundo, em oposição às práticas “tradicionais” e “locais”. Hoje essa “evidência” parece estar cada vez mais em cheque. 

    A ciência que produziu as infraestruturas tecnopolíticas para a expansão da monocultura e do agronegócio tem como norteadoras as ideias de eficiência e controle, enquanto para muitas outras práticas bem mais eficientes em termos de diversidade de espécies, de saúde, as ideias centrais tem a ver com o conhecimento construído a partir da implicação com múltiplas relações de interdependência, com noções de viver bem que incorporam a autonomia em relação ao mundo do capital e suas relações de dependência. Como discute Maíra Bueno de Carvalho (2021), a “invenção discursiva recente” sobre a biodiversidade é dinamizada  por um novo  regime informacional no qual circulam patentes, novas biotecnologias fazendo com que sementes se tornem “plataformas de informações genéticas que podem ser decodificadas, manipuladas e apropriadas” (Carvalho, 2021, p. 11). Em tal regime, os modos de vida tradicionais são, muitas vezes, convertidos em informações adicionais (como aqueles capazes de “conservação da biodiversidade”) para oferecer subsídios e dados para pesquisas científicas.

    Esse é um bom exemplo para pensarmos sempre criticamente a “defesa da ciência”, como se ela não fosse um campo aberto e irrigado de disputas sobre modos distintos de habitar o planeta. O  imperativo do “desenvolvimento” e da modernização – em torno do tripé urbanização, industrialização e progresso técnico – tem se imposto, especialmente na América Latina, “marginalizando ou impedindo assim outras formas de ver e fazer” (Escobar, 1992, p. 342). Como  argumenta também Stengers, a força da “modernização” e sua ideologia do “progresso” produzem um cemitério de práticas e  de saberes coletivos que são lentamente destruídos. 

    Pra mim,  o coração das conflitualidades contemporâneas não é o combate ao “negacionismo”, mas está naquilo que entrelaça as disputas socioterritoriais e seus modos de existência com práticas de conhecimento, ou seja, na defesa dos pressupostos que definem os entes que existem no mundo, suas relações, condições materiais de existência e como tudo isso pode confrontar a separação entre natureza e cultura, perturbar o consenso sobre “eficiência” ou as relações que implicam uma certa ideia de “avanço tecnológico” baseado em mais controle e menos diversidade. Quando outras agências estão em jogo – espíritos, animais e plantas com suas histórias e relações, festas, cantos sagrados que se relacionam com roças e espécies vegetais, sonhos, substâncias, circuitos de reciprocidade intensiva que cultivam paisagens e pessoas – quando tudo isso entra na cena pública, o movimento de conversão e simplificação do capital de toda a complexidade da vida e em unidades abstratas intercambiáveis torna-se mais inabilitado. 

    A implicação política desse debate vem da constatação de que reconhecer diferentes regimes de conhecimento é também reconhecer as condições cosmológicas e políticas de sua possibilidade. No caso de territórios indígenas, quilombolas, caiçaras, pequenos extrativistas e outras terras tradicionalmente ocupadas, o que está em jogo é a luta pela defesa de suas autonomias territoriais, práticas de habitar o mundo e cosmopolíticas que dependem de entes e agências mais que humanas para sua existência. Suas cosmopráticas e tecnologias de biodiversificação só podem ser possíveis na medida em que possam existir com autonomia em relação ao imperativo do “desenvolvimento nacional” e da escalabilidade do capital industrial extrativista, e assim convocam  “os seres-terra para a esfera do político”, forçando “o antagonismo que proscreveu seus mundos a se fazer visível” (De La Cadena, 2019, p. 14). 

    Desta forma,  entendo que a luta contra a perda da biodiversidade e qualquer possibilidade de reverter o colapso ecológico em curso passa por considerar as implicações entre domínio, controle e suas infraestruturas de conhecimento e poder que dão forma aos modos de fazer mundos. Nesse caso, a luta não se faz em um plano ideológico necessariamente, mas no plano de um materialismo sensível radical que é capaz de reconhecer os seres da terra como produtores de um mundo sem o qual não é possível viver. É um mundo coproduzido pelas relações interespécies e pelas formas técnicas que materializam os modos pelos quais compomos nossas existências com outras existências, um regime de percepção, formas sensíveis e estéticas, atenção e comunicação ampliada povoado de perspectivas em constante negociação – e que, por isso, resiste em ser convertido em “informação” ou pensar sempre em termos de “domínio” e “controle”. 

    Penso que uma das tarefas urgentes é também retomar o prazer como categoria central nas nossas formas de pensar, agir e sustentar modos de existência. O capitalismo não pode avançar sem colonizar nossas formas de prazer. O que os territórios em luta nos mostram é o prazer de viver para além do trabalho subordinado, mas em uma erótica do cotidiano aberta à indeterminação e à experimentação técnica. Essas experiências acabam contaminando e fecundando outras possibilidades, aterrando o distante horizonte da transformação ou da “democracia” em um solo no qual pisamos juntas, contamos nossas histórias e defendemos nossa liberdade que pode ser também traduzida como “a vida além do trabalho”; além da financeirização; além da dívida que nos desvincula e nos adoece; uma vida para o prazer.


    Referências:

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