Trump, leão da Metro?
Hipótese sobre a síndrome do valentão do presidente dos EUA. Grande parte de seus discursos e medidas iniciais são bravatas inviáveis ou tiros no pé do próprio país. Mas sua psicopatia pode jogar gasolina num mundo mergulhado em múltiplas crises
Publicado 11/02/2025 às 18:47
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Desde a posse de Trump estamos assistindo a uma enxurrada de medidas administrativas tomadas pelo governo republicano, várias consideradas inconstitucionais, atirando em todas as direções, contra os imigrantes, contra servidores públicos considerados indesejáveis (“desleais”) pelo novo ocupante da Casa Branca, contra países parceiros ou competidores comerciais, entre outras.
A imprensa americana e a internacional estão sem fôlego para acompanhar, que dirá comentar e criticar, a maratona de iniciativas. A oposição democrata está atarantada e sem conseguir responder aos desafios.
O estilo Trump de governar continua o mesmo, mas com mais ousadia e truculência. Quando não são medidas administrativas as declarações de intensão são ainda mais esdrúxulas, sobretudo no campo das relações internacionais. Fazer de Gaza uma “Riviera” sob controle americano, expulsando 2,4 milhões de palestinos em uma limpeza étnica gigantesca (sonhada pela extrema direita israelense, mas para uso por seus próprios colonos) foi qualificada por um senador democrata de “insensata, tola e irresponsável”. É pouco. Faltam adjetivos fortes o suficiente para qualificar a proposta.
Ameaças ao Panamá, por ter entregado a gestão do canal para uma empresa chinesa, ao Canadá por vender mais do que compra dos EUA (propondo tornar o país, membro da Commonwealth inglesa, o 51º estado americano) e ao México, por não controlar os seus e outros imigrantes na fronteira e não impedir o tráfico de drogas foram repetidas até a imposição de sobretaxas às importações.
Mas cada uma dessas medidas encontrou reações internas e externas ao país.
Para qualquer analista, a blitz contra os imigrantes ilegais é um tiro no pé de setores importantes da economia americana, inclusive setores que apoiaram fortemente o republicano na sua campanha. Sabendo-se que 40% da força de trabalho no setor agropecuário e 25% daquela empregada na construção civil é composta por imigrantes (alguns dizem que na maioria ilegais), o susto dos empresários deve ter sido enorme. Isto sem falar de um percentual não identificado, mas certamente muito importante, no setor de serviços. Quem vai se empregar nestes setores para substituir os imigrantes? A ameaça de Trump concerne cerca de 11 a 12 milhões de pessoas, a grande maioria latinos. Mesmo supondo que existam milhões de americanos dispostos a fazer estes serviços (o que parece improvável), o custo da mão de obra vai ser muito maior. O resultado previsto por economistas de todas as orientações é o aumento da inflação, fantasma que garantiu a vitória de Trump nas eleições, apesar dos bons números da economia americana na gestão de Biden.
As ameaças de aumentar as taxas de importação de produtos do Canadá e do México duraram até as conversas entre Trump e os dirigentes dos países ameaçados.
A presidente do México, sem alarde nem arreganhos, mostrou que o fluxo de imigrantes ilegais do seu país já vem caindo há bastante tempo, resultado de medidas tomadas desde o governo de Obama até o de Biden. Ela negociou com Trump o deslocamento de tropas mexicanas para a fronteira visando controlar o contrabando de anfetaminas e os imigrantes ilegais, em troca medidas do governo americano controlando o fluxo de armas para o país vizinho.
Já o que Trudeau entregou em troca da suspensão das novas taxas é menos claro, talvez apenas a anulação das taxas canadenses previstas como retaliação. Parece um jogo de empate, mas criou uma revolta enorme nos normalmente serenos canadenses, gerando um movimento de boicote de produtos produzidos nos EUA.
É bem provável que as pressões internas dos setores econômicos americanos prejudicados pelas medidas de Trump tenha sido mais importante do que estes acordos telefônicos, que parecem ser mais algo para dar uma impressão de vitória para o republicano frente ao seu eleitorado.
Para muitos analistas as medidas de restrição às importações dos maiores parceiros comerciais dos EUA têm por objetivo aumentar a arrecadação do governo, reequilibrar a balança de pagamentos altamente deficitária e estimular empresas afetadas a investirem no território americano. Este parece ser também o mote no aumento da taxa de importação de produtos chineses, já que a balança comercial entre os dois países é altamente deficitária para os EUA e preocupa os estrategistas americanos que olham para a disputa de hegemonia econômica global. Se este era o objetivo, o resultado foi nulo e as “concessões” dos parceiros, trombeteadas por Trump, são apenas cortina de fumaça para salvar a cara.
