Assim surge o Feudalismo Científico-digital

Paradoxo: na era das plataformas, a produção científica revive relações medievais. As Big Techs são os novos suseranos; os pesquisadores sujeitam-se a obrigações típicas dos servos. Tudo pode piorar com Trump e a manipulação da IA

Arte: Chelsea Saunders/Current Affairs
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Título original:
Como a ciência, em trabalho análogo à servidão, serve às Big Techs

Já na primeira semana de seu novo governo, Donald Trump tomou múltiplas medidas para assegurar um aumento da concentração da riqueza nas mãos de bilionários cibernéticos. Isto incluiu a nomeação de magnatas do setor de inteligência artificial (IA) para comandar vários setores do governo dos Estados Unidos, bem como para integrar o Conselho do Presidente para a Ciência e Tecnologia (President’s Council of Advisors on Science and Technology, PCAST)i. Muito se tem alertado sobre como as Big Techs manipulam a política, os mercados e a sociedade, com consequências desastrosas para a manutenção da democracia. Isso é evidentemente verdade, mas não é o foco deste artigo.. O que não tem recebido a devida atenção é como essa engrenagem se associa ao controle das Big Techs sobre os meios de produção e disseminação de conteúdo intelectual gerado com recursos públicos, pois conhecimentos científicos e tecnológicos formam a própria base de domínio generalizado da plutocracia do Vale do Silício, com graves consequências para a humanidade. Esse poderio cibernético assemelha-se ao exercido por senhores feudais na Idade média, razão pela qual a versão atual da estrutura social de nossos dias tem sido chamada de neomedievalismo, neofeudalismo, refeudalização, ou mesmo feudalismo pós-capitalista, moderno, corporativo, informacional, cognitivo, cibernético, de dados, algorítmico, de vigilância e/ou plataformizado.

Com efeito, enquanto nos últimos anos mais de 50% da população mundial ficou mais pobre, dobrou a fortuna das cinco pessoas mais ricas do planeta, quatro das quais são controladores de tecnologia digitalii. Embora a distância entre ricos e pobres na pirâmide da riqueza e renda atual não tenha precedentes na história, a imobilidade social observada hoje assemelha-se à da era medievaliii. Tal como, outrora, os senhores feudais controlavam a política, os valores e crenças da sociedade por deterem terras e infraestrutura agrícola, por cujo uso cobravam tributos – assim também nossa sociedade é dominada pela minúscula elite que detém a assim chamada “nuvem”, ou infraestrutura digital. Esta analogia tem, como todas, seus limites evidentes, mas não é escopo deste texto analisá-los. O que se propõe a fazer aqui é discutir os paralelos entre o domínio e apropriação do produto do trabalho e dos serviços dos servos da gleba pelos senhores feudais e o que tem ocorrido na ciência: a apropriação de conteúdo intelectual gerado na comunidade científica por empresas do ramo digital (um oligopólio de empresas envolvidas na produção e disseminação de conhecimentos científicos e as Big Techs), bem como suas causas e consequências.

O modelo esquemático do feudalismo medieval

Para traçar um paralelo entre o feudalismo medieval e o cibernético aplicado à ciência e suas consequências, é preciso recapitular, de forma muito esquemática, os mecanismos pelos quais o excedente produzido pelos camponeses era apropriado pelos senhores de terras na Idade Média. Obviamente, este paralelo tem apenas um caráter didático e não pretende sequer tangenciar a complexidade imensa da diversidade histórico-geográfica e do debate historiográfico atual sobre o feudalismoiv.

Desde os anos 1970, historiadores como George Duby e Jacques Le Goff, entre muitos outros, aplicaram à sociedade feudal europeia o esquema ideal e simbólico proposto por Georges Dumézil das três funções indo-europeias, que podem ser assumidas, sociologicamente, também por três estamentos ou grupos sociais fundamentaisv. O primeiro assume o poder político, o uso da força e da potência guerreira (o senhor feudal, no âmbito de um sistema nobiliárquico fortemente hierarquizado entre vassalos e suseranos). O segundo diz respeito ao domínio do sagrado e do simbólico (o poder eclesiástico, secular e regular) e o terceiro refere-se ao corpo social majoritário situado na base dessa triangulação, que assume as funções de fecundidade e de alimentação (o camponês ou servo da gleba).

Suseranos (imperadores e alta nobreza) detinham controle sobre terras, estradas e pontes, bem como sobre a infraestrutura agrícola (moinhos, arados) e podiam ceder a seus vassalos o direito de explorar esses bens. Suseranos e vassalos eram ligados por laços e ritos de homenagem e fidelidade recíproca (econômica, política, militar, pessoal e simbólica). Este poder fundiário articulava-se ao poder eclesiástico, que o legitimava e sacralizava. O poder eclesiástico detinha controle sobre a esfera do simbólico e do religioso, ou seja, sobre a transmissão do saber consignado nos textos, bem como sobre a ortodoxia religiosa, ritos litúrgicos, o calendário de festas sacras, as crenças, valores espirituais, costumes e normas que regiam a sociedade e lhe conferia um senso de identidade. Seu dirigente máximo, o Papa, também podia agir como suserano e alocar terras e bens da igreja a cardeais e a bispos vassalos, de origem igualmente nobiliárquica. Esses dois estamentos sociais, frequentemente oriundos das mesmas famílias, exploravam em conjunto a base da sociedade feudal, responsável pela produção de riqueza agropecuária e artesanal, isto é, os servos da gleba, os quais, em contrapartida, recebiam moradia, segurança e acesso a pequenas porções de terras que podiam cultivar por conta própria (mansos servis) para assegurar sua sobrevivência.

