Enfim, uma alternativa aos opioides?

Recém-aprovada pelas autoridades dos EUA, a suzetrigina mostrou-se um analgésico muito eficaz – sem os efeitos viciantes de outras substâncias. Para especialistas, isso pode torná-la uma poderosa ferramenta contra a epidemia de overdoses no país

Foto: Eric Petersen/Johns Hopkins Magazine
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Da revista Nature | Tradução: Guilherme Arruda

O potencial aditivo dos medicamentos opioides, estopim de crises de saúde pública pelo mundo, leva à busca cada vez mais urgente de alternativas. Em especial após a escalada da epidemia de overdoses nos Estados Unidos, que há anos registra em torno de 100 mil óbitos anuais — a maioria deles, associados ao abuso de opioides como a fentanila –, o governo e as farmacêuticas daquele país se tornaram atores particularmente interessados em conduzir pesquisas nesse sentido. Hoje (31/1), as autoridades sanitárias estadunidenses autorizaram o uso da suzetrigina, uma substância que promete ter um efeito analgésico igualmente potente, mas sem os efeitos negativos.

Sem dúvida, a notícia merece comemoração. No entanto, não é possível esquecer os entraves ao acesso às inovações que são impostos pelo sistema de patentes aos que mais precisam. As primeiras informações sugerem que cada pílula do novo medicamento custará 15 dólares nos EUA. Que valores a farmacêutica que o desenvolveu buscará cobrar nos países do Sul Global? O texto sobre a suzetrigina que se segue, publicado pela Nature, oferece informações úteis para as próximas batalhas da pauta do acesso a medicamentos. (G. A.)

Em 2023, quando Terp Vairin acordou de uma cirurgia em sua cavidade nasal, ela sentia como se tivesse levado um soco forte no nariz. Quando o efeito da anestesia passou, Vairin pediu algo para aliviar a dor e teve uma surpresa agradável. O medicamento que ela recebeu — um novo tipo de analgésico administrado como parte de um ensaio clínico — aliviou seu desconforto sem os efeitos de tontura ou náusea típicos de um opioide.

“Eu me senti muito lúcida”, diz Vairin, uma artista de Decatur, no estado americano da Geórgia.

Agora, milhões de pessoas nos Estados Unidos poderão ter acesso a esse analgésico — um medicamento chamado suzetrigina que funciona bloqueando seletivamente os canais de sódio em células nervosas sensíveis à dor e garantindo a supressão da dor no mesmo nível que os opioides sem os riscos de dependência, sedação ou overdose associados a eles. Na quinta-feira, a Food and Drug Administration (FDA), autoridade sanitária dos EUA, deu seu aval ao uso da suzetrigina para o tratamento da dor em curto prazo, e ela passou a ser o primeiro medicamento analgésico dos últimos 20 ano funcionar por meio de um mecanismo totalmente novo e receber aprovação regulatória.

Especialistas saudaram a chegada de uma alternativa potente, mas mais segura, aos opioides, que são responsáveis ​​por uma onda de overdoses e mortes nos Estados Unidos e em outros países. “Qualquer coisa que possamos adicionar ao conjunto de recursos que nos permite reduzir a dependência de opioides é um avanço importante”, diz Paul White, anestesiologista do Cedars-Sinai Medical Center em Los Angeles, Califórnia, que participou do desenvolvimento da suzetrigina.

Enquanto isso, os desenvolvedores de medicamentos veem a aprovação da suzetrigina como um indício de que atingir os canais de sódio — uma estratégia que há muito desafia a indústria farmacêutica — pode render sucesso. “É um grande passo à frente”, afirma Stephen Waxman, neurocientista da Escola de Medicina de Yale em New Haven, Connecticut.

A suzetrigina, que recebeu o nome comercial de Journavx, não é o primeiro medicamento direcionado aos canais de sódio que passa a ser usado para o tratamento da dor. Compostos como a procaína (Novocaína) e a lidocaína têm sido usados como anestesias confiáveis há mais de um século. No entanto, os canais de sódio vêm em nove subtipos, e esses medicamentos mais antigos bloqueiam todos os nove indiscriminadamente, então devem ser administrados de forma local — por meio de injeções, cremes ou geis para a pele — para evitar efeitos colaterais generalizados.

A busca por medicamentos mais seletivos começou após a descoberta, na década de 1990, de que três dos canais de sódio aparecem principalmente em neurônios sensíveis à dor — o que significa que eles têm pouca atividade no coração ou no cérebro e, portanto, um risco muito menor de toxicidade ou potencial de dependência.

Os canais de sódio operam como portões, abrindo e fechando em resposta a sinais elétricos que fluem através das células nervosas para deixar os íons de sódio passarem. Isso inicia uma cascata de impulsos nervosos que transmitem sinais de dor ao cérebro.

Os primeiros esforços para direcionar medicamentos a esses canais se concentraram amplamente em um subtipo chamado NaV1.7. Waxman o compara ao fusível de um foguete, que amplifica a faísca inicial de um sinal de dor. Isso, por sua vez, acende o NaV1.8, outro subtipo de canal que age como propulsor de fogo, intensificando ainda mais o sinal e retransmitindo-o, na forma de impulsos repetitivos, pelos nervos até a medula espinhal e, finalmente, para o cérebro. Um terceiro canal, o NaV1.9, modula ainda mais a intensidade e a duração do sinal.

Estudos genéticos de meados dos anos 2000 – que tiveram início em pacientes com uma condição de dor crônica chamada “síndrome do homem em chamas” e depois passaram por pessoas com insensibilidade completa à dor – indicaram que o NaV1.7 seria uma espécie de um regulador mestre da percepção da dor. Essas foram descobertas “de tirar o fôlego” que, de acordo com Waxman, levaram “a maior parte do dinheiro e da atenção” a serem direcionados para esse subtipo de canal. No entanto, os esforços iniciais da indústria farmacêutica para inibir o NaV1.7 produziram resultados clínicos decepcionantes.

O NaV1.9 mostrou-se difícil de estudar em laboratório, então a atenção se voltou para o NaV1.8. Após testar dois outros inibidores seletivos de NaV1.8, a farmacêutica responsável pelas pesquisas se inclinou para a suzetrigina (anteriormente conhecida como VX-548) — e descobriu que ela bloqueia seu alvo de forma 30 mil vezes mais potente do que outros canais de sódio.

“O VX-548 não surgiu do nada”, diz Marc Rogers, consultor de descoberta de medicamentos em Cambridge, Reino Unido. “É uma história de trabalho longo e árduo.”

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