Para os chineses, a taxa de 10% representa muito pouco do ponto de vista da competitividade dos seus produtos e a resposta foi bastante discreta, apenas o suficiente para não mostrar submissão aos arreganhos de Trump. Até agora Trump ainda não conversou com o presidente chinês e tudo pode acabar em pizza. Mas mesmo que as taxas sejam mantidas, o efeito tanto no fluxo de exportações chinesas como nos recursos obtidos por elas é desprezível.
A verdadeira resposta dos chineses ocorreu em paralelo ao debate das sobretaxas: o lançamento da empresa chinesa Deepseek, que derrubou as ações das Big Techs, cujos CEOs estavam sentados logo atrás do palanque de Trump na posse. E que resposta! Um trilhão de queda nas cotações das empresas de IA do Vale do Silício em poucos dias. A façanha mostrou não apenas a vantagem chinesa em ciência e tecnologia como também a inutilidade das tentativas americanas de controlar a tecnologia, impedindo a exportação de chips mais avançados para a China.
Alguns compararam este feito chinês com o lançamento do Sputnik no auge da Guerra Fria e que levantou a ameaça de uma superioridade científica da União Soviética sobre o Ocidente. Não era o caso, mas não há qualquer semelhança entre o poderio econômico e tecnológico dos soviéticos nos anos 50 com o dos chineses atualmente. Sem exagero, estamos diante de um ponto de virada na hegemonia não só americana como ocidental no desenvolvimento tecnológico. E para esfregar sal na ferida, os chineses entregaram uma tecnologia não patenteada, de uso e desenvolvimento livres. O mundo todo agradeceu e arregalou os olhos para o Oriente. Novos tempos, sem dúvida.
O terrorismo trumpista contra os imigrantes ilegais está criando um clima soturno em todos os EUA. Vizinhos são chamados a denunciar vizinhos, agentes da imigração invadem locais de trabalho para fiscalizar a presença de ilegais e a polícia, sobretudo nas cidades e estados governados por republicanos, aborda nas ruas indivíduos com “pinta” de imigrantes. Ai dos morochos latinos! Mas ainda está para acontecer a tsunami de deportações prometida por Trump. A mera operacionalização destas deportações é um espetacular desafio. Em números redondos, a gestão de Trump tem a duração de 1.460 dias. Seria preciso despachar cerca de 8 mil ilegais a cada dia do seu mandato, sem falar na levas dos novos infiltrados que não deixarão passar pela fronteira sem o tão falado muro protetor. As deportações estão acontecendo com o uso de aviões e vai ser preciso criar uma esquadrilha especial só para este fim. Ou, alternativamente, criar frotas de ônibus para despejar os indesejáveis pela fronteira do México, supondo que este país aceite esta invasão forçada. Como última e cinematográfica possibilidade, Trump pode organizar marchas de ilegais em direção sul. Já imaginaram o espetáculo? Colunas de pessoas, homens mulheres e crianças atravessando todo o país por várias estradas, cercados pela guarda nacional, dormindo em estádios ou ao relento. Serão algemados e acorrentados, como manda o protocolo de expulsão nos aviões? E, apesar de menos cara do que na “esquadrilha do adeus”, as marchas de deportados custariam uma fortuna. Tudo isso é absurdo, mas não é mais do que a implicação lógica da ameaça trumpista.
Pela importância desta mão de obra na economia americana e pela impossibilidade operacional é provável que essa promessa fique no mesmo nível do muro na fronteira mexicana, do Golfo até o Pacífico, feita no primeiro governo Trump e que não passou de uns poucos quilômetros. Como é que o energúmeno vai resolver o problema que ele mesmo criou sem desmoralizar as suas ameaças é algo que desafia qualquer especulação.
O comportamento de Trump no poder me lembra um ditado ou expressão dos meus tempos de adolescente. Chamava-se quem bancava o valentão, mas acabava amarelando, de leão da Metro – dois rugidos e o resto é fita. Para quem não se lembra, os filmes da empresa de Hollywood, a Metro Goldwin Meyer, sempre começam com um leão rugindo duas vezes antes do filme começar. E fita era uma gíria para fingimento, simulação, segundo o Aurélio.
Mas será que tudo é mesmo só bazófia e o personagem apenas um grotesco palhaço? Infelizmente, o efeito Trump pode ser muito mais perverso do que fazem supor as suas trapalhadas iniciais.