Feudalismo nuvioso

Hoje, as Big Techs agem como suseranos por deterem o equivalente a terras e infraestrutura nos tempos medievais, isto é, a “nuvem”, central a todas as atividades informacionais, político-econômicas e sociais da atualidade. As Big Techs são hoje principalmente sete companhias estadunidenses, chamadas as “Sete Magníficas” (Magnificent Seven): Amazon, Alphabet (proprietária do Google e do Youtube), Microsoft, Meta (proprietária do Facebook, Instagram e Whatsapp), Apple, Nvidia e Tesla. Além delas, há quatro corporações chinesas: Baidu, Alibaba, Tencent e a Xiaomi (BATX). Estas onze megacorporações desfrutam do status de Titãs do ramo da tecnologia da informação por oferecerem quatro tipos de serviços pelos quais cobram de diversas formasvi: (a) infraestrutura (para o processamento de dados/informações, como a Amazon Web Services, o Google Cloud Space e o Microsoft Azure), (b) software/aplicativos, (c) dados (como de saúde, localização, histórico de buscas e compras etc.) e (d) plataformas de vários tipos: de busca de informações (Google), repositórios (Youtube), comunicação (Whatsapp), socialização online (Facebook), pagamentos (Paypal) e vendas (Amazon Marketplace). Estes serviços são empregados por toda sorte de empresas que operam ou têm presença online. Por exemplo, somente três dessas empresas (Amazon, Google e Microsoft), concentram hoje 64% de todo o mercado de serviços de infraestrutura na nuvemvii.

Ao usar esses serviços, empresas e Estados que os alugam tornam-se “parceiros” das Big Techs. Trata-se, obviamente, de um eufemismo. Os contratos envolvidos têm cláusulas leoninas6 que determinam, por exemplo, quanto cada empresa pode cobrar por seus produtos ou serviços. Além disso, esses contratos, via de regra, exigem o compartilhamento com as Big Techs dos dados que seus clientes coletam. Tais informações, que incluem dados pessoais, preferências, valores e hábitos dos usuários, são usadas por ferramentas de inteligência artificial (algoritmos) de empresas que operam na nuvem para “aperfeiçoar” seus serviços, outro eufemismo. Aperfeiçoar significa, neste contexto, aumentar rendimentos dessas empresas apresentando a cada internauta (pessoa física ou jurídica) o que ele ou ela terá maior chance de consumir. Quanto mais dados são coletados, melhor são treinados tais algoritmos que, por sua vez, influenciam as escolhas subsequentes dos usuários de forma cada vez mais individualizada.

Este mecanismo, portanto, viabiliza um tipo de domínio social, político e econômico jamais experimentado pela humanidade que se dá por meio de cobrança por serviços e produtos, cobranças não monetizadas por meio de usurpação de dados pessoais de internautas, bem como manipulação comportamental customizada. Tem-se usado o termo tecnofeudalismo para descrever este sistema em livros (ainda indisponíveis em português) como “Tecnofeudalismo: Crítica de uma Economia Digital” viii, de Cédric Durand, da Universidade de Genebra e “Tecnofeudalismo: o que Matou o Capitalismo”ix, do economista, político e acadêmico grego Yanis Varoufakis. Não é nosso ponto discutir se o capitalismo foi superado, como argumenta Varoufakis, ou se continuamos a viver sob um sistema capitalista, ideia defendida, entre outros, por Eleutério Prado, da Universidade de São Paulox. Independentemente disso, a analogia entre o feudalismo medieval e o sistema atual de apropriação de conhecimentos científicos é notável e não costuma ser discutida, embora seja parte do motor desta nova ordem social. Como já bem o intuía o conhecido aforisma de Francis Baconxi, o conhecimento é, ele próprio, poder (ipsa scientia potestas est). Isso é tanto mais verdadeiro em nossos dias, pois o fato de deter dados, conhecimento e tecnologia digital significa, mais do que nunca, ter poder.

Convém explicitar que a nuvem não se vale apenas de tecnologia imaterial (softwares, aplicativos e algoritmos), pois pressupõe a existência de hardware de natureza física e não etérea: terminais empregados pelos usuários (telefones e relógios smart, computadores, laptops etc.), todos os cabos de internet, roteadores, antenas e afins, equipamentos necessários para a produção e transmissão de energia elétrica (incluindo turbinas eólicas e parques fotovoltaicos para geração de energia “renovável”) e os servidores que processam, armazenam e transmitem dados. Estima-sexii que a produção e uso de tecnologias de comunicação de informações consomem entre 6% e 12% de toda a eletricidade gerada no planeta e são responsáveis por emissões globais de carbono que quase equivalem à emitida por países como a Rússia. Além disso, essa infraestrutura12 não é renovável, envolve queima de combustíveis fosseis, mineração e produção de plásticos em altíssima escala e gera, consequentemente, vastas quantidades de resíduos não recicláveis e tóxicos, além de consumir água para a refrigeração dos servidores de modo absolutamente insustentável.

Todos estes graves danos ambientais, assim como a importância da centralização de dados e conhecimentos científicos e tecnológicos acima mencionados, aplicam-se não somente aos serviços informacionais ofertados pelas Big Techs; estendem-se também a outros produtos que comercializam, pois estas empresas têm participação tentacular em muitos setores econômicosxiii, como nas áreas de financeirização, medicina (notadamente no ramo farmacêutico), engenharia e física (como a indústria automobilística e de satélites), para dar apenas alguns exemplos.

Suseranos, vassalos e servos no cientofeudalismo

O paralelo entre o sistema de funções tripartites da sociedade feudal com a produção científica no mundo contemporâneo salta aos olhos, de onde a possibilidade de designá-la como uma espécie de feudalismo científico-digital ou, para brevidade, um cientofeudalismo digital. As Big Techs operam como suseranos que têm como vassalos um grupo de empresas que controlam toda a cadeia de produção e divulgação de ciência de forma digital. Essas empresas formam um oligopólioxiv que inclui, preponderantemente, a Elsevier, a Springer Nature, a John Wiley & Sons, a Taylor & Francis e a SAGE Publications. Estas companhias começaram como editoras que detinham revistas/periódicos onde artigos científicos eram publicados. Porém, desde o lançamento da internet, elas passaram a integrar subsidiárias e/ou ofertar serviços que não apenas permitem a publicação de artigos, mas também a coleta, análise e arquivamento de dados de pesquisa, a busca por artigos, a avaliação de mérito científico de suas próprias revistas e dos cientistas, entre outros. Isso foi possível graças a integrações horizontais (fusões com e/ou compra de editoras menores) e verticais (controle sobre todo os níveis do processo de produção de conhecimento científico e tecnológico)xv. A ciência hoje é toda plataformizadaxvi e, em geral, envolve esse tipo de domínio empresarial.

Por sua vez, servem como servos da gleba a este oligopólio e às Big Techs os cientistas e os Estados que os financiam, diretamente por meio de salários e infraestrutura física, e indiretamente através de agências de fomento à pesquisa. Esse bloco de poder, ligado por uma relação de suserania e vassalagem, detém controle ciber-espacial sobre feudos digitais capazes de inviabilizar qualquer tentativa de fazer ciência em formatos alternativos. Ele lucra cobrando pelo uso das ferramentas nuviosas que controla, usadas na produção e disseminação de conhecimentos. Não participa do processo de produção deste conhecimento, tal como outrora os senhores feudais dominavam a riqueza produzida por servos da gleba. A servidão dos cientistas neste cenário se dá por meio de pagamentos de vários tipos de tributos cobrados por essas megaempresas, cujos paralelos no universo medieval serão exemplificados abaixo. Embora o mesmo se aplique a outros setores de produção intelectual e artística (jornalismo, literatura, música etc.), estes não serão aqui exploradas, pois têm diferentes consequências.

Tributos cobrados da comunidade científica

Revistas científicas existem há mais de 350 anos e o processo de publicação de artigos nestes periódicos permanece essencialmente o mesmo desde então, com algumas exceções13. Hoje, textos científicos estão disponíveis na nuvem (e não mais exclusivamente em papel) e incluem obras que ainda não foram chanceladas com um selo de qualidade científica (aprovadas pela revisão por pares), como é o caso de preprints (postagens online de textos antes de serem publicados como artigo) e artigos que aparecem em revistas que só visam lucros em publicar (revistas predatórias). Estes tipos de textos científicos não serão aqui tratados. Focaremos somente em artigos que atendem a padrões de rigor de avaliação científica, atualmente disponíveis online em um de dois modelos alternativos de publicação13:

(a) a forma tradicional, em que os cientistas não pagam para publicar, mas pagam para ler artigos científicos, forma predominante até o final do século XX;

(b) uma forma emergente, particularmente na última década, em que os cientistas não pagam para ler artigos, mas pagam para publicar, isto é, para que suas obras sejam disponibilizadas de forma livre, gratuita (open access).

Ambos os modelos, explicados em detalhe adiante, garantem às empresas do oligopólio editorial taxas de lucro que chegam a beirar 40%, como é o caso da Elsevierxvii. Estamos falando de taxas de lucro maiores até mesmo do que as taxas auferidas por megaempresas digitais como o Google e a Apple. Essas taxas são obtidas graças ao controle desse setor editorial sobre o empreendimento científico, o que lhe permite cobrar cada vez mais caro para que se possa ler os artigos que publicam (em média cerca de US$ 40 por artigo), bem como para publicá-los (chegando a mais de US$ 12 mil por artigo), com considerável ônus para países do Sul Globalxviii.

Examinemos, agora, as diversas formas de apropriação do trabalho científico de parte deste oligopólio, abaixo consideradas em paralelo com o sistema feudal de apropriação do trabalho e dos frutos do trabalho dos servos da gleba. Em seguida, trataremos do papel das Big Techs nesta equação. De tais comparações, desponta que o servilismo imposto a cientistas é, por vezes, até pior do que os tributos impostos aos servos da gleba.

  1. A Talha

A talha era um tributo cobrado dos servos pelos senhores feudais que correspondia a uma porcentagem da colheita cultivada pelos próprios servos nas pequenas porções de terras (mansos) a eles concedidas por estes senhores. Diferentemente, a depender do modelo de publicação de artigos, a talha imposta por empresas digitais a pesquisadores equivale à totalidade do que os cientistas produzem ou até mais, por mais irreal que isso possa parecer.

Na forma tradicional de publicações, o conteúdo dos artigos é acessível ao cientista apenas sob pagamento às editoras, que controlam o acesso online por meio de paywall. Embora, nesse modelo, essas editoras não cobrem os autores para publicar seus artigos, elas exigem que os pesquisadores transfiram-lhes os direitos autorais das obras, o que lhes permite auferir 100% dos rendimentos da venda do acesso a estes trabalhos, incluindo uso secundário deste conhecimento, como qualquer divulgação de gráficos ou ilustrações contidos nesses artigos. Esse oligopólio se apropria da totalidade desses rendimentos por possuir as plataformas digitais em que são produzidos, submetidos, avaliados e depositados os artigos científicos, embora não financiem as pesquisas e nem participem da produção intelectual do que vendem.

Atenção: disto decorre que os direitos autorais do conteúdo intelectual (científico e tecnológico) de todos os artigos publicados sob este modelo pertence a companhias privadas. Isso inclui praticamente todos os artigos publicados até o fim do século XX e boa parte dos publicados desde então, embora tenham sido produzidos com recursos advindos de impostos.

O papel das editoras científicas é meramente intermediar e reger a relação entre autores que querem publicar e aqueles encarregados do árduo trabalho de examinar a qualidade científica desses trabalhos, isto é, os editores científicos (editors), que decidem o que será publicado, e outros especialistas que fazem a revisão de sua qualidade (revisão por pares). Uma vez concluídas todas as etapas desse longo processo, os custos dessas empresas são, portanto, baixos18: além dessa intermediação, elas apenas diagramam os artigos e os postam em suas plataformas digitais.