O que fica de real em todas as ameaças de Trump é o lado destruidor. Desde logo, entre as medidas já tomadas está a saída dos EUA do Acordo de Paris de 2015, visando controlar o aquecimento global. É um repeteco do seu primeiro governo e tem caráter mais simbólico do que efetivo, já que o acordo vem sendo esquecido ou desprezado pela maior parte dos governos, sobretudo os dos países mais ricos.
Importa mais a decisão de ignorar qualquer restrição ambiental para a exploração de petróleo, gás ou shale oil, sob o lema de campanha “drill, baby, drill”. Vai na mesma linha a eliminação de qualquer vantagem para a produção de carros elétricos ou de restrições a automóveis de alta potência (SUV) que têm mais impacto na emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE). O pior é que vários países como França e Alemanha e a própria União Europeia não demoraram a acompanhar a iniciativa antiecológica de Trump e lançaram propostas para livrar as empresas europeias de “entraves ambientalistas”. O gesto de Trump foi o sinal verde (sem ironia) para o enterro do Acordo do Clima e que deve ter reflexos sobre a COP30 e a própria convenção da biodiversidade. Podemos esperar uma aceleração das emissões de GEE e, consequentemente, uma aceleração no aumento das temperaturas médias do planeta.
É verdade que todos estes acordos foram pouco aplicados e o que foi feito, sobretudo na Europa, pode ser resumido com a expressão too little, too late (muito pouco e muito tarde), mas agora abriu-se a porteira para tudo piorar, justo quando estamos diante dos últimos anos que nos restam, até 2030, para tomar as medidas necessárias para evitar aos perigosíssimos 2º Celsius a mais na temperatura média do planeta até o fim desta década. Lembremos que as recentes ondas de calor já levaram as temperaturas médias nos últimos meses para assustadores 1,75º.
O objetivo do acordo de Paris já foi vencido e ultrapassamos os 1,5º Celsius a mais no ano passado, quando se acreditava que isto só ocorreria em 2030, se nada fosse feito para diminuir as emissões de GEE. O aumento das emissões, apesar do hiato dos três anos da covid, continuou se acelerando, mas o que surpreendeu, mesmo os mais pessimistas entre os milhares de cientistas do IPCC, foi a rapidez do aumento da temperatura. Agora a meta é segurar em 2º Celsius a mais até 2030, mas se já estava difícil, piorou muito com o “efeito Trump”.
O outro risco desta Presidência de Trump é uma guerra nuclear. Já ouvi até gente de esquerda dizer que Trump é menos perigoso do que Biden, ou Obama e Hillary, mas o perigo está na falta de um mínimo de ponderação do personagem. Até agora ele não se meteu na guerra da Ucrânia e dizem que tem simpatias por Putin, mas não fez qualquer restrição à entrega de armamento estratégico e tático decidida no governo Biden, mas ainda não realizada. Ele já ameaçou tirar os EUA da Otan no seu governo anterior e na campanha para este governo, mas não se tratou nunca de diferenças de objetivos com os governos democratas, mas a queixa do excesso de gastos dos EUA e a pouca contribuição dos parceiros europeus. Não creio que ele vá mandar tropas para desalojar os palestinos de Gaza, como afirmou que faria, “se necessário”, mas não duvido que apoie as mais insanas ações militares de Netanyahu, atiçando o paiol de pólvora do Oriente Médio.
O risco militar maior, entretanto, está no ronco ameaçador em relação à China. Se não for urro de leão da Metro, o problema pode ser da maior gravidade, apesar dos chineses serem hoje muito mais ponderados e prudentes do que nos tempos do presidente Mao Tse-Tung. A herança mais importante do período Deng Xiaoping foi a transformação da ideologia belicosa do maoismo em uma mentalidade pragmática. Dois aforismos definem bem a diferença: “o imperialismo é um tigre de papel” (Mao) e “não importa se o gato é branco ou preto, desde que cace os ratos” (Deng).
Os chineses seguem a velha consigna “se queres manter a paz, prepara-te para a guerra”, mas não compram provocações, muito menos os rugidos de Trump. O risco está na falta de medida e até na ignorância de Trump que o leva a se comportar como um valentão de recreio escolar, agregada ao fato de que está procurando o controle total do aparato do Estado americano, inclusive militar e de inteligência, coisa que lhe fugiu no primeiro governo. O estilo elefante em loja de cristais de Trump pode criar um processo que escape do controle de uns e/ou de outros. O problema não se resume à imprevisibilidade do comportamento de Trump, isto é apenas um risco extra, do tipo acender um fósforo para ver se tem gasolina no latão: é preciso que a gasolina e o fósforo estejam disponíveis.