Em contraste, os gastos da produção de ciência são altos e majoritariamente arcados pela receita fiscal dos Estados da maior parte das nações. Por exemplo, no caso do Brasil, segundo o relatório da Clarivate Analyticsxix, 90% dos artigos científicos publicados entre 2011 e 2016 são obras de cientistas que trabalham e/ou estudam em 20 universidades públicas. Isto significa que recursos públicos são usados para pagar os salários e bolsas dos pesquisadores e pessoal técnico envolvidos em pesquisa, assim como para manter as instalações e laboratórios para este fim. Os parcos recursos para custear cada pesquisa advêm também de órgãos ou fundações de fomento à pesquisa governamentais, Federais e/ou Estaduais, para o usufruto dos quais há crescente competição na comunidade científica. Além destes gastos, para que os pesquisadores brasileiros possam ler estes artigos são investidos cerca de R$550 milhõesxx anuais de verbas públicas para pagar assinaturas de revistas científicas (juntamente com alguns outros serviços), nas quais há muitos artigos que foram financiados por nosso próprio Estado.

Examinemos agora o correspondente à talha no caso de publicações que seguem o segundo modelo de publicação de artigos, no qual não se paga para ler, mas para publicar, uma forma de publicação que tem crescido substancialmente nos últimos anos18. Esse pagamento é feito sob a rubrica taxas de processamento de artigos, ou article processing charges (APCs). Há estimativas de que o Estado brasileiro esteja desembolsando para isso mais de US$$ 37 milhões por anoxxi. Isto se justifica pelo fato de que acesso aberto e livre a conteúdo científico está de acordo com os preceitos do movimento de ciência abertaxxii, que visa aumentar o impacto de produções científicas, democratizar a ciência, e permitir o cumprimento da Agenda 2030 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

A despeito disso, pagar APCs corresponde a uma talha maior do que doar a totalidade do conhecimento produzido, como ocorre no caso de publicações tradicionais, cujos direitos autorais pertencem às revistas. Seria como fazer com que os servos da gleba tivessem que pagar para que os senhores feudais doassem toda a parte da colheita que pertence aos servos e foi gerada por seu próprio trabalho. Isto é ainda mais grave se for considerado que o financiamento da produção científica é assegurado por recursos públicos, que cobrem também os custos de uso da infraestrutura digital plataformizada pertencente ao oligopólio de publicações (ou a empresas parceiras) para produzir e armazenar conteúdo científico.

Mais ainda, embora nesse segundo modelo de publicação as editoras não recebam pagamentos pela leitura dos artigos que publicam, os autores destas obras e seus financiadores não recebem remuneração financeira pelo fruto de seu trabalho e pelos recursos estatais envolvidos. Isto acontece porque tais publicações são geralmente condicionadas a serem publicadas com licenças de direitos autorais do tipo Creative Commons By (CC By). Neste modelo, os autores detêm os direitos autorais, mas é permitido que outras pessoas distribuam, remixem, adaptem e criem a partir do conteúdo licenciado, mesmo para fins comerciais, desde que o crédito da autoria seja reconhecido. Em outras palavras, qualquer um – inclusive as megaempresas que ofertam serviços de produção e disseminação de ciência e Big Techs, cujos serviços são alugados por este oligopólio – pode lucrar com produtos derivados destes trabalhos pelos quais as editoras já cobraram APCs.

  1. A corveia

A corveia era um tributo feudal na forma de trabalho, sem vencimentos, a ser realizado pelos servos nas propriedades dos senhores (reserva senhorial), sendo que o resultado desse trabalho cabia exclusivamente aos controladores de terras. Algo parecido também ocorre na ciência, já que o controle de qualidade de artigos publicados pelas editoras, e pelos quais elas lucram, é realizado gratuitamente por outros cientistas. A revisão por pares é trabalho não pago e, se fosse, estima-se que custaria em torno de US$ 1,1-1,7 bilhão por anoxxiii. Boa parte dos editores científicos (editors)também não são pagos e os que são empregados por editoras recebem valores muito abaixo de sua qualificação, pois ganham nos EUA em média US$ 33/hora, enquanto a remuneração de cientistas com titulação de doutor (PhD), requerida para ser um editor, é de US$ 68/horaxxiv. Cientistas também trabalham de graça fazendo propaganda, isto é, promovendo os produtos destas empresas quando citam trabalhos publicados por colegas.

  1. As banalidades e a mão-morta

As banalidades eram tributos pagos por servos a senhores feudais pela utilização de ferramentas e/ou infraestrutura sob poder dos senhores, como moinho e arado, além de pedágio pelo uso de estradas e pontes. No caso do empreendimento científico atual, os pesquisadores/Estados também devem pagar assinaturas para poder usar uma grande variedade de serviços digitais da ciência, hoje plataformizada, já que ferramentas online são usadas para publicar e ler artigos, coletar, analisar e armazenar dados de pesquisa, buscar e redigir artigos, trocar informações em redes sociais de cientistas etc.

Grande parte de tais serviços pertence às mesmas empresas do setor de publicações, formando um intricado ecossistema de serviços digitais acadêmicos mapeado pelo projeto Inovações na Comunicação Acadêmica (Innovations in Scholarly Communication), da biblioteca da Universidade de Utrechtxxv. Por exemplo, são subsidiários da Elsevier (e/ou de sua empresa mãe, a RELX): (a) o Scopus (base de dados de artigos que permite encontrar publicações), (b) o Mendeley (usado para escrever manuscritos), (c) centenas de periódicos (incluindo o repositório Social Science Research Network, SSRN, uma plataforma onde se pode postar e acessar preprints gratuitamente), (d) o CiteScore (que avalia o desempenho acadêmico de cientistas, revistas, instituições e países) e (e) o Newsflo (que perscruta citações na mídia).

Além de pagar assinaturas para usar parte da infraestrutura digital para fazer ciência (que correspondem às banalidades pagas por servos), a comunidade científica também paga, de forma não monetizada, cedendo informações acadêmicas e pessoais, sobre preferências e padrões de uso, coletadas enquanto usam estes serviços e que são empregadas para aperfeiçoá-los (melhor dizendo, aumentar lucros) por meio de algoritmização.

O mesmo tipo de pagamento por cessão de dados ocorre no que tange o correspondente científico do tributo medieval chamado mão-morta. Quando um servo chefe de família falecia, sua “identidade de servo” não era herdada. Para que o descendente que assumia a função de seu pai pudesse adquirir este status, era necessário que pagasse a seu senhor feudal este tributo. Para evitar a publicação de trabalhos de pesquisadores fantasma, cientistas também são obrigados a obter uma “identidade de pesquisador”, conferida por ferramentas digitais como o Open Researcher and Contributor ID (ORCID). É fato que não é necessário pagar o ORCID por isso, mas os dados pessoais e acadêmicos fornecidos para tanto são informações cedidas gratuitamente que podem ser empregadas para melhorar a algoritmização não só por parte desta empresa, mas também por suas parceiras (o oligopólio do setor de publicações e as Big Techs, donas da infraestrutura digital usada por ele).

4. O dízimo

O dízimo era uma porcentagem da produção pertencente aos próprios servos devida à igreja. Representava um agradecimento ao divino pelo privilégio da fé e que marcava a edificação dos princípios morais e sociais vigentes. No sistema atual de produção de ciência ocorre um paralelo, também de cunho imaterial e simbólico: a comunidade acadêmica paga caro pelo privilégio de se deixar avaliar por empresas associadas ao ramo de publicações que exploram seu trabalho, o que toma forma de métricas indicadoras de prestígio e/ou posições em rankings (índices cientométricos).

A natureza quase divina no meio acadêmico dessas métricas se explica pelo fato que elas são empregadas para direcionar as limitadas verbas públicas de pesquisa a cientistas (e/ou instituições) com “maior mérito”, sem as quais não é possível a um pesquisador permanecer em sua carreira. Exemplos dessas medidas de status acadêmico18 são o Scopus CiteScore (da Elsevier), o Journal Citation Report (JCR) e SCImago Journal Rank (SJR), ofertados por companhias parceiras ao oligopólio, e o Altmetrics, que mede citações na mídia (subsidiária de um dos dois acionistas principais do grupo Springer Nature, a Holtzbrinck Publishing Group); existem também rankings de prestígio científico, fornecidos pelas mesmas empresas, de produtividade de universidades, países e até do número de vezes que cientistas fazem revisão por pares (o que os incentiva a trabalhar de graça…).

As métricas principais usadas para avaliar a produtividade de pesquisadores e instituições acadêmicas são chamadas de índice ou fator de impacto de revistas científicas. Elas medem, essencialmente, a média de vezes que a totalidade dos artigos nelas publicados são citados em outras publicações em um dado período de tempo; ou seja, quanto os conhecimentos nelas contidas são valorizados pela comunidade acadêmica. Porém, a média de citações de artigos de uma revista (fator de impacto) não espelha as citações recebidas por cada artigo, pois há uma baixa correlação entre essas medidasxxvi. Em outras palavras, o fator/índice de impacto das revistas não reflete os méritos (qualidade, inovação etc.) de cada artigo individual nelas publicados e, portanto, tampouco os de seus autores. Assim sendo, não faz sentido que os pesquisadores sejam ranqueados segundo esse tipo de medida. Em contraste, há vantagens consideráveis para as editoras e suas parceiras de enaltecer estes indicadores simbólicos e fazer perdurar seu uso, pois quanto maior o fator de impacto de uma revista, maior é a probabilidade que ela atraia autores com resultados de ponta interessados em nela publicar. Esses artigos mais inovadores têm maior probabilidade de serem citados, o que, por sua vez, aumenta o índice de prestígio da revista.

Tal controle simbólico das métricas de mérito é reforçado com o uso de IA por parte das empresas digitais que operam neste setor, as quais continuamente coletam dados sobre crenças, valores e comportamentos dos pesquisadores por meio de dados que eles, sem perceber, concedem a estas companhias ao usar a nuvem para trabalhar. Com este círculo vicioso de autoaprendizado homem-máquina, os preceitos do que é considerado “boa ciência” são fabricados e manipulados, lucros são maximizados e o monopólio é mantido.

Quadro resumo dos paralelos entre o feudalismo medieval e o sistema feudalizado da ciência atual.

Prêmio
Moradia, proteção, acesso a terras para sustento próprio, manutenção de relação com o sistema de crençasObter prestígio acadêmico (imaterial), necessário para assegurar verbas para fazer pesquisa e permanecer na carreira (publicar para não perecer)

Servidão voluntária?

Ainda no século XVI, em seu “Discurso Sobre Servidão Voluntária”xxvii, Étienne de La Boétie já apontava que tiranos permanecem no poder enquanto seus subalternos lhes concedem este direito, deslegitimando formas alternativas de controle político. Também na Idade Média, as relações sociais entre senhores feudais e servos da gleba eram asseguradas não apenas pelo uso da força, mas também e sobretudo pelo consentimento, reforçado por valores religiosos e eclesiásticos. Observa-se um tipo comparável de consentimento na subserviência da comunidade acadêmica atual, que aceita, acredita e não faz pressão suficiente para se opor ao valor simbólico de prestígio acadêmico, isto é, índices de impacto de revistas científicas determinados por empresas a elas associadas. Hoje, essa passividade é compreensível, pois cientistas dependem de plataformas na nuvem destas companhias para trabalhar. Acontece que, mesmo antes da era digital, cientistas e Estados que financiavam a pesquisa já outorgavam a empresas privadas o direito de definir “mérito científico”.

As consequências potenciais disso são graves e não se limitam ao já mencionado controle dos direitos autorais de praticamente todo o conteúdo intelectual contido em todos os artigos publicados no modelo não aberto por empresas privadas. Tal modus operandi incentiva pesquisadores proeminentes, convidados a participar dos comitês de assessoramento responsáveis por alocar financiamentos de pesquisa a seus colegas, a perpetuar este sistema que os valoriza e empodera.