Desde o fim da União Soviética que os EUA e as forças militares do Ocidente, reunidas na Otan, procuraram se posicionar estrategicamente para “conter” a Rússia. Aproveitando o momento de fraqueza do bloco herdeiro do arsenal atômico da URSS, o Ocidente cercou as fronteiras da Rússia com aliados e bases militares armadas com foguetes de curta e média distância com cargas nucleares táticas. Confiando em sua superioridade nuclear os EUA e a Otan ignoraram as advertências de Putin, particularmente na estratégica região da Ucrânia. E acabaram surpreendidos pela reação russa e levados a ir levantando o sarrafo do engajamento militar, cada vez mais alto e cada vez mais arriscado.
A guerra da Ucrânia mostrou que todo o arsenal de combate convencional do Ocidente não foi suficiente para derrotar o exército russo. Também mostrou fragilidades nos equipamentos e nas tropas russas, mas o balanço indica que será preciso liberar armas mais poderosas para os ucranianos ou serão definitivamente derrotados e terão que aceitar a perda do Donbass e a desmilitarização do país. E cada arma mais poderosa liberada aumenta o risco do enfrentamento nuclear. No entourage de Trump, já há quem considere os nukes táticos como uma arma necessária neste combate e essa normalização do risco é altamente perigosa para uma escalada sem limites e a guerra nuclear total. É neste quadro que uma figura com a personalidade de bullying e uma ignorância estrutural como Trump é altamente perigosa. Segundo muitos especialistas, o mundo nunca esteve tão perto de uma hecatombe nuclear.
Além de ajudar a destruir o planeta pela aceleração do aquecimento global e outros gigantescos problemas ambientais e ameaçar o mundo com um holocausto nuclear, Trump está preparando outra hecatombe, uma nova pandemia ainda mais virulenta que o covid-19.
Trump tentou impedir a vacinação e o isolamento social nos EUA durante o seu primeiro governo. Agora ele está perseguindo as figuras chave que limitaram a catástrofe sanitária dos Estados Unidos, país que teve o maior número de vítimas fatais no mundo, acompanhado pelo Brasil de Bolsonaro. Está muito claro pelas declarações de Trump que se houver outra pandemia ele vai ignorar a ciência e a OMS e deixar rolar a contaminação “para salvar a economia e os empregos”.
Os cientistas que estudam as pandemias vêm advertindo há décadas que o risco de contágios com alto grau de virulência e alto grau de velocidade de circulação vem crescendo. Para estes especialistas, a covid foi uma pequena advertência quando comparado com o que está no cardápio. O candidato mais provável a exterminador do futuro é o vírus da gripe aviária, o H1N1 ou uma de suas variantes. Falta apenas um peteleco de mutação genética para a contaminação aérea entre mamíferos vir a ocorrer. E alguns casos recentes nos EUA mostram que este risco é muito palpável.
Sem que os EUA sigam os protocolos de segurança traçados pela OMS, da qual Trump fez questão de retirar o seu país, não só a contaminação pode se alastrar ainda mais rapidamente que na covid no espaço americano, como o salto para o resto do mundo será inevitável. As manias do psicopata são uma ameaça mundial.
Finalmente, a ameaça de Trump também tem um cunho político. Ao transformar os EUA em um cadinho de ódios em várias direções (racismo, homofobia, machismo, fascismo, outros), turbinados por seus aliados nas Big Techs, Trump não só está destruindo as instituições republicanas do seu país como reforçando movimentos de mesmo caráter mundo afora.
O senador democrata por Massachussets, Bernie Sanders, fez uma live muito importante, buscando definir uma estratégia de combate ao energúmeno no poder na Casa Branca. Corretamente, Bernie mostrou que todos os discursos e deliberações de Trump ignoram as questões econômicas e sociais mais importantes para o povo americano: os inacreditáveis desequilíbrios na distribuição de renda, com a pauperização da classe trabalhadora, a carência de moradias para milhões de famílias, os precários e caríssimos serviços de saúde, a deterioração da educação pública e a vulnerabilidade e todos os habitantes frente ao agravamento dos impactos ambientais provocados pelo aquecimento global e a contaminação do ar, do solo e das águas. Ele propõe uma mobilização de todas as forças progressistas para reivindicar medidas de enfrentamento destas questões, deixando de lado as tentativas de responder as múltiplas provocações de Trump. Vamos ver se vai dar certo.
A meu ver, o impacto econômico da estratégia trumpista do “America First” vai corroer a adesão a Trump, sobretudo pelo aumento dos preços de bens e serviços. O perigo reside no que o energúmeno vai fazer quando as múltiplas crises desabarem sobre a maior economia do Ocidente. Encurralado em seu país o leão da Metro pode querer morder.