A pressão para publicar em revistas prestigiosas resulta também no aumento da crise de credibilidade da ciência. Apenas em 2023 foram retirados (retracted) mais de 10 mil artigos publicados, o que corresponde a 20% das 50 mil retratações já registradasxxviii. Segundo especialistas28, isto representa “apenas a ponta do iceberg” dos artigos fraudulentos e/ou com graves limitações (por má fé ou erros involuntários). Mais ainda, este mecanismo também exorta cientistas, instituições de pesquisa e Estados a privilegiar os temas de pesquisa que essas empresas consideram mais interessantes (para elas). Faz, ademais, com que pesquisadores tendam a dar ênfase demasiada à relevância de parte de seus achados para aumentar a probabilidade de que sejam publicados e mais citados, o que eleva o fator de impacto das revistas. Estimula também que pesquisadores evitem publicar artigos que tendam a ser menos citados. Isso inclui suprimir resultados que não se encaixam em teorias convencionais e/ou desencorajar replicações de resultados de pesquisas anteriores, um processo inerente à produção de consenso na ciência.

Estes vieses são potencialmente levados a extremos quando empresas que atuam por meio de e/ou detém controle da nuvem contratam pesquisadores que atuam em fundações públicas que fomentam pesquisa e/ou quando financiam eventos e/ou empreendimentos científicos realizados pela academia. Estas são práticas comuns que conferem a essas companhias o poder de exercer pressão para que o sistema seja mantido e para que sejam produzidos e publicados artigos com resultados favoráveis a elasxxix, além de fazer com que consigam manter para si patentes de inovações que surgem de coautorias com estas instituições6.

Movimentos acadêmicos têm há muito ressaltado a necessidade de superação destes falsos critérios de mérito e da adoção de formas mais efetivas de avaliar o que é ciência de qualidade, tal como proposto em 2012 na Declaração de São Francisco sobre Avaliação de Pesquisa (The Declaration on Research Assessment, DORA)xxx. Todavia, na prática, tais medidas não têm sido implementadas.

Como as Big Techs se beneficiam

Até aqui, nossa análise procurou mostrar como o oligopólio corporativo de empresas que plataformizam serviços científicos domina e explora a comunidade acadêmica de diversos modos. Trata-se agora de enfatizar as diversas formas pelas quais as Big Techs asseguram seu poder, beneficiando-se desse sistema de produção, disseminação e avaliação de artigos científicos.

Eis a primeira delas. Todos os conteúdos intelectuais e dados pessoais e acadêmicos que o oligopólio do setor científico detêm e obtêm a partir do uso de seus serviços são acessíveis (na forma de parcerias) pelas Big Techs, que controlam a infraestrutura e a tecnologia alugadas por essas empresas para operar seus negócios. Por exemplo, a RELX/Elsevier usa a infraestrutura da Amazon e da Microsoftxxxi, corporações que, portanto, podem se apoderar dessas informações e usá-las para assegurar seus próprios e múltiplos interesses comerciais.

Em segundo lugar, as Big Techs disponibilizam serviços diretamente a instituições de pesquisa, sem empresas intermediárias. Por exemplo, a maioria das universidades públicas brasileirasxxxii, e grande parte das internacionais também28, adotaram o Gmail e outros serviços de educação terciária pertencentes ao Google (Google Cloud for Higher Education e Google Workspace). Embora seja necessário pagar assinatura para usar apenas alguns desses serviços, há sempre pagamento não monetário: cessão ao Google de todos os dados e conteúdos científicos (já publicados ou não), trocas de mensagens e conversas online entre pessoas do universo acadêmico, seu padrão de preferência, leitura etc., sempre aproveitados para aumentar sua renda e poder.

Em terceiro lugar, a pressão exercida sobre pesquisadores para publicar e ascender em rankings de prestígio acadêmico tem progressivamente elevado seu uso de modelos de linguagem de grande escala baseados em IAxxxiii, pertencentes a Big Techs, como o ChatGPT, da OpenAI (cujos investidores incluem a Microsoft e Elon Musk). Tal uso envolve auxílio na elaboração de projetos para a obtenção de verbas, redação de artigos científicos, revisões da literatura e até análise de dados. Tais modelos seguem a lógica estabelecida por empresas comerciais do que é considerada “boa” pesquisa (a que aumenta seus lucros e poder) e, não raro, gera publicações fraudulentas e sem nenhum nexo, já que IA comumente “alucina”xxxiv, o que explica em grande parte o aumento recente de artigos que precisam ser retirados da literatura27.

Mais ainda, o aumento progressivo da dependência de IA para produzir mais e mais rápido também pode ter outro desdobramento desfavorável ao dificultar que a próxima geração de cientistas consiga gerar hipóteses próprias, expressar suas ideias e/ou pensar criticamente sobre seus resultados, como bem fazem notar Thiago França e José Maria Monserrat em artigo a este respeito33. Sem considerar as consequências, cientistas têm também desenvolvido ferramentas de IA capazes de fazer revisão por pares e o trabalho de editoresxxxv, bem como criado novas medidas de mérito científico (“escores de “novidade”, ou novelty scoresxxxvi). As empresas do setor agradecem. Em breve, poderão prescindir da mediação de especialistas, cortando custos e facilitando a identificação de conhecimentos estratégicos, que elas poderão rapidamente adquirir e usar em proveito próprio. Tal identificação e apropriação é também generalizada no caso de inovações desenvolvidas por startups6.

Em quarto lugar, as Big Techs inviabilizam a concretização dos objetivos e preceitos do movimento de ciência aberta22 para uma maior democratização de acesso a conhecimentos. Pode até parecer que elas estão alinhadas a esses objetivos quando “ofertam” mais e mais plataformas e softwares de livre uso. Não estão. Este estratagema6 permite que se apoderem de conhecimento e da forma com que ele é produzido sem terem que pagar por isso. Um caso emblemático é o GitHub, pertencente à Microsoft, uma plataforma digital que hospeda centenas de milhões de softwares, grande parte dos quais é de código livre. Tão logo outros atores postam nessas plataformas softwares produzidos por eles próprios (protegidos ou não por direitos autorais) e/ou produzem tecnologia aberta a partir destes produtos digitais de acesso gratuito, os Titãs da tecnologia começam a explorá-los comercialmente.

Isto não quer dizer, absolutamente, que IA e ciência aberta não tenham utilidade ou importância. O acesso a e trocas livres de informações é crucial para o avanço da ciência e possível graças a artigos abertos disponibilizados, por exemplo, na plataforma brasileira Scientific Library Online (SciELO), para os quais não se paga para çer e publicar ou se paga baixas APCs. Existem também muitas ferramentas científicas digitais abertas, listadas no Open Economics Guidexxxvii. Contudo, note o leitor que estes recursos não escapam de usar infraestrutura das Big Techs para funcionar. Ademais, não se pode deixar de notar que a combinação de ciência aberta e IA, por razões diametralmente opostas, pode fazer com que sociedade pague caro pela disponibilização livre de propriedade intelectual, tal como alerta Jonathan Barnett, em seu livro de 2024 The Big Steal: Ideology, Interest, and the Undoing of Intellectual Propertyxxxviii (O Grande Roubo: Ideologia, Interesse e a Destruição da Propriedade Intelectual). Barnett aponta que está em curso uma “aliança acidental” entre, de um lado, a academia, que visa de boa-fé flexibilizar e/ou abolir direitos sobre a propriedade intelectual para aumentar a democratização de conhecimentos, e, de outro, as gigantes tecnológicas e oligopólios verticalmente integrados a elas, que se aproveitam deste discurso para fazer lobby para que APCs sejam aceitáveis, bem como para assegurar sua dominância adquirindo, sem custos, conhecimentos científicos e tecnológicos em paralelo com a parasitação de dados pessoais de internautas e cientistas sem pagar por isso.

O resultado desta junção de princípios opostos pode acabar inviabilizando que a ciência, financiada com recursos públicos, busque soluções de problemas da humanidade cada vez mais prementes, como crescentes desigualdades sociais, piora da saúde e crises ambientais em escala planetária. De resto, esses problemas são causados em crescente medida pela própria existência da infraestrutura física da nuvem2,3,6,12,13, que, como dito acima, agrava a emergência climática e ambiental, além de contribuir para a redução de empregos, manipulação de corações e mentes e para o crescente negacionismo em relação à ciência.

O futuro

Mesmo só considerando o funcionamento da ciência plataformizada, sem falar de todas as demais esferas do cotidiano influenciadas pelas Big Techs (poderio econômico, político e de fabricação de consensos escusos), parece inegável que a sociedade atual é comandada por senhores feudais digitais de forma semelhante (ou ainda pior) ao que se verificava na Idade Média. Tudo indica que isso vai piorar nos próximos anos, já que Donald Trump, como já evocado, cercou-se de magnatas da IA e negacionistas para determinar o rumo da política e da ciência e tecnologia dos EUA. Preveem-se mudanças na legislação estadunidense em favor das Big Techs (redução de impostos e de direitos de privacidade), além das já tomadas contra a ciência e a preservação ambiental nos primeiros dias de seu governoxxxix. É mais que provável também que essas megacorporações estarão livres para se apropriarem mais ainda de conhecimentos gerados com recursos públicos, tal como acima discutido, incluindo agora abiscoitar em seu favor uma maior parte dos US$200 bilhõesxl de investimento federal anual em ciência e tecnologia dos EUA. Além disso, o investimento feito pelas Big Techs em pesquisas próprias, cujos direitos proprietários mantêm para si, só é superado, hoje, pelos valores dotados à ciência e tecnologia pelos EUA e pela China6. Desse modo, esses gigantes digitais acumulam e centralizam cada vez mais não só os conhecimentos gerados pela academia às custas dos Estados de todas as nações da Terra, mas também por elas próprias, retroalimentando seu poder centralizador.

Já não basta mais que a comunidade científica reaja alterando a metodologia de avaliação da qualidade da ciência, buscando produzir uma ciência mais aberta, aprendendo a usar IA de forma construtiva e/ou determinando novas formas de direcionar verbas a pesquisas necessárias para resolver as crises sociais e ambientais de nossos dias. A acelerada evolução da tecnologia da informação impõe novos desafios sombrios, pois todo o sistema de produção, arquivamento e avaliação de conteúdo intelectual depende hoje intrinsecamente da nuvem, sobre a qual os Estados que financiam pesquisas e os cientistas que as realizam não têm nenhum controle.


Notas:

iGaristo, D., & Tollefson, J. (2025). Trump’s science advisers: how they could influence his second presidency. Nature637(8048), 1029-1030. doi: https://doi.org/10.1038/d41586-025-00132-0https://www.nature.com/articles/d41586-025-00132-0

ii Cf. Riddell, R. e cols. (2024). Inequality Inc. How corporate power divides our world and the need for a new era of public action. Oxfam International; http://doi.org/10.21201/2024.000007; e https://www.oxfam.org/en/press-releases/richest-1-bag-nearly-twice-much-wealth-rest-world-put-together-over-past-two-years (consultado em 30/01/2025).

iii Cf. Sullivan, D., & Hickel, J. (2023). Capitalism and extreme poverty: A global analysis of real wages, human height, and mortality since the long 16th century. World development161, 106026. https://doi.org/10.1016/j.worlddev.2022.106026

iv Cf. Franco Jr, H. (1993). Feudalismo, 4ª. Edição, Leituras Afins.

v Cf. Georges Dumézil, L’idéologie tripartie des Indo-Europeens, Bruxelas, 1958; Georges Duby, Les trois ordres ou l’imaginaires du féodalisme, Paris, 1978; Jacques Le Goff, “Les trois fonctions indo-européennes, l’histoire et l’Europe féodales”. Annales, 1979, 34-6, pp. 1187-1215.

vi Cf. Rikap, C. (2024). Dynamics of corporate governance beyond ownership in AI. Common Wealth. https://www.common-wealth.org/publications/dynamics-of-corporate-governance-beyond-ownership-in-ai (consultado em 30/01/2025).

vii https://www.srgresearch.com/articles/cloud-market-growth-surge-continues-in-q3-growth-rate-increases-for-the-fourth-consecutive-quarter (consultado em 30/01/2025).

viii Cf. Durand, C. (2020) Technoféodalisme: Critique de l’économie numérique. La Découverte. https://www.editionsladecouverte.fr/technofeodalisme-9782355221156

ix Cf. Varoufakis, Y. (2024). Technofeudalism: What killed capitalism. Melville House.

x https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-hipotese-do-tecnofeudalismo/ (consultado em 30/01/2025)

xi Bacon, F. (1597). Meditationes sacrae (p. 1597). Excusum impensis Humfredi Hooper. Publisher, Excusum impensis Humfredi Hooper.

xii https://www.genevaenvironmentnetwork.org/resources/updates/data-digital-technology-and-the-environment/ (consultado em 30/01/2025)

xiii Cf. Kordi, M. (2024). Surveillance Capitalism: The Transformation of Raw Online Data into Valuable Assets by High-Tech Companies—Is AI Governance a Threat or a Solution to Our Privacy Concerns?. Em: The Palgrave Handbook of Sustainable Digitalization for Business, Industry, and Society (pp. 401-416). Cham: Springer International Publishing. https://doi.org/10.1007/978-3-031-58795-5_18

xiv Cf. Larivière, V. e cols. (2015). The oligopoly of academic publishers in the digital era. PloS one10(6), e0127502. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0127502

xv Cf. Chen, G. e cols. (2019). Vertical integration in academic publishing. Em: Connecting the knowledge commons—From projects to sustainable infrastructure, 15-40. https://books.openedition.org/oep/8999?lang=en

xvi Cf. da Silva Neto, V. J., & Chiarini, T. (2023). The platformization of science: towards a scientific digital platform taxonomy. Minerva61(1), 1-29. https://doi.org/10.1007/s11024-022-09477-6

xvii Cf. Aspesi, C. & SPARC (Scholarly Publishing and Academic Resources Coalition). (2019). Research Companies: Elsevier. Landscape analysis. https://infrastructure.sparcopen.org/landscape-analysis/elsevier (consultado em 30/01/2025).

xviii https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/os-mercadores-globais-do-saber/

xix Cf. Analytics, C. (2018). Research in Brazil: A report for CAPES by Clarivate Analytics. Clarivate Analytics. https://observatoriodoconhecimento.org.br/wp-content/uploads/2019/04/04-Research-in-Brazil.pdf (consultado em 30/01/2025)

xx https://www.gov.br/capes/pt-br/assuntos/noticias/inclusao-e-investimentos-marcam-gestao-da-capes-em-2023 (consultado em 30/01/2025)

xxi Cf. do Canto, F. L. e cols. (2024). Taxas de processamento em artigos brasileiros. Ciência da Informação53(3). https://revista.ibict.br/ciinf/article/view/7212/6925.

xxii https://www.unesco.org/pt/fieldoffice/brasilia/expertise/open-science-brazil (consultado em 30/01/2025)

xxiii Cf. LeBlanc, A. G. e cols. (2023). Scientific sinkhole: estimating the cost of peer review based on survey data with snowball sampling. Research Integrity and Peer Review8(1), 3. https://doi.org/10.1186/s41073-023-00128-2

xxiv https://www.ziprecruiter.com/ (consultado em 30/01/2025).

xxv https://101innovations.wordpress.com/outcomes/ (consultado em 30/01/2025).

xxvi Cf. Abramo, G. e cols. (2023). Correlating article citedness and journal impact: an empirical investigation by field on a large-scale dataset. Scientometrics128(3), 1877-1894. https://doi.org/10.1007/s11192-022-04622-0

xxvii de la Béotie, É. (1922). Discours de la servitude volontaire (No. 30). Editora Bessard.

xxviii Cf. Van Noorden, R. (2023). More than 10,000 research papers were retracted in 2023 — a new record. Nature, 624(7992), 479-481. https://doi.org/10.1038/d41586-023-03974-8.

xxix Cf. Sarfi, M. e cols. (2021). Google’s University? An exploration of academic influence on the tech giant’s propaganda. Journal of Cyberspace Studies5(2), 181-202 <https://doi.org/10.22059/jcss.2021.93901>.

xxx https://sfdora.org/read/read-the-declaration-portugues-brasileiro/ (consultado em 30/01/2025)

xxxi https://finance.yahoo.com/news/relx-expands-globally-cloud-hosting-130600180.html?guccounter=1 (consultado em 30/01/2025).

xxxii Cf. Parra, H. e cols. (2018). Infraestruturas, economia e política informacional: o caso do Google Suite for Education. Mediações-Revista de Ciências Sociais, 63-99. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2018v23n1p63.

xxxiii Cf. França, T. F., & Monserrat, J. M. (2024). The artificial intelligence revolution… in unethical publishing: Will AI worsen our dysfunctional publishing system?. Journal of General Physiology156(11). https://doi.org/10.1085/jgp.202413654.

xxxiv Cf. Sun, Y. e cols (2024). AI hallucination: towards a comprehensive classification of distorted information in artificial intelligence-generated content. Humanities and Social Sciences Communications11(1), 1-14. https://doi.org/10.1057/s41599-024-03811-x>.

xxxv Cf. Bharti, P. K. e cols. (2024). PEERRec: An AI-based approach to automatically generate recommendations and predict decisions in peer review. International Journal on Digital Libraries25(1), 55-72. https://doi.org/10.1007/s00799-023-00375-0.

xxxvi Cf. Wla, D. S. (2024) “Can novelty scores on papers shift the power dynamics in scientific publishing?”. Nature. https://doi.org/10.1038/d41586-024-04021-w.

xxxvii https://openeconomics.zbw.eu/en/knowledgebase/open-policy-finder/ (consultado em 30/01/2025)

xxxviii Cf. Barnett, J. M. (2024). The Big Steal: Ideology, Interest, and the Undoing of Intellectual Property. Oxford University Press.

xxxix Kozlov, M. (2025) ‘High anxiety moment’: Biden’s NIH chief talks Trump 2.0 and the future of US science. Nature. doi: https://doi.org/10.1038/d41586-025-00238-5https://www.nature.com/articles/d41586-025-00238-5)

xl Cf. Mervis, J. (2024). “Trump names OSTP director as part of White House tech team”. Science https://www.science.org/content/article/trump-names-ostp-director-part-white-house-tech-team (consultado em 30/01/2025).